Tem quase 80 anos e acaba de escrever um livro sobre o “kitsch”. É a sociedade de consumo que continua a interessar ao filósofo francês Gilles Lipovetsky, autor que, na década de 80, lançou o livro “A Era do Vazio”. Hoje, quase 40 anos depois, o ensaísta diz que vivemos numa sociedade híper individualizada, mas onde resistem alguns ideais.
Em entrevista à Renascença, em Braga, onde participou na primeira edição do Festival da Utopia, o pensador diz que vivemos hoje um “fenómeno” de “despolitização crescente da população”. Preocupado, Lipovetsky elenca como ameaças à democracia, casos como o terrorismo, a inflação ou a crise climática. Já sobre os populismos que considera manipuladores e mentirosos, lembra que as democracias não têm vacilado.
Questionado sobre a situação de Portugal e de um Governo demissionário, refere que é a democracia a funcionar. Contudo, considera que casos que levantam suspeita sobre a classe política contribuem para a descredibilização e afastamento do eleitorado. Já sobre as ações dos jovens em defesa do clima, Lipovetsky manifesta sérias dúvidas sobre a eficácia dos meios usados.
Os seus livros sempre ajudaram a pensar o mundo em que vivemos, em particular as sociedades de consumo. O mundo de hoje cheios de “influencers”, “selfies” e “likes”, é a evolução que esperava quando escreveu a ‘Era do Vazio’?
Quando escrevi a ‘Era do Vazio’, os pequenos computadores estavam a surgir. Havia computadores, mas ainda não havia smartphones, redes sociais, tudo isso. Então, eu não poderia ter previsto essa comunicação via Internet. Mas este fenómeno, das “selfies”, e dessas coisas todas, são novas demostrações do “neo individualismo”. São formas onde todos se querem destacam, principalmente na internet. É uma espécie de “marca pessoal”, como dizemos agora.
Cada um está sempre a destacar-se e a falar de si o tempo todo. Você diz: “estou num restaurante, estou a comer isto ou aquilo” e fotografa o que está a comer. É um hiperindividualismo.
Você tira uma a 50 fotografias na praia! Então, quando escrevi a ‘Era do Vazio’, isso ainda não existia. Havia outras formas, mas vemos que as novas tecnologias contribuem para perpetuar esta nova cultura, uma certa auto-obsessão, um autoaperfeiçoamento. Isso não é abjeto, mas não é tudo igual, muitas vezes são coisas irrisórias. Devemos esperar formas de comunicação mais ricas.
Não gosto de criticar o sistema, mas a verdade é que entre os jovens, por exemplo, não é algo que seja seguido como modelo. Agora, na vida privada, isso pode ser feito, mas na escola não é ensinada essa linha de princípios.
Ao mesmo tempo que temos esse hiperindividualismo, temos também movimentos de massas com as manifestações como as que aconteceram em França, com os Coletes Amarelos. Agora vemos as manifestações contra Israel ou a favor da Ucrânia. Como vê aqueles que aderem aos movimentos de massa, num mundo cada vez mais individualizado?
Se tomarmos o exemplo dos Coletes Amarelos, podemos dizer que é um movimento coletivo, mas não é um movimento de massas. No entanto, não estou certo de que não existam aspirações individuais, porque os Coletes Amarelos manifestaram-se para manter o seu poder de compra.
Queriam poder continuar a ir ao cinema, aos restaurantes, ou ir de férias. Com as medidas que foram tomadas para aumentar o preço dos combustíveis, eles pensaram que isso iria baixar um pouco o seu poder de compra, por isso defenderam o seu poder de compra por causa das aspirações individualistas e consumistas.
Portanto, os Coletes Amarelos, mesmo que seja uma luta coletiva, não é uma luta contrária às aspirações individuais de bem-estar ou de consumo.
Mas quando vemos manifestações contra Israel, é a mesma coisa?
Não. No caso de Israel, são lutas em nome de valores humanos ou políticos. Numa democracia, existem ações que são realizadas em nome de valores diferentes. Isso significa simplesmente que a essência dos valores individualistas, não destruiu todas as outras aspirações.
