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Mal chegara a Portugal, o vírus logo deixava em sobressalto o outro lado da estrada. Filipe Soares, comercial numa empresa de componentes de calçado, vive em Santo Estêvão de Barrosas, Lousada, mesmo em frente à fábrica onde surgiu o primeiro foco de Covid-19 no país. Explica à Renascença que a notícia do primeiro caso acordou a região para a realidade da pandemia.
“Quando surgiu aqui o surto foi uma novidade. Na altura, foi complicado porque foi mesmo aqui ao pé. A partir daí, toda a gente teve noção da realidade. Até então, não tínhamos bem a noção do problema que estávamos a viver”, sublinha.
O primeiro caso daquele que se tornaria o primeiro foco de contágio era um trabalhador vindo de Itália. Chegou sem sintomas e logo surgiram outras infeções por Sars-Cov2. Muitas delas em elementos da mesma família.
O vírus avançou e apanhou o marido de Sílvia Cunha. A propagação, sabemos hoje, seria inevitável. “O contágio do meu marido foi, à partida, através do patrão, do dono da empresa, que é nosso cunhado. Para ter noção, a minha sogra juntava 30 pessoas à mesa, ao fim-de-semana, quinzenalmente. Portanto, este contágio, para além do trabalho foi também familiar, por assim dizer”, explica.
Sílvia Cunha é também comercial. Está ligada ao calçado – como, de resto, grande parte das pessoas, na região. Mora em Idães/Barrosas, a freguesia ao lado, já no concelho de Felgueiras. Foi a primeira doente confinada em casa. Com o marido no hospital dividiu os dois pisos com o filho mais novo. O apoio dos amigos foi fundamental.
“Foram momentos de muita tensão, com muitas perguntas, foi difícil”. Sílvia deixa ainda um elogio às autoridades de saúde locais, por todo o trabalho e apoio à população.
"Críticas em cima de críticas”
Em Santo Estêvão, há marcas de uma outra dificuldade. A de conviver com as redes sociais e os inúmeros ataques aos responsáveis e funcionários da fábrica.
As acusações estavam ali, à vista de todos, recorda o vizinho Francisco Martins. “Por causa da fábrica, de terem vindo de Itália, eles eram os culpados da chegada do vírus a Portugal. Eles iam aos telemóveis e viam críticas em cima de críticas. Estavam um pouco frustrados, naturalmente. E eles não tiveram culpa. Ninguém imaginava o que ia acontecer. Agora, está tudo normal.”
Com o tempo, as críticas desapareceram, mas a mágoa persiste. O dono da empresa continua a remeter-se ao silêncio. Outros familiares também recusaram falar à reportagem da Renascença.
Depois da paragem forçada devido à quarentena, o negócio acabou por resistir. As seis dezenas de trabalhadores continuam no ativo, embora num setor vital para a região nem todos sobrevivam. A incerteza é nota dominante.
Filipe Soares vai tendo trabalho, contudo, no último ano nem sempre aconteceu. Lembra, sem saudade, os primeiros meses de pandemia. “Em março e abril, houve muitas anulações de encomendas, outras ficaram à espera, devido às dúvidas sobre a evolução da Covid-19, e estamos a falar do mercado estrangeiro. Depois, em maio e junho, as coisas foram fluindo e trabalhou-se bem até ao final do ano. Há empresas que fecharam, as mais pequenas, que trabalhavam para outras de maior dimensão. A fase em que estamos a viver é que vai ser mais complicada”, antecipa. Há muitas incógnitas quanto à reabertura das lojas e as vendas refletem sempre uma qualquer estagnação, quer em Portugal, quer no estrangeiro.
Dependente da exportação e da evolução dos contágios, Sílvia Cunha não esconde que a atividade profissional estagnou. “A abertura para receber profissionais como eu deixou de existir. Não tenho conseguido novos clientes, porque não estou diariamente no mercado”.
“Neste momento, a prioridade é segurar aqueles que temos ou que angariámos durante uma temporada. E não posso estar preocupada com a angariação de outros. A vida está incerta. Não sabemos se as lojas vão abrir, aqui ou fora de Portugal, o que afeta quem, como eu, faz exportação”, refere. “Não sabemos”.
Parado ficou, também, o projeto familiar de uma vida. Depois da venda relâmpago da casa, no final de 2019, no início de 2020 Sílvia Cunha e a família tiveram de a abandonar. Com o país fechado a construção do novo lar foi sendo adiada.
“Íamos começar a trabalhar no nosso projeto e ficou tudo parado. Estou a viver na casa da minha mãe provisoriamente, porque durante o período de maior incidência de Covid-19 os vários serviços foram ficando fechados, mais lentos e não consegui começar nada do novo projeto de vida. A nossa vida está encaixotada, digamos”, conta.
Entretanto, o processo já dá os primeiros passos, com “todos os papéis metidos” na autarquia. Aguardam-se as decisões administrativas para que a família possa dar andamento ao projeto de uma vida. Para já, têm a vida em caixotes, à espera de que as vacinas contra a Covid-19 sejam os alicerces de um novo futuro.