Em entrevista exclusiva à Renascença, revela que a Igreja da Sagrada Família na cidade de Gaza é o ponto de abrigo para mais de 400 pessoas, o dobro da comunidade católica de Gaza.
A água tornou-se um bem escasso e caro e a falta de condições de sobrevivência leva os católicos a não migrarem para o sul da Faixa de Gaza.
Como descreve a situação da comunidade católica em Gaza?
A comunidade católica em Gaza é muito pequena, quase 200 pessoas. Mas as pessoas que estão no complexo da paróquia são cerca de 400. Isto muda a cada minuto. Significa que muitas outras pessoas, muitos cristãos, sentem-se mais seguros no complexo da igreja porque as suas casas podem ser alvo dos israelitas num futuro próximo.
A nossa paróquia tenta dar-lhes comida, água e todas as suas necessidades básicas. É muito dinheiro, porque tudo agora em Gaza é mais caro. Uma grande garrafa de água em Gaza custa quase 2 dólares e meio. Agora está a 7 a 8 dólares, numa cidade pobre onde as pessoas não têm rendimento, não trabalham. Como podem eles pagar esse valor por uma garrafa de água? Isto se a encontrarem, porque há embargo e não se trazem coisas para substituir o que se consome. Este é um exemplo para dizer que muitas coisas estão a faltar mas, no futuro, se o embargo e este tipo de recolher obrigatório continuar, as pessoas ficariam realmente numa situação humanitária muito trágica.
Dito isto, as pessoas da nossa paróquia têm sorte, porque cuidamos deles. Mas se saírem da paróquia e forem para sul, como lhes foi solicitado pelo exército - é uma ordem que visa 1,1 milhões de habitantes - eles não vão a lugar nenhum sem ter as necessidades básicas de água, comida, eletricidade.
Escusado será dizer que não há eletricidade, nem segurança, nem tendas para protegê-los ou hospedá-los. Então decidiram, todos juntos, permanecer na paróquia, dizendo que se temos que morrer é melhor morrer com dignidade do que morrer lentamente, lentamente humilhado.
No meio desta situação, vi que até se realizou este fim-de-semana um baptismo na Igreja da Sagrada Família em Gaza.
Como temos 400 pessoas, creio que o pároco convenceu os pais de uma criança a batizá-la, porque há risco. Como se dizia no passado um baptismo "in articulo mortis", ou seja, na iminência da morte, porque isso é possível a qualquer momento. Portanto não foi uma celebração alegre como costuma acontecer. Foi uma coisa muito simples. Os paroquianos de Gaza vão à igreja todos os dias para a missa. Eles estão lá, participam na missa todos os dias e acrescentaram uma celebração de batismo, que é muito bom, muito bonito.
A igreja está a dar abrigo a todos os paroquianos ou apenas à comunidade composta pelas religiosas e pelo padre?
Os cristãos de Gaza estão distribuídos por dois locais: o complexo greco-ortodoxo, com 400 pessoas, e o nosso condomínio com o mesmo número. O espaço dos ortodoxos é muito pequeno, embora a sua paróquia seja quatro vezes maior que a nossa. Mas 10% da comunidade cristã está nas suas próprias casas porque moram longe e podem ter uma pessoa deficiente ou uma pessoa muito pesada ou doente que não se consegue mover e que precisa de um tratamento especial. Então eles preferem ficar em casa, mas estão a pedir comida e água.
Ouvi uma conversa entre o nosso chanceler e o pároco de Gaza com este a dizer que eles precisam de segurança porque enviar um carro para levar comida é arriscado. Então ele queria que fizéssemos algo para que o táxi que fosse levar comida não fosse considerado um alvo. São estes os pedidos e tentamos fazer o nosso melhor, mas, numa situação de guerra, com lei marcial, não sabemos o que pode acontecer a qualquer momento.
E o que podem fazer nessas circunstâncias? Podem pedir, por exemplo, aos israelitas que não ataquem este carro?
Tentamos ,porque temos relações com o posto de controlo de Erez. Temos comunicação que vem do passado, não posso negar isso, mas apenas para coisas oficiais. Agora temos que pedir-lhes devido a necessidades humanitárias. Nós tentamos, não temos certeza se conseguiremos, mas tentamos.
A decisão de não se mudarem para o Sul foi uma decisão da própria paróquia ou foi um pedido ou uma ordem dada pelo Patriarca?
O exército distribuiu panfletos aos milhares e milhares nos céus de Gaza, e eles repetiram a ordem na rádio, nos meios de comunicação. Então, todos e até mesmo pelos telefones, todos em Gaza receberam a mensagem nos seus smartphones. Portanto, ninguém ignorou a existência desta ordem.
Agora, não podemos dizer ao povo de Gaza para ir ou não para o sul, porque se eles forem e alguém morrer, há uma responsabilidade.
E se lhes dissermos para não irem e a paróquia for bombardeada, é outra responsabilidade. Dissemos-lhes que, seja qual for a decisão que tomassem, nós tentaremos ajudá-lo. Se forem para o sul, tentaremos ajudá-lo de acordo com as nossas possibilidades. E teremos menos possibilidades, porque no Sul não temos nenhum edifício, nenhuma escola católica, nada. Eles escolheram permanecer.
Não há mesmo nenhuma presença vossa no sul?
Não. As instituições cristãs estão no norte de Gaza. Ou seja, temos a nossa paróquia católica, a greco-católica, a Caritas, o CRS ( Catholic Relief Service), associações, e também o Hospital Anglicano, que funciona muito bem.
