A Guerra Colonial começou há 60 anos. A 15 de março de 1961, um massacre no norte de Angola fez rebentar um conflito que durou mais de uma década e marcou várias gerações. De portugueses, mas também angolanos, moçambicanos e guineenses.
Durante 13 anos, milhares de jovens foram mobilizados para uma guerra que não queriam travar. Muitos deles não voltaram e, noutros casos, as marcas físicas e psicológicas perduram até hoje.
A 15 de março de 1961, o Norte de Angola era varrido pela violência. Homens, mulheres, crianças, brancos e negros, às centenas, não escapam à brutalidade do movimento nacionalista União das Populações de Angola. Em zonas como a dos Dembos, as mortes e mutilações multiplicam-se.
“O que se deu foi um massacre generalizado, selvagem, da população. Foram mortos, principalmente, brancos, mas, no fundo, tudo o que aparecia pela frente. Foram mortos com requintes de selvajaria, que não são normais”, diz à Renascença António José Telo, professor catedrático de História na Academia Militar.
Segundo António José Telo, “isto é algo que qualquer movimento de guerrilha, posteriormente, condenaria. Mas, nessa altura, não. Obedeceu a um pensamento muito simples, era tentar repetir em Angola o que tinha acontecido com o Congo belga. Fazer uma coisa de tal modo horrorosa, de tal modo selvagem e cruel que houvesse um movimento de recuo generalizado e que Portugal saísse a correr dali, tal como a Bélgica tinha saído a correr do Congo. Mas isso não aconteceu”.
"Portugal mergulha nas guerras sem fim à vista”
Portugal não recuou, assinala António José Telo. E, contra o espírito internacional da época, a resposta militar avança. A força dos massacres ultrapassou a dos argumentos. Era um momento quente do país. No mês seguinte, acontece a designada "abrilada", com a estratégia do regime para África a ser posta em causa pelo então ministro da Defesa. “Era um movimento liderado por Botelho Moniz, que julgava ter a hierarquia consigo. Visava, pura e simplesmente, obrigar a mudar a política para África e aceitar os princípios aprovados na ONU, nomeadamente, pensando na aplicação da autodeterminação."
“Uma coisa é dizer 'nós aceitamos a autodeterminação', outra coisa é dar a independência, que, depois, teria que passar por um processo, eventualmente, com eleições, um processo de democratização de Portugal. E quem estava à frente disto era a alta hierarquia militar, sobretudo do Exército. Aquilo que gosto de chamar a 'Geração NATO', que se formou depois de 1949 e que tinha à cabeça o ministro da Defesa. E a Abrilada é pensada, não como um 25 de abril, mas como um pronunciamento.: 'Eu com o apoio da hierarquia militar tenho que afastar um senhor chamado Oliveira Salazar e tenho que mudar a política para África, de acordo com o pensamento americano e com as principais resoluções aprovadas pelas Nações Unidas'”, continua o historiador.
“Ora, é neste momento que surge a luta armada e tem um efeito arrasador. Mata os reformistas em Portugal. Com o efeito daquele massacre, com o choque provocado, deixa de haver qualquer hipótese de reforma. Está justificado aquilo que seria a palavra de ordem do regime que era para Angola, depressa e em força. Aos reformistas são-lhes cortadas as pernas. Botelho Moniz é demitido, o Chefe do Estado Maior do Exército é demitido, o, na altura, brigadeiro Kaúlza de Arriaga assume preponderância e Portugal mergulha nas guerras sem fim à vista”.
O historiador acrescenta que a ideia de que a guerra aguentaria a situação indefinidamente e que, mais tarde ou mais cedo, o mundo haveria de mudar. Não aconteceu. “Era um objetivo estratégico impossível. Foi, politicamente, um erro colossal, que, hoje, ainda estamos a pagar”, conclui.
