No dia do sorteio da fase final do Mundial 2022, João Carlos Pereira, o treinador que durante seis anos coordenou o processo de desenvolvimento dos vários dos jogadores que integram a atual seleção do Qatar, faz a antevisão do que poderá ser a organização do próximo Campeonato do Mundo.
Prevendo uma organização de alto nível, o técnico português considera que o maior desafio será a forma como o país vai lidar com comportamentos que chocam com a sua cultura conservadora.
A nível desportivo, João Carlos Pereira diagnostica uma evolução da seleção do Qatar, mas ainda aquém dos melhores.
Nesta entrevista Bola Branca, o técnico, de 56 anos, fala também da sua carreira e do amor que sente pela Académica.
Durante seis anos, de 2013 a 2019, esteve no Aspire Academym na coordenação do trabalho de desenvolvimento de vários dos jogadores que fazem parte da atual seleção do Qatar. Que Mundial podemos esperar em novembro e dezembro deste ano?
Vai ser um Mundial em que todas as pessoas que vão visitar o Qatar vão ficar surpreendidas. Eles sabem receber, as infraestruturas são de elevada qualidade, estão a montar tudo para que tenha impacto nas pessoas que vão assistir ao Mundial e também para as pessoas que vão ver pela televisão.
Não houve falta de recursos para poder montar um Mundial de excelência, talvez o melhor de sempre, não em termos de jogo porque ninguém sabe o que vai acontecer, mas sim em termos de organização, de estrutura. O Qatar tem condições para organizar um Mundial de referência.
A cultura conservadora enraizada no Qatar vai permitir que os adeptos que vão visitar o país possam ter a liberdade de movimentos e comportamentos que é habitual numa competição com este alcance?
Esse vai ser o maior desafio, levar para o Qatar tudo o que é típico numa competição como esta, como dinâmicas sociais muito próprias para uma cultura muito enraizada do ponto de vista religioso, enquadrar alguns comportamentos desviantes, o excesso nos festejos, o excesso nas derrotas.
Há adeptos que vão aproveitar para passear, para relaxar e o Qatar tem de estar aberto para todas estas possibilidades, apesar das pessoas serem muito conservadoras.
O que podemos esperar da prestação desportiva do Qatar neste Mundial?
Jogando em casa com o seu público, com aquele entusiasmo todo, é um momento único na sua história, a motivação é potenciada ao máximo, mas a verdade é que o Qatar, do ponto de vista teórico, estará a um nível muito inferior, mas tudo foi construído para que fosse possível a nossa intervenção em diversas do desenvolvimento dos jogadores.
Naturalmente do ponto de vista técnico e tático, mas também ao nível da mentalidade e daquilo que eu chamo de vantagens competitivas. Em tudo o que é extra qualidades do jogador, o Qatar vai estar ao melhor nível.
Esteve seis anos a trabalhar no Qatar num projeto que visava alimentar a seleção principal com mais qualidade futebolística, objetivo que visivelmente foi cumprido. Sente que foi peça importante na construção de um novo Qatar futebolístico?
O meu contributo foi enquadrado num trabalho coletivo. Tudo aquilo que vai obter-se neste Mundial é uma consequência do que foi feito ao longo de vários anos.
Houve um investimento financeiro nas infraestruturas mas também nos recursos humanos. Quando cheguei em 2013 o processo já estava em andamento. Depois fomos tomando opções no desenvolvimento de jogadores que tivessem condições para chegar à equipa que vai representar o Qatar no campeonato do mundo.
Foi um caminho difícil, foi um caminho desafiante, mas é gratificante ver que há uma grande evolução na qualidade dos jogadores qataris. Creio que o Qatar vai estar orgulhoso da sua equipa e da sua organização, independentemente dos resultados.
A experiência no Qatar permitiu-lhe contactar com grandes figuras do futebol mundial, entre eles o atual treinador do Barcelona, Xavi, com quem fala quase diariamente. Sente que neste momento é melhor treinador?
Sim, sinto-me melhor treinador, fui vivenciando experiências únicas com pessoas que têm voz reconhecida no mundo do futebol. Acompanhei treinadores, jogos, treinos, por todo o mundo e isso têm influência no conhecimento adquirido.
Neste momento sou muito mais competente, consigo estruturar muito mais informação. Neste momento sou um treinador melhor preparado, porque domino a vertente competitiva, mas por outro lado conheço toda a cadeia desde a formação, aos estádios da formação de um jogador de futebol até ao alto rendimento
Depois da experiência no Qatar trabalhou na Suíça e em Portugal, na Académica. Está à espera de um novo projeto por cá ou no estrangeiro?
Costumo dizer que tenho uma carreira portátil, o mundo está cada vez mais pequeno, estamos numa indústria global. Por isso, posso treinar em Portugal ou em qualquer ponto do globo.
Para o próximo passo da minha carreira a prioridade não é o dinheiro. Procuro sim um clube que consiga dar-me condições para que eu possa fazer um trabalho de acordo com o meu potencial.
O que pensa de um eventual regresso à I Liga portuguesa?
O regresso à I Liga pode acontecer se as circunstâncias assim o permitirem. Estarei disponível para avaliar as possibilidades.
Quero sentir-me desejado quando entrar num projeto desportivo de um clube, isso para mim é o mais importante. Temos de estar alinhados, temos de perceber o que podemos construir em conjunto.
Para terminar, a Académica de Coimbra, provavelmente o seu maior amor desportivo. O que sente quando a equipa está muito perto da descida à Liga 3?
A Académica sempre foi um clube com história, com sucesso desportivo e nesse tempo de vitórias não preparou os próximos passos, houve alguma negligência.
Atualmente o clube tem poucos recursos, os maus resultados de agora são consequência do que não foi feito nos últimos anos, não os últimos treinadores e últimos jogadores os culpados. Se a Académica tiver de se reconstruir que o faça, mas que o faça bem.