A diretora do programa Ásia do Conselho Europeu de Relações Internacionais, Janka Oertel, considera que a posição chinesa sobre o rumo da guerra na Ucrânia é agora mais clara, no sentido de um apoio claro a Moscovo.
Em entrevista à Renascença no rescaldo das visitas de Macron e Von der Leyen a Pequim e da deslocação de Xi Jinping à Rússia, a especialista em assuntos asiáticos comenta ainda a relação entre Pequim e Kiev, a estratégia chinesa para países em desenvolvimento e as implicações dos recentes exercícios militares em Taiwan.
A visita de Emmanuel Macron à China foi muito comentada, mas na verdade o Presidente francês esteve acompanhado de Ursula Von Der Leyen, presidente da Comissão Europeia. A relação entre a Europa e a China é definida pelo que foi debatido em Pequim?
A coisa mais importante nestas viagens também é recuar um pouco e observar as linhas de tendência que emergem. Acho que tem sido incrivelmente inútil comentar cada pequena alteração nos eventos que acontecem entre a Europa e a China, porque perdemos um pouco a noção dos desenvolvimentos mais amplos que estão em andamento.
Nos últimos cinco anos, li de tudo nas manchetes. "Relações da Europa com a China? Estão em baixa, as coisas estão terríveis" [mas depois ouvimos também que] "As coisas estão ótimas, o acordo sobre concorrência e investimentos está a chegar" [e logo a seguir se diz] "O acordo não está a aparecer". Nós vemos todos estes altos e baixos a todo o tempo. Mas se fechar um pouco o "zoom", verá uma tendência ampla na forma como a Europa está a agir.
O nível de atenção que [a UE] está a trazer para a mesa, a prontidão que retrata e a unidade que mostra representam, na verdade, uma tendência relativamente consistente.
A China está sempre no topo da agenda, apesar de desenvolvimentos como a invasão russa da Ucrânia e de podermos pensar que a Europa se poderia distrair. Se olhar para as ferramentas que a União Europeia está a desenvolver, a Europa continua a melhorar a sua prontidão. Do mecanismo de análise de investimentos até aos instrumentos anticorrupção para subsídios estrangeiros, há uma melhoria consistente dos mecanismos de resposta quando se trata dos desafios colocados pela China.
Em matéria de unidade, na verdade, houve um alto grau de desunião entre os Estados europeus nalgumas grandes decisões. Mas, até no que diz respeito à visita de Macron e Von Der Leyen, houve um grande grau de coordenação. Lá estava ela, à mesa, na conversa com Xi Jinping, quando os franceses basicamente garantiram que a União Europeia tivesse um lugar naquela mesa.
Mas na viagem de regresso, Macron concedeu uma entrevista onde defende que a Europa deve evitar alinhar-se com a China ou com os EUA num potencial conflito relacionado com Taiwan.
Não há necessariamente uma perceção em Paris de que essa viagem tenha contido uma mensagem oposta à que Von Der Leyen defendia. Existe, na verdade, a perceção de uma grande consistência no posicionamento. É mais uma questão de tonalidade.
Essa entrevista na viagem de regresso é já um pouco diferente, com algumas coisas que penso não serem totalmente consistentes até mesmo com a posição do Eliseu. É consistente no sentido de aumentar a soberania europeia, descrevendo o tipo de mundo em que a Europa se encontra e os múltiplos desafios que enfrenta. Diria que o que torna necessário um grau de esclarecimento, que Macron forneceu mais tarde nesta conversa, são alguns comentários sobre Taiwan.
Podemos sempre contar essas histórias e, se aproximar a lente, poderá dizer que, mesmo dentro das instituições da UE, Charles Michel e Ursula von der Leyen não conseguem concordar em nada. Veja, por exemplo, como há agora três documentos diferentes no SPD sobre a questão da China. Portanto, há uma cacofonia de palavras vindas da Europa de momento. Mas a mensagem fundamental é que a China se tornou um tópico, um tema que não é apenas exclusivo das conversas sobre política externa ou de um pequeno círculo de pensadores.
Por causa dos desafios que representa para a prosperidade da Europa, para a democracia, para a forma como a Europa opera e para o tipo de ordem internacional baseada em regulações, a China é algo que afeta a Europa muito de perto.
As questões sobre a futura distribuição de riqueza e de poder tornam-se uma questão de política interna. E, portanto, é uma questão que estará fortemente presente nos debates políticos internos nos vários Estados-membros. Vai ser difícil, claro, falar a uma só voz, que é sempre o que a União Europeia gostaria de fazer. Mas, ao mesmo tempo, todas as diferentes declarações que vamos ouvindo apontam na mesma direção, dizendo que a forma como a China opera é um desafio para nós e que a forma como a China está a distorcer mercados é um problema para a economia europeia.
Temos de aumentar a nossa própria resiliência e competitividade. E então, sim, há perguntas sobre como isso pode ser feito, com que grau de compromisso e em que área se deve cooperar. Mas isso parece-me um envolvimento normal ao nível das políticas face à complexidade que a China representa.
Ao cabo de 14 meses de guerra, consegue definir melhor o papel que a China pretende desempenhar nesta guerra?
A questão sempre se centrou no tipo de papel que a China poderia desempenhar num possível acordo, negociação de cessar-fogo e cenário pós-guerra. E acho que essas esperanças foram esmagadas de forma bastante significativa. Passámos de descrever o apoio da China à Rússia como tácito e furtivo para algo que já não é subtil e está agora muito claro e é muito consistente.