Ouvimos que em Gaza há muitos problemas com a alimentação, a electricidade e a água. Mas começou por nos dizer que ainda têm alguns produtos para a comunidade. Existe o risco de se esgotarem esses mantimentos?
Sabemos que a água é difícil de obter. Então o pároco trouxe muita água há dois dias. Mas não sabemos no futuro se a maioria das pessoas irá para o sul. Isso significa que tudo estará fechado e nesse caso estaremos em perda. Quanto à água corrente, para os sanitários, casas de banho, etc., existe um poço subterrâneo de onde tiramos água para as pessoas se lavarem.
Mas precisamos de eletricidade. A eletricidade precisa de combustível. Recebemos uma hora de eletricidade por dia, até agora. Mas se quisermos acionar o gerador que temos, precisamos de combustível. E temos muito pouco combustível. Quando terminar, significa que não haverá substituição. E neste caso, seremos incapazes de produzir eletricidade para tirar água do subsolo. Quanto a comida, ainda há alguma nas lojas, mas é muito cara. Somos ajudados por muitas associações como CRS - Catholic Relief Services ou a Sociedade Bíblica e ainda temos lá dinheiro da escola que usamos para comprar comida também. Mas dentro de algum tempo tudo isso estará terminado e não sabemos o que fazer.
Têm tido ajuda estrangeira?
Muitos gostariam de ajudar, mas perguntam como fazê-lo, como enviar o dinheiro para Gaza nesta situação. Não podemos mandar agora esse dinheiro. Usamos dinheiro em espécie que é destinado para a escola - temos lá uma escola muito grande - e no futuro, esperamos que haja algumas horas de cessar-fogo e que as pessoas possam ir ao banco e fazer compras. E neste caso haverá a possibilidade de enviar dinheiro através dos bancos, porque poderão abrir quando houver um cessar-fogo.
E há algum cidadão estrangeiro na Cidade de Gaza a pedir ajuda na vossa igreja católica?
Além dos cristãos palestinos, há as irmãs argentinas e o pároco. Um é argentino, o outro é um vigário egípcio. Além dessas pessoas, não me recordo de estrangeiros. Os americanos tentaram sair de Gaza através da fronteira de Rafah com o Egipto, mas o Egipto disse que não os deixariam atravessar se não houvesse um corredor humanitário que permita que o Egipto traga alimentos, saúde e medicamentos do aeroporto El Arish, que fica perto de Rafah e da fronteira com Gaza. Há estrangeiros, especialmente americanos, que estão nas fronteiras com o Egipto e não são autorizados a entrar devido às condições impostas pelo Egipto.
Falou sobre a perspectiva de um cessar-fogo, mas todas as notícias que recebemos estão muito longe desse cenário e todos esperam por uma ofensiva terrestre das tropas israelitas. Como vê as próximas horas?
É uma boa pergunta. Como serão as próximas horas? Mas há também outras questões. Qual será o fim desta incursão? Quai serão os objetivos? Porque Netanyahu disse que a face do Médio Oriente mudará depois desta guerra. Como isso pode mudar? O que vai acontecer? O que é que o senhor Netanyahu quis dizer com isso? Porque o Médio Oriente é maior que Gaza.
Os média dizem que vai haver uma incursão dentro de poucas horas. Não sabemos quando exatamente. Sabemos apenas uma coisa: neste momento aviões bombardeiam alguns bairros de Gaza, preparando essa incursão. Não sabemos quando, mas parece que está ligado a esforços diplomáticos para libertar os reféns. Há agora uma oportunidade para os esforços diplomáticos libertarem os reféns israelitas. Se Israel fizer uma incursão e tentar entrar ou bombardear os túneis, talvez os reféns estejam aí presentes e qualquer esperança estaria perdida.
Por isso acredito que o atraso na incursão vem da expectativa de um esforço diplomático.
A Igreja Católica poderia ser importante para lidar e mediar esta situação?
Não sei como. O Papa Francisco pediu para libertarem os reféns. Nós, como Igreja Católica aqui, não temos relação direta com o Hamas. Mas sabemos que alguns países árabes como o Egipto e o Qatar têm muita influência sobre o Hamas. Então eles são os mais qualificados para fazer isso. O Egito é um bom mediador, sempre foi, entre Gaza e Israel. Eles são os mais fortes e qualficados para fazer isso tal como o Qatar.
Oramos por esta intenção. Na próxima terça-feira, haverá um dia de jejum e oração de intercessão por um cessar-fogo, pela paz e pela reconciliação. E difundimos este convite a muitas dioceses do Médio Oriente e também fora do Oriente. A escolha é livre para participar conosco. Mas sei que muitas, muitas pessoas oraram este Domingo por esta paz. Este Domingo.
Quão próximo está o Papa Francisco? Sabemos que na verdade está a telefonar a algumas pessoas. O próprio padre, em Gaza, recebeu um telefonema do Papa Francisco.
Pois bem, basta ter o número dos sacerdotes. O Papa falou brevemente sobre a situação em geral. Sei também que o Cardeal Parolin fez uma visita ao embaixador de Israel na Santa Sé para pedir-lhe que que não bombardeasse Gaza e que esperasse por esforços diplomáticos Sei que o Cardeal Parolin contactou este sábado por telefone o primeiro-ministro da Palestina em Ramallah. Decidiu fazê-lo para sentir a proximidade da Santa Sé.
[artigo atualizado às 11h50 de 16 de outubro de 2023]