Desde o início do Projeto CARE, a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) acompanhou 2.107 crianças e jovens vítimas de abusos sexuais, indicam dados divulgados esta quarta-feira. Mas este é um pequeno número em relação à realidade.
“Estamos a falar do número de pessoas que pedem ajuda à APAV, que é sempre inferior ao número de pessoas que denuncia situações e que, por sua vez, é muito inferior aos casos efetivamente ocorridos. Como os próprios números reportados de crimes, independentemente de as pessoas virem a beneficiar do nosso apoio. Claramente, todos estes números são a ponta do icebergue. Temos aqui um problema com que lidar, uma problemática muito séria que exige intervenção especializada e orientada”, diz Carla Ferreira, gestora técnica da Rede CARE, em entrevista à Renascença.
A especialista refere ainda que muitos destes crimes não são reportados oficialmente, por diversas razões. “Podem ter a ver com a dificuldade em identificar a situação como abusiva, sobretudo quando se trata de crianças pequenas; com a descrença no sistema de justiça e na forma como podem ser apoiadas. E, claramente, prendem-se também com o medo, a vergonha, o receio de represálias e das consequências que essa revelação pode trazer, nomeadamente quando esses atos abusivos são praticados por pessoas muito consideradas nos meios em que se movem e que facilmente podem atacar a vítima, descredibilizando as suas queixas”.
Clara Ferreira aponta ainda o facto de as pessoas que cuidam das crianças não se aperceberem das situações ou, apercebendo-se, as desvalorizarem; de acharem que são coisas da imaginação dos mais pequenos e que é melhor deixar as coisas como estão. E que, sendo pequena, a criança não vai recordar-se.
Maioria dos abusos continua a acontecer em família
Oitenta por cento das vítimas que contactaram a APAV são raparigas ou mulheres. Contactos que foram feitos pelas próprias (especialmente a partir da faixa dos 14-17 e adultos). Mas para os mais pequenos, os casos são reportados por familiares, amigos, as escolas ou entidades (incluindo Comissões de Proteção de Crianças e Jovens) que contactam com as crianças e que se dão conta das situações.
Um total de 925 casos dizem respeito a crianças dos zero aos 13 anos. 772 referem-se a denúncias referente a jovens entre os 14 e os 17 anos e 331 foram efetuadas por pessoas com 18 ou mais anos.
O apoio da Rede CARE chegou a todos as regiões do Continente e Regiões Autónomas, abrangendo vítimas em 209 dos 308 concelhos.
Quase 92% dos abusos sexuais sobre crianças e jovens foram praticados por indivíduos do sexo masculino e mais de 4%, por mulheres. A maior parte (51%) acontece em contexto familiar.
Segundo as estatísticas do projeto CARE, a percentagem mais alta (17,5%) diz respeito a violência sexual perpetrada por pai ou mãe; 12%, por madrasta/padrasto; 4,8% por avô/avó; 5,8%, por tio/tia; 2,2% por irmão/irmã e 8,7% por outro familiar.
Quase 43% das situações ocorrem fora da família. Envolvem normalmente pessoas conhecidas, incluindo ex-namorados, amigos, vizinhos, funcionários de escolas e ligados a outras atividades que a criança e jovem frequentam.
“A verdade é que, na maior parte das vezes, estamos a falar de um familiar da vítima– até próximo – ou de alguém que ela conhece relativamente bem; que pertence ao seu circuito de vida. Só muito raramente falamos de abusadores que não conhecem a vítima”, diz Carla Ferreira.
A gestora da Rede CARE revela à Renascença que entre as pessoas que pediram ajuda à APAV se encontram algumas vítimas de abusos sexuais por parte de indivíduos ligados à Igreja Católica, do clero ou leigos. Clara Ferreira sublinha que acontece neste como noutros contextos e são muito pouco significativos.
Com a autorização das vítimas, esses casos também foram denunciados à Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica. Clara Ferreira diz que há colaboração entre as duas entidades.
Abusos podem prolongar-se por muitos anos com consequências traumáticas
As estatísticas revelam que em 6,4% dos casos houve violação; importunação sexual em 7,6%; coação sexual em 3,2% das situações reportadas e 1,1%, abuso sexual contra pessoas incapazes de resistência.
Quase 56% dos crimes são praticados de forma continuada, e isso pode querer dizer meses ou anos. “Sobretudo em contexto familiar tende a existir prática reiterada e continuada das situações de vitimização. Porque começam quando as crianças são muito novas e não têm consciência de uma prática abusiva ou porque tendem a identificar o ato como manifestação de afeto; ou quando são brindadas com alguma recompensa. No caso da família estamos a falar de situações que ocorrem de forma continuada, por vezes, durante vários anos; outras, semanas ou meses. Mas têm todas um potencial traumático que necessita de intervenção e acompanhamento especializado”, frisa Carla Ferreira.
Cada caso tem um plano de intervenção
A gestora técnica do Projeto CARE diz que todas as situações são analisadas, caso a caso, tendo em conta o tipo de atos, o contexto da vitimização, o suporte familiar que existe ou não. Também é preciso avaliar os riscos que a revelação pode trazer para a criança e jovem, nomeadamente represálias.
