“True Detective”: encontrar a luz no inferno
15-09-2017 - 06:26

Na primeira temporada, estivemos na América profunda dos pântanos sulistas. Na segunda, estamos no pântano urbano de Los Angeles, corrupção, violência, amoralidade.

No final do clássico “Seven” (1995), do realizador David Fincher, a personagem de Morgan Freeman, o detective Somerset, diz o seguinte em voz off: “Hemingway escreveu que o ‘mundo é um local lindo e merece que lutemos por ele’. Eu concordo com a segunda parte”.

Nic Pizzolatto, autor da série “True Detective” (HBO), parte desta ideia que evita em simultâneo o melaço enjoativo do optimismo e a inércia do pessimismo.

“True Detective” apresenta-nos um retrato negro da América. Na primeira temporada, estivemos na América profunda dos pântanos sulistas numa inédita incursão televisiva pelos terrenos literários de Cormac McCarthy. Nesta segunda temporada, estamos no pântano urbano de Los Angeles, corrupção, violência, amoralidade. Nic Pizzolatto é quase tão niilista e apocalíptico como David Fincher, outrora chamado o cavaleiro do apocalipse de Hollywood. Mas deixem-me frisar o quase. Não sei se Nic Pizzolatto é católico, mas a estrutura da série e das personagens é católica da cabeça aos pés. Ele mergulha-nos no mal, força as personagens a um confronto com o pior da natureza humana, mas, no final desse processo, temos um vislumbre de luz.

A grande figura desta segunda temporada é a detective Ani Bezzerides. A actriz que a representa, Rachel McAdams, afirmou que ficava enjoada durante as filmagens. Percebe-se porquê. Ani faz a travessia da terra devastada - uma Califórnia negra, quase sem sol, corrupta, poluída, cheia de gente amoral ou mesmo imoral; é um retrato que faz lembrar “Chinatown”, o universo de James Ellroy (“LA Confidencial”, “Dália Negra”) e de Michael Mann (“Colateral”, “Heat”). Na estética e até na moral, arrisco dizer que esta segunda temporada de “True Detective” está encostada a “Heat”, um filme muito cá de casa.

Uma ilha de decência no meio do esterco, Ani confronta-se com as trevas exteriores, sobretudo com o tráfico de mulheres. Mas, acima de tudo, confronta-se com as suas trevas interiores que têm a raiz num mal sofrido em criança. O inferno exterior é um veículo para a personagem confrontar o seu inferno interior. Uma cena de extrema violência física desperta nela algo que estava debaixo da superfície, algo que a reprimia, que a prendia, que não lhe dava sossego; um mal invisível que ela não conseguia atacar porque estava reprimido. A partir daquela redescoberta, Ani enfrenta o medo, sai do inferno e entra no purgatório.

Numa cena comovente com outro detective, Ray Velcoro (Colin Farrell), Ani conversa finalmente com alguém sobre a dor que a envolvia. Retribuindo a confiança, Ray também se abre com Ani, confessando o seu grande pecado. Esta dupla confissão que abre o amor entre os dois comove qualquer um. Não chorar aqui é sinal de doença. Tal como ela reconhece no fim, “salvaram-se um ao outro” naquele momento de confiança.

Não se pense porém que a série nos oferece o chamado final feliz. Isso seria impensável. Mas também é impensável ver niilismo em Nic Pizzolatto. No final da série, encontramos duas mulheres, um bebé e um homem honesto; quatro figuras resistindo, continuando, acreditando na ideia de que, apesar de tudo, merecemos um mundo melhor; quatro figuras acreditando na ideia de que a podridão do mundo não nos iliba de lutar por ele. Na liderança do grupo, Ani Bezzerides: uma personagem inesquecível, frágil mas áspera, implacável mas doce, pessimista mas incapaz de deixar cair o dever e a decência.