Podemos ser um consumidor, adorar viajar, a moda, mas ao mesmo tempo podemos defender Israel ou os Palestinos. Não é contraditório! Significa que a dinâmica “híper individualista”, não destruiu os ideais!
Na Europa, estamos a assistir à ascensão das políticas populistas. Podemos dizer que o populismo está a contaminar a política? Qual o perigo para as instituições democráticas?
A meu ver, o perigo do populismo, não é mesmo do fascismo nas nossas sociedades. Porque vejo que, onde houve experiências populistas na Europa, a democracia não vacilou. Houve novas eleições, os governos continuam por isso acredito que a ameaça não existe.
O perigo do populismo é que ele engana as pessoas. Posso lhe dar um exemplo macroscópico, que é o Brexit. O Brexit não foi um pequeno detalhe. Eles separaram a Grã-Bretanha da Europa com base em mentiras, em verdadeiras mentiras. O populismo é perigoso, porque mente e apenas fornece soluções falsas.
Podemos ver claramente que o Brexit não enriqueceu os ingleses, eles estão vivem bem pior e agora lamentam-no. Quando vemos as sondagens dos nossos amigos ingleses, dizem bom, agora 56% dos ingleses não votariam no Brexit. Eles foram enganados! Os populistas manipulam, enganam a opinião pública, com consequências consideráveis.
Agora existem outros perigos. Dou-lhe o exemplo americano e de Donald Trump. O discurso populista divide a sociedade. Coloca os grupos uns contra os outros. Considerando que um governo deveria, em vez disso, tentar defender uma visão una da sociedade, vemos que existem por isso ameaças, inegavelmente.
Os governos populistas não são necessariamente sempre iguais, depende do país. Mas acredito que o populismo não é a porta de entrada para o totalitarismo que houve entre as guerras. Eles podem usar a democracia, e de uma forma perversa, mas não é o que aconteceu entre as guerras. É diferente.
Hoje vemos muitas manifestações em defesa do clima. Em Portugal temos jovens que atiram tinta contra governantes ou contra quadros de Picasso num museu. Como vê os meios a que esta geração recorre. Acha que são eficazes para a sua luta?
Percebo o apego deles à preservação do meio ambiente. É uma causa nobre. Mas as ações que realizam, são simbólicas, mas não oferecem soluções.
Em alguns casos, isso pode ser discutível. Pode haver por exemplo, movimentos que são contra a construção de autoestradas ou contra a construção de certos aeroportos, podemos lutar por isso. Mas veja, eles têm ações negativas, dizem apenas para parar. Mas a crise que temos não consiste apenas em parar.
Devemos encontrar uma forma diferente. Não é apenas dizer menos consumo, menos produção. Nós temos de produzir. É necessário. A população mundial está a aumentar. Não podemos encontrar soluções, simplesmente, na proibição!
A solução passa por uma resposta da Ciência?
Estou convencido de que a solução deve ser encontrada no incentivo financeiro e estatal à promoção das energias renováveis. Sobretudo, hoje, na maior parte dos casos, com a energia eólica, ou com parques de energia solar e quem sabe, em breve talvez o hidrogénio.
Como vê, são soluções diferentes destas ações simbólicas das quais estávamos a falar, porque assim estamos a criar ferramentas para uma produção responsável e sustentável. Portanto, temos de investir na investigação para encontrar uma agricultura limpa, para nos livrarmos dos efeitos dos pesticidas. É tudo isto.
Temos de propor coisas diferentes. Não é por atirarmos tinta a um Picasso! Isso não mudará nada.
Em Portugal temos agora um Governo demissionário. O primeiro-ministro demitiu-se devido a alegadas suspeitas que implicam o seu nome na Justiça. Como vê esta situação?
Quando um Governo se demite, e provoca novas eleições, não tenho nenhum comentário específico a fazer. Faz parte da democracia, se quiser. Não conheço o contexto político português suficientemente bem para fazer um julgamento. Simplesmente, faz parte do jogo democrático
Mas acha que casos como este podem descredibilizar a política e sobretudo afastar as novas gerações do ato eleitoral e promover a abstenção?