As visitas de Xi Jinping e do ministro da Defesa à Rússia são muito claras na sua mensagem de reforço do apoio a Putin e ao seu regime, com o aumento das cooperações militar e económica e a construção de uma parceria mais estreita para uma futura ordem mundial que a China e a Rússia estão a vislumbrar.
As esperanças de que a China desempenhará um papel incrivelmente construtivo nestas questões são muito limitadas. É mais uma questão de a China também poder desempenhar um papel ainda mais destrutivo. Tentar evitar que isso aconteça parece ser o tipo de mensagem que os europeus têm adotado agora, com os seus apelos para garantir que a China não entregue armas à Rússia.
Ao longo desta guerra, Kiev tem assumido um discurso cauteloso sobre a comentada associação direta entre a China e a Rússia. Kiev diz concordar até com alguns pontos do plano de paz proposto por Pequim. Como analisa a relação entre a China e a Ucrânia?
Penso que essa é uma jogada muito inteligente por parte do Governo ucraniano neste momento. O convite ao Presidente Xi para visitar a Ucrânia foi uma cartada muito boa ao dizer, "se quer conversar, venha aqui, veja o que está a acontecer e estamos muito felizes em tê-lo por aqui". A relação económica pré-guerra entre a Ucrânia e a China foi bastante significativa. Há interesse em manter um relacionamento, também para garantir que a China não apoie ainda mais a Rússia.
Também há muito realismo em Kiev sobre o que se pode esperar de Pequim. O nível de frustração foi crescendo e acho que podemos ver isso nas declarações do Governo ucraniano e nos contínuos apelos para uma conversa real.
Há que dizer que o facto de Xi Jinping não ter conseguido ligar sequer a Zelensky é bastante significativo. Ele poderia ter-lhe telefonado nos primeiros dias da guerra, quando toda a gente no mundo estava a ligar ao Governo ucraniano. Xi Jinping poderia ter proferido apenas alguns chavões e não teria tido grande importância, mas teria acontecido. E não teria criado o precedente deste longo silêncio entre a Ucrânia e a China. E isto agora tornou-se um assunto, toda a gente está a assistir e a controlar quando e como acontecerá essa chamada. Esta é uma situação que o Governo chinês criou para si mesmo. Criou um problema diplomático que não deveria ter.
A China e a Rússia têm afirmado uma linha de poder no mundo alternativa ao Ocidente, nomeadamente a Europa e os Estados Unidos. O Presidente brasileiro esteve em Pequim e temos assistido a debates animados sobre o posicionamento de alguns destes países em relação à Guerra na Ucrânia. O que quer a China dos países em desenvolvimento?
Para o Governo chinês é importante agora construir alianças e parcerias em todo o mundo, mostrando que a China não está isolada e que são os Estados Unidos que estão a desenvolver uma política de isolamento da China, quando na verdade é a China que está a envolver-se com o mundo. E esta é uma campanha que está a ser relativamente bem-sucedida, com alcance diplomático massivo após três anos de paralisação diplomática.
Temos de nos lembrar que o Presidente chinês não viajava há quase três anos e que há muito tempo que não havia um envolvimento diplomático. Portanto, a agitação que estamos a ver agora também é resultado dos três anos anteriores, da abordagem de isolamento Covid Zero, do auto-isolamento em que o Governo chinês se colocou e da tentativa de agora reviver muitos desses relacionamentos. Isto é útil para vários Estados no mundo em desenvolvimento, mas também para a Europa, de forma a manter aberto esse corredor de futuras relações económicas potenciais de envolvimento futuro.
Temos de deixar muito claro na Europa que nem todos esses compromissos são necessariamente sempre do nosso interesse. O tipo de ordem mundial que está a surgir através das ideias que a China tem, através das Iniciativas de Segurança Global, Desenvolvimento Global e Civilização Global, são bastante claras e são muito voltadas para fora.
A China está a oferecer ao mundo o seu poder como uma ordem alternativa, com muito menos foco no sistema liderado pelo Ocidente e pelos EUA, com o qual temos sido muito prósperos e muito bem-sucedidos aqui na Europa nas últimas décadas.
Como analisa os exercícios militares chineses em Taiwan num contexto em que o mundo vive uma guerra onde está em causa a integridade territorial de um país?
O que estamos a ver em Taiwan é um desenvolvimento importante que passou despercebido por muito tempo. O Governo chinês tem tentado cerrar as suas fileiras em torno de Taiwan para estar presente militarmente de uma forma que continua a avançar e a aprimorar as suas capacidades.
Assim, nos últimos anos, não só vimos um aumento maciço no movimento de caças em torno da ilha ou incursões na zona de defesa e identificação, como também vimos um aumento massivo de navios nas imediações da ilha. Tudo isso para sinalizar a vontade chinesa, mas também para aumentar as suas capacidades militares em caso de invasão. Portanto, podem ocorrer manobras militares massivas justificadas internamente por um bom motivo, como, por exemplo, a visita de Nancy Pelosi a Taiwan ou a conversa do líder de Taiwan com Kevin McCarthy.
São incidências usadas para ir mais longe e fazer coisas que não foram antes tentadas. O Governo chinês está a impulsionar a sua presença militar na região, a desenvolver as suas capacidades militares e a tornar as coisas aceitáveis, normalizando as que antes não eram aceitáveis. E se continuarmos a dizer que não queremos uma mudança do status quo no Estreito de Taiwan, na verdade não estamos a descrever corretamente a realidade. Temos de definir corretamente que tipo de status quo é que queremos preservar.
A China está consistente e constantemente a mudar o status quo a seu favor no Estreito de Taiwan com a sua presença militar. O Governo chinês considera fundamentalmente que Taiwan faz parte do seu território. Portanto, não há uma questão de soberania aqui que seja afetada a esse respeito.