Depois da avaliação, é feito um plano de intervenção. “Pode haver intervenção psicológica, mais ou menos demorada, dependendo das necessidades identificadas; mas também intervenção social, em conjunto com outras entidades, acionando respostas sociais. Além do apoio jurídico – para as crianças e famílias cuidadoras – em relação aos seus direitos, o que pode implicar ajuda no pedido de indemnizações, a requerer medidas de coação, medidas de proteção, além do acompanhamento de um técnico da APAV nas diligências em que a criança tenha de participar.
“Esse apoio pode ser prolongado no tempo, enquanto for preciso. Não termina com o processo-crime e destina-se não apenas à criança/jovem, mas também à família cuidadora. O objetivo é ajudá-la a recuperar desta situação potencialmente traumática e reintegrá-la na sua história de vida”.
Apoio especializado: quanto mais cedo, melhor
A violência sexual é geralmente traumática para as vítimas. Mas Carla Ferreira revela que, em muitos casos, “as pessoas só nos procuram quando já são adultos, na idade em que já se conseguiram libertar do contexto abusivo ou então, por ser na altura em que iniciam a sua vida sexual. E apercebem-se que há esse bloqueio relativamente à situação de vitimização passada”.
Dificuldades maiores que tendem a existir especialmente quando não tiveram qualquer apoio ou apoio especializado. “Estamos a falar de situações que aconteceram há muitos anos, na altura não foram valorizadas, as vítimas não tiveram apoio e o potencial traumático expandiu-se fortemente. E vai condicionar muitas dessas pessoas, agora que são adultas”.
Clara Ferreira sublinha que o objetivo não é que as pessoas esqueçam, mas que integrem essa vivência negativa – como outras menos positivas que todos vamos tendo ao longo da vida – no seu dia-a-dia e se tornem adultos perfeitamente funcionais. “Isso só é possível quando há uma intervenção especializada desde muito cedo”.
Muito graves são os casos em que as crianças foram vítimas aos cinco, seis, sete anos; tentaram contar a alguém da família ou próximo, essa pessoa não valorizou, achando que era imaginação da criança. Depois, “aos 20, 22, 23 anos, quando essa ‘criança’ vem pedir apoio especializado, já vemos pessoas que nos chegam com perturbações psiquiátricas, com depressões, que condicionam a sua vida normal. E nestes casos, é muito mais difícil intervir porque há um conjunto de vivências que se cumulam à situação de violência sexual”, diz Carla Ferreira.
Na faixa dos 14 aos 17 anos (em que se regista o maior número de pedidos de apoio à APAV) já são algumas das próprias vítimas a fazer a denúncia.
“E percebemos que há um número significativo de abusos que aconteceram bem mais cedo. Estimamos um terço das situações. E, claramente, em relação aos maiores de 18 anos. Aí, de certeza, aconteceu na infância e temos tido pessoas com 20,30, 40 anos a contactar-nos. Nos últimos tempos ainda temos visto mais essa tendência. Chegam bastante marcadas”, frisa a especialista.
É muito importante apostar na prevenção
O Projeto CARE inclui ações de formação e sensibilização destinadas especialmente às crianças e jovens, desde o pré-escolar até ao ensino secundário, em todo o país. Aposta na continuidade (com 4-5 sessões para cada ciclo de ensino) e têm ações e temáticas adaptadas a cada idade.
No pré-escolar e 1º ciclo, domina a componente lúdica. Para o 2º ciclo, em fase de transição, já é introduzida alguma reflexão e para o 3º ciclo e Secundário, a perspetiva é de reflexão e de pensamento mais abstrato.
“Com os mais pequeninos (a partir dos três anos) falamos do ‘toque bom’ e do ‘toque mau’; do ‘segredo bom’ e do ‘segredo mau’, as partes do corpo que são privadas e as que não são, as relações com pessoas adultas de confiança. Ajudamos as crianças a identificar situações que as deixam desconfortáveis, numa lógica mais ampla do que a violência sexual propriamente dita”, explica Carla Ferreira.
“No 2º e 3º ciclos e Secundário voltamos a falar das partes privadas do corpo (especialmente para o 2º ciclo, com crianças entre os 10-12 anos). Mas também a violência sexual online, a violência sexual em diversos contextos, por exemplo, no namoro e em relações ocasionais. E obviamente, também falamos do suporte social para orientar os pedidos de ajuda.”
O Projeto CARE teve início em 2016, desde o início com financiamento da Fundação Calouste Gulbenkian e, a partir de 2017, da Iniciativa Portugal Inovação Social. Mas deverá terminar no fim deste ano.
“É quando termina a linha de financiamento, mas a APAV está a fazer todos os esforços para continuar a resposta, com a qualidade e transparência que todos lhe reconhecem. Não quer dizer que não tenha que sofrer algumas adaptações, diz a gestora técnica da Rede CARE que sublinha a mais-valia do projeto, para as entidades que beneficiam do trabalho de formação e prevenção e, em última instância, para as próprias vítimas.