Bem, esse é um problema maior e que não é específico de Portugal. Na verdade, existe toda uma categoria de novas gerações que não vota. É uma questão bastante complexa. Na realidade, eles dizem que a vida política ou não lhes interessa, ou que não acreditam na eficácia do seu voto, porque não têm confiança na classe política.
Há outros que dizem que o voto é inútil, os deputados são corruptos, só se interessam por si próprios e não se interessam pelos cidadãos. E por isso, não votam.
Em terceiro lugar, há também os desiludidos. São pessoas que ficaram desiludidas, por exemplo, com o seu partido político. Como não querem votar nos outros partidos, não votam.
Portanto, estamos de facto diante de um fenómeno denominado “despolitização” crescente da população que já não participa no jogo eleitoral das democracias. Isso não é bom!
A democracia requer a participação ativa dos cidadãos. É um fenómeno que vemos em quase toda a Europa. Isso é preocupante. Contudo, não é apocalíptico, porque vemos que em certos casos os cidadãos se mobilizam e votam. Eles não votam quando descobrem que, de qualquer forma, não se reconhecem, ou não veem as verdadeiras questões da política.
Por outro lado, vemos que há cidadãos que não votam, mas isso não significa que os assuntos públicos não lhes interessam. Eles envolvem-se, mas em outros lugares. Em associações, na ação ecológica. Por isso, acho que o individualismo não deve ser equiparado ao puro e simples desinteresse pelos assuntos públicos. É uma tendência, mas não é absoluta.
Vemos que há muitos grupos que se mobilizam e que estão a fazer coisas. E depois também existem ações filantrópicas ou de solidariedade para com categorias sociais. Mas, inegavelmente, existe hoje uma doença na vida democrática. A solução? Infelizmente devo dizer que não tenho uma solução pronta no meu bolso!
Portugal vai celebrar 50 anos de democracia no próximo ano. O que haja que é hoje importante para a vida em liberdade?
É verdade que agora a liberdade tal como Portugal a conheceu, depois do regime de Salazar, é um oxigénio extraordinário. As gerações mais jovens nasceram com liberdade. Não é a mesma coisa dos seus pais que viviam com a Censura. Portugal modernizou-se muito, o nível de vida melhorou muito, tornou-se um país dinâmico em todos os sentidos, perfeitamente democrático.
Mas a verdade é há novos desafios que permanecem. Hoje, a questão que mobiliza as pessoas pela crise climática, não é a liberdade, não é isso, é outra questão. Vemos a crise migratória e percebemos que a defesa da liberdade e da democracia deve ser sempre feita.
Não podemos simplesmente dizer democracia, democracia, democracia. Temos de encontrar soluções para os problemas. Hoje a liberdade não tem o mesmo significado. Hoje vemos o terrorismo, o clima, a crise ecológica, a inflação, o trabalho. Estes são os novos desafios.
Mas se não encontrarmos soluções para estes problemas, a democracia não será capaz de se manter. A democracia também deve ser uma democracia, que encontre soluções para os problemas da vida das pessoas, incluindo a minha. Ainda acho que devemos defender a democracia. Mas não devemos acreditar que simplesmente apelar à participação dos cidadãos seja suficiente.
Se dissermos que as roupas devem ser recicladas, devemos encontrar técnicas de reciclagem. Portanto, penso que hoje devemos lutar para que haja políticas económicas que promovam isso. Estou a pensar, por exemplo, na crise escolar e na democracia. Bem, esse não é realmente o verdadeiro problema? O que devemos ensinar às crianças? Como? É um grande problema, estamos a moldar o futuro.
Como vê a crise na Educação?
A crise na educação, não é a crise da democracia. Temos de encontrar soluções. Não partilho o que por vezes é apresentado em certas sondagens, que os cidadãos europeus já não o apoiam os valores democráticos.
É verdade que existe uma fração maior que acha que a democracia é um regime como qualquer outro. Não! Penso que devemos continuar a defender a democracia, porque vemos claramente o que acontece na Rússia onde a democracia já não existe, e onde é imposta a guerra. Devemos defender a democracia, mas, ao mesmo tempo, seria um erro reduzir tudo a uma ausência de democracia. Há escolhas que devem ser feitas. Podemos não concordar com as escolhas, mas isso não é necessariamente uma ameaça à democracia. É outra coisa.