Instrução não preparava para a guerra subversiva
A pulsão do regime para uma resposta rápida ao vigor dos movimentos independentistas revelou-se adversa. Milhares de jovens inexperientes foram chamados para a guerra. Os primeiros contingentes não estavam prontos a combater a guerrilha. O coronel José Belchior, 82 anos, explica que “nem iam muito bem armados, nem muito bem equipados. Ma,s depois, naturalmente, a instrução, aqui, na chamada metrópole, foi melhorando”.
O militar sublinha, contudo, que, antes dos acontecimentos de 1961, a instrução não preparava para a guerra subversiva. Acrescenta que ao longo dos nove anos e meio nas guerras de África, nas cinco comissões de serviço em Angola e Moçambique, contribuiu para essa formação de militares. Mais tarde, comandou várias companhias de Comandos, em muitas das missões levadas a cabo pelo Exército português.
Com o adensar do conflito, as baixas aumentavam dia após dia, de ambos os lados. Angola, Guiné e Moçambique eram palco de violentos confrontos. O regime sabia que não era possível vencer. Enfraquecia. O coronel José Belchior, atualmente presidente do núcleo do Porto da Liga dos Combatentes, diz, numa perspetiva pessoal, que não antecipar uma solução política em África, foi um erro. “Era um conflito que o poder político da altura podia ter evitado. Se houvesse conversações atempadas podia ter-se chegado a uma situação de acordo antes de eles terem iniciado os movimentos de libertação”, afirma.
Deixar África era a outra saída
Ao longo dos anos, chegavam às grandes cidades deslocados, em fuga. Deixar África era a outra saída. Ana Maria Ferreira tinha oito anos quando chegou a Angola, ao Lobito, em 1956. Hoje, com 73, recorda a lentidão das notícias da guerra. Sabia-se dos combates, das emboscadas, das operações no mato, mas o quotidiano de Luanda, para onde se mudou, não era muito afetado. “Continuávamos a ir ao cinema, à praia, íamos para todo o lado. Tínhamos receio, mas não o suficiente para achar que devíamos ficar em casa, ou não pudéssemos sair”, conta.
Quando regressa, já em 1975, Ana Maria Ferreira, trabalhava na Sorefame, na capital angolana. O marido tinha combatido na guerra. Era Comando. O medo de possíveis represálias atormentava a família. O futuro dos filhos era outra preocupação. Seis décadas depois, olha para trás e talvez não tivesse deixado África. Tem saudades. Foi lá criada. Havia espaço para todos. “Dava para toda a gente e mais alguém. Aquilo é catorze vezes maior que Portugal. Dava para brancos, mestiços, negros, dava para toda a gente, havia trabalho para todos. No entanto, as coisas não se resolveram bem, ou não foram bem aceites, talvez não houvesse tanto diálogo como agora”, desabafa.
Desde 1958 que os movimentos nacionalistas eram do conhecimento do regime. Era oficial a indicação de que o conflito só seria resolvido pela via política. A guerra serviria para ganhar tempo. Não foi aproveitado. 60 anos depois, a ferida continua aberta. O professor jubilado António José Telo acredita que a História da guerra colonial está ainda por fazer. “Há testemunhos, há descrições, felizmente, muitos e importantes, mas continua a ser um desconforto falar sobre a guerra”. Lamenta que, sobre ela, ainda recaiam leituras ideológicas que impossibilitam tratar o tema com o necessário rigor.
"A relação com África, depois de treze anos de uma guerra inútil, é diferente daquela que teria surgido após a criação de um processo de autodeterminação. Veja-se o caso francês, com territórios noutros países e regiões do globo, onde a população, nas urnas escolheu continuar ligada à França. Em Portugal isso jamais poderia acontecer, porque esse caminho foi negado. O caminho foi o de resolver militarmente o problema, quando, como dizia o Exército, o problema não tinha solução militar”.
Na leitura do coronel José Belchior uma visão atempada podia ter evitado "os sacrifícios de muita gente". Contornar o conflito teria também trazido vantagens em termos socioeconómicos para ambas as partes e uma melhor relação entre Portugal e as suas antigas ex-colónias.