Três anos e meio depois do referendo de 2016, não tenho qualquer dúvida de que o Brexit será visto como um erro histórico. Com o Brexit, o Reino Unido isola-se da União Europeia — o maior bloco económico do mundo — numa altura em que o nosso continente enfrenta cada vez mais desafios coletivos, do aquecimento global aos enormes fluxos de migração que este vai gerar, passando pela luta contra o terrorismo internacional. A UE trouxe ao meu país 47 anos de paz, prosperidade e segurança reforçada, coisas que o Brexit infelizmente vem agora minar, podendo inclusivamente marcar o início da reversão de todo o projeto europeu se outros países seguirem as pisadas do Reino Unido. Felizmente, há, para já, poucos sinais de que isso vá acontecer.
A UE tem vingado de uma forma única, ao fazer as coisas sob o mote “unidos na diversidade” num continente que, durante séculos, conheceu apenas guerras e destruição. Infelizmente, encontramo-nos num momento de populistas e nacionalismos crescentes, um momento de respostas fáceis para problemas complexos que não deverão singrar.
Nos últimos três anos e meio, aqueles como eu que são pró-UE tinham esperanças de que um segundo referendo revertesse esta tragédia, mas as eleições de dezembro de 2019 sob o lema “Cumprir o Brexit” puseram fim a esse sonho. Agora, tudo o que podemos desejar é que o período de transição termine a 31 de dezembro de 2020 com um bom Acordo de Associação UE-RU, que mantenha o Reino Unido o mais próximo possível dos 27 Estados-membros.
Contudo, estou ciente do risco de um não-acordo, para além de grandes divergências entre os padrões do Reino Unido e os padrões já existentes na UE — desde as diferentes regras laborais à ajuda estatal, passando pela proteção do ambiente — agora que o Reino Unido tem de se alinhar ou com a UE ou com os EUA. Esta é uma batalha interna do Governo que vai inevitavelmente desenrolar-se nos próximos meses.
Antecipo que pouca coisa vá mudar durante os 11 meses de transição, mas no outono de 2020 terão de ser tomadas algumas decisões difíceis e só espero que os responsáveis sejam pragmáticos e não ponham em causa nem a nossa economia nem a segurança do Reino Unido na sua busca por “reaver o controlo” e recriar chamado “império MK2” com o mundo anglófono, aquilo a que chamam “anglosfera”, que nunca foi questionada sobre se esta é uma opção viável.
Neste momento, a Austrália já rejeitou a ideia de livre comércio com o Reino Unido no pós-Brexit. Por outro lado, o Presidente Trump já deixou claro que, se o Reino Unido pretender fechar um acordo de livre comércio com os EUA, terá de se alinhar estrategicamente com a sua política externa, por exemplo no que toca ao Irão e ao desmantelamento do acordo nuclear (JCPOA).
Os que defendem o Brexit continuam a recorrer à nostalgia do passado imperialista da Grã-Bretanha. Na verdade, nos últimos 40 anos, os países de língua inglesa reorientaram as economias para os seus parceiros regionais. Na minha experiência, há hoje mais falantes de inglês na Flandres do que em partes da Índia rural. 97% das crianças no ensino secundário aprendem inglês como segunda língua. Portugal tem registado um grande sucesso neste ponto: os jovens portugueses viajam pelo globo a falar inglês fluentemente!
Há certamente países da Commonwealth que continuam a olhar para o Reino Unido como um parceiro comercial vital. Mas isso deve-se, em larga medida, ao facto de verem na Grã-Bretanha uma ponte para o maior bloco económico do mundo — o mercado único da União Europeia. E a verdade é que, até o Presidente Trump aparecer, nunca nenhum líder estrangeiro da “anglosfera” tinha pedido ao Reino Unido para abandonar a UE.
O Reino Unido desfruta atualmente dos Acordos de Livre Comércio (ALC), negociados em nome de toda a UE com cerca de 60 países, desde a Colômbia ao Japão e a SIngapura. Desde 2011, por exemplo, sob o ALC entre a UE e a Coreia do Sul, as trocas bilaterais entre aquele país e o Reino Unido duplicaram. Estatísticas concretas como esta desmentem o mito de que a pertença do Reino Unido à UE de alguma forma impede-o de negociar com o resto do mundo. Se assim fosse, a Alemanha, que tem mais trocas com a Índia do que o Reino Unido, já teria deixado a UE há muito! A política comercial comum da UE, e os 500 milhões de consumidores que vivem dentro das suas fronteiras, reforça o seu poder de negociação a nível internacional. Agora, o Reino Unido terá de replicar esses acordos rapidamente mas a partir de uma posição muito mais fraca.
Acordos comerciais importantes como o CETA (UE-Canadá) geram considerável prosperidade. Acordos semelhantes estão na calha com a Austrália e a Nova Zelândia. Na verdade, assim que todos os ALC estivessem concluídos, 80% das atuais exportações britânicas teriam como destino ou o mercado único europeu ou países terceiros através dos acordos da UE. Tudo isto vai ser perdido em breve.
Mais: analisemos o impacto da UE no ambiente, investigação e bem-estar animal. A pertença à UE traduz-se numa capacidade de responsabilizar as autoridades britânicas quando as diretivas sobre a qualidade do ar não são respeitadas. A pertença à UE também se traduzia no acesso das universidades britânicas às bolsas do programa Horizonte 2020 de investigação médica e científica numa base de colaboração internacional — de forma consistente, as instituições londrinas receberam uma fatia desproporcional desses fundos. Não se sabe se o Governo britânico vai manter-se em programas como este ou o Erasmus no pós-Brexit. Até agora, a única política governamental já confirmada diz respeito ao Tratado Euratom (relativo à energia atómica).
O sistema das Redes Europeias de Referência reforçou a luta contra cancros raros e o Centro Europeu de Controlo e Prevenção de Doenças ajudou a impedir que o surto de ébola chegasse ao nosso quintal, da mesma forma que está agora a trabalhar para prevenir o coronavírus. Para além disso, a pertença à UE melhorou em muito o bem-estar animal; as condições de transporte de animais vivos, por exemplo, tornaram-se mais humanas e as Diretivas Aves e Habitats continuam focadas na conservação animal. Os acordos europeus tornaram a luta contra as alterações climáticas supranacional, incluindo o compromisso de reduzir em 20% as emissões de carbono até 2020. Questões transfronteiriças como esta são claramente mais bem coordenadas por um bloco de 28 Estados-membros do que pelo Reino Unido sozinho, como será agora o caso.
A proteção dos consumidores é outra vantagem importante da contínua pertença do Reino Unido à UE. Cerca de 27 milhões de britânicos visitam os Estados-membros da UE, quer em negócios quer em turismo, gozando de muitas proteções ao fazê-lo. Vejam-se as taxas de roaming que eram aplicadas no uso de dados móveis até 2017, quando foram abolidas pela UE, e os sistemas de saúde da UE a 27, aos quais os cidadãos do Reino Unido acediam até agora. Nenhuma destas coisas está garantida após a transição. Os pró-Brexit dizem que será possível substituir isso com seguros de viagem, mas como vai um cidadão idoso e doente obter cobertura?
A par disso, a lei do mercado único veio regular a indústria europeia de aviação, tornando os voos menos caros e garantindo aos passageiros o direito a compensação quando as companhias aéreas cancelam voos. E até agora, os estudantes britânicos tinham a possibilidade de estudar no estrangeiro pagando propinas baixas como ao nível nacional e as qualificações profissionais eram mutuamente reconhecidas por toda a União Europeia. O programa de intercâmbio Erasmus continua a ser extremamente popular e, infelizmente, também está em risco.
Num mundo cada vez mais perigoso e instável, a segurança nacional do Reino Unido tem sido impulsionada por instrumentos da UE como o Mandado Europeu de Detenção, as bases de dados com impressões digitais e o Registo de Nomes de Passageiros. A partilha transfronteiriça de informações das secretas, facilitada pela Europol e pela Eurojust, a agência da UE para a cooperação judicial em matérias criminais, acelera o processo de responsabilizar e julgar criminosos e terroristas. Muito provavelmente, nenhuma destas vantagens vai sobreviver ao período de transição.
Numa área em que sou particularmente especializado — por ter pertencido à Comissão de Assuntos Externos do Parlamento Europeu durante os 18 anos em que fui eurodeputado — apercebi-me de que a influência global do Reino Unido deriva da influência estratégica que a pertença à UE nos garante no palco internacional.
As iniciativas diplomáticas da UE têm produzido sucessos tangíveis e duradouros ao nível da política externa. Por exemplo, o Serviço Europeu de Ação Externa desempenhou um papel central nas negociações do Acordo Nuclear com o Irão; intermediou um acordo previamente impensável entre a Sérvia e o Kosovo (acima de tudo ao lançar o isco da adesão de ambos à UE); e conduziu a sanções internacionais à Rússia em resposta à sua agressão à Ucrânia. A missão naval EUNavfor Med tem combatido o tráfico de seres humanos ao largo da Líbia. E uma operação marítima de Defesa e Segurança Comum ao largo do Corno de África, executada pela Força Naval da UE ao leme da Marinha real britânica (EUNavfor Atalanta), praticamente eliminou a pirataria regional, protegendo importantes rotas comerciais marítimas. Infelizmente, o Reino Unido acaba de ser trocado por Espanha nesta missão.
Ainda que a questão da fronteira entre a Irlanda do Norte e a República da Irlanda tenha finalmente ficado resolvida no Acordo de Retirada — mantendo efetivamente a Irlanda do Norte na órbita económica da UE (quer no mercado único, quer na união aduaneira) — há outros grandes problemas políticos que vão seguir-se ao Brexit. Por exemplo, quem ou que entidade pode proteger Gibraltar assim que o Reino Unido perder a vantagem da liberdade de circulação para Espanha? Estranhamente, Gibraltar está a ponderar aderir ao Espaço Schengen! É inteiramente concebível que a situação volte a ser como em meados dos anos 1980, antes da adesão de Espanha à UE, quando Madrid podia fechar a fronteira quando quisesse ao abrigo do Tratado de Utrecht, interrompendo a vida familiar, laboral e comercial dos dois lados da fronteira.
Da mesma forma, e dado que Inglaterra votou pela saída e a Irlanda do Norte e a Escócia votaram pela permanência, antecipo uma crise constitucional que pode acabar por fragmentar o Reino Unido e pôr fim a séculos de parcerias frutíferas e harmoniosas.
Para mim e para milhões de britânicos europeístas (cerca de 52% do eleitorado do Reino Unido), a UE é um exemplo único de governação supranacional limitada, um modelo de paz, segurança, prosperidade e uma visão de futuro, ao contrário de uma ânsia pelo passado.
O Reino Unido sempre teve o melhor dos dois mundos com todas as decisões de ficar de fora — do Euro, do Espaço Schengen, etc. Pôr fim à relação com a UE é uma enorme vergonha. No futuro, os historiadores irão questionar-se como foi possível que aqueles que mais defendiam o Brexit soubessem tão pouco sobre a UE e o seu funcionamento. Aqueles que rejubilam com a saída, os populistas e os nacionalistas que rejeitam o multiculturalismo num mundo cada vez mais interligado, serão os nossos inimigos comuns. Temo que isto não vá acabar bem para o futuro das nossas crianças.
Quem defende a saída alcançou a sua vitória. O Brexit é uma realidade e o mandato do referendo de 2016 está agora cumprido politicamente. Internacionalistas como eu irão sempre lutar para ficar o mais perto possível da UE. Nunca desistiremos do projeto de um dia regressar à UE.