“O Alentejo profundo tem necessidades, muitas nem sequer estão inventariadas”
20-02-2022 - 09:30
 • Ângela Roque (Renascença) e Octávio (Ecclesia)

Presidente da Cáritas de Évora fala das dificuldades crescentes das instituições sociais para pagar despesas e contratar pessoal, porque as comparticipações do Estado são “todas insuficientes”, e vive-se “num espartilho”. Luis Rodrigues diz que tem sido difícil diagnosticar problemas e chegar a todos, mas só a Cáritas apoia mais de 1.500 famílias. Na região, garante, todos sentem o distanciamento do poder político.

O Estado continua sem pagar o que é justo às instituições sociais e solidárias, muitas da Igreja, e que são quem no país garante resposta e apoio, por exemplo, aos idosos e às crianças.

Em entrevista à Renascença e à Agência Ecclesia, Luís Rodrigues, o presidente da Cáritas Arquidiocesana de Évora e responsável por várias instituições na região, confirma que a pandemia agravou as condições de quem vive no interior, e lamenta que os sucessivos governos não olhem para o setor solidário como parceiro indispensável, quando em muitos locais até são o principal empregador.

Duvida que a regionalização avance, quando nem a transferência de competências para as autarquias prosseguiu como previsto. E garante que o distanciamento em relação aos centros de decisão é sentido por todos no Alentejo.

Em janeiro, antes das eleições legislativas, o setor social da arquidiocese de Évora lançou um alerta para o “estado de agonia” em que muitas instituições se encontram, por falta de apoio do Estado. Calculo que a situação de “sufoco financeiro” se mantenha. Esperam mudanças com o novo Governo?

Continuamos com esperança de que o novo Governo tome atitudes concretas e reais de forma a ajudar as instituições, que estão nessa situação.

O que é que tem faltado da parte do Estado no apoio às instituições? Quais são as falhas que sente mais no terreno?

O Estado celebra acordos de cooperação com as instituições para desenvolverem as suas respostas sociais de apoio aos idosos ou à infância, são muitas e variadas. Só que essas comparticipações que decorrem dos acordos são insuficientes para cobrir as despesas que as instituições têm com a manutenção dessas respostas. De uma forma geral são todas insuficientes as comparticipações que a Segurança Social ou a Saúde, em alguns casos, prestam às instituições.

O agravamento dos custos tem-se verificado, sobretudo por causa do Covid, porque as instituições são obrigadas a despender verbas importantes na compra dos equipamentos necessários à sua prestação, e é mais grave ainda quando há no seio delas surtos de Covid, como estou neste momento a viver numa das instituições em que estou na direção.

Ainda estamos com esse problema, não é?

Sim, há uma semana tive um surto numa instituição aqui em Évora, que obrigou a deslocar 12 pessoas, e não sei se não serão mais, porque ainda não terminou, ainda ontem foi mais uma. Tudo isto movimenta pessoal, que não temos, porque também é escasso, e exige um esforço enorme nos equipamentos de proteção, na recolha dos lixos biológicos contaminados, que têm procedimentos muito rigorosos e que custam imenso dinheiro - temos de contratualizar empresas da especialidade para fazerem essa recolha. Tudo isto são despesas não previstas que agravam a situação financeira das instituições.

Portanto, o problema é sobretudo financeiro, das despesas, mas também têm outras dificuldades, por exemplo, no recrutamento de pessoal?

Sim, uma situação cada vez mais grave que se verifica nas instituições é exatamente o recrutamento de pessoal com o mínimo de qualificação, porque não aparecem. Todas as que conheço, e aquelas onde estou - e estou na direção de sete instituições - têm dificuldades de recrutamento. É um problema muito grave que, a continuar assim, não sei como vamos resolver.

Como disseram em janeiro, muitas vezes o problema nem sequer é o ordenado, embora as instituições tenham dificuldades em pagar salários maiores. Mas isto já é uma consequência da falta de população em muitos sítios?

Tem a ver com os baixos vencimentos que estas pessoas auferem. É um serviço melindroso para prestar, nem toda a gente está preparada e se dispõe a tratar de idosos, e o vencimento é o ordenado mínimo. Isto é desmotivador, e não é justo para quem faz este trabalho, que é muito exigente.

As instituições estão neste "espartilho", porque não têm disponibilidade para pagar mais, porque se tivessem poderiam eventualmente subir um pouco os vencimentos, mas a verdade é que estão com imensas dificuldades, até para pagar o salário mínimo.

Já manifestou reservas relativamente ao Pacto de Cooperação para a solidariedade social, que foi assinado em dezembro entre o Governo e as instituições do chamado terceiro setor. O que é que falha, em sua opinião?

Falha a informação mais concreta. Aquilo que saiu eu chamei-lhe um 'Pacto de intenções', porque não conheço mais nada além disso. Com a queda do Governo as coisas complicaram-se, com certeza, e vamos ter de esperar pelo novo Governo para clarificar essa situação.

Já no tempo em que António Guterres era primeiro-ministro se falava na lógica da comparticipação em 50%, ou seja, que o Estado assumisse pelo menos metade das despesas que as instituições sociais têm. Tem-se demorado muito a chegar a esse patamar?

Sim, continuamos longe desses valores. O Estado nunca assumiu verdadeiramente que as instituições prestam um serviço que é da responsabilidade do Estado, e isto se fosse entendido nesta dimensão, certamente os resultados seriam outros. Tenho esperança que o novo Governo, ou outros que venham, pensem neste assunto e tenham uma atitude mais positiva relativamente ao trabalho que é prestado pelas instituições.

Mas não houve recentemente uma revisão das comparticipações?

São valores muito pequenos. Houve o ano passado, para vigorar durante o ano 2021, e continua em vigor. Mas são aumentos na ordem dos 3%, 3,5%. É absolutamente insuficiente para as necessidades.

Houve há uns anos um estudo que destacava o impacto económico das instituições, sobretudo em localidades mais isoladas, onde são muitas vezes o principal empregador. Demora a perceber que as instituições sociais e solidárias são agentes económicos das regiões?

É outra dificuldade, em que os nossos governantes têm tido muitas reservas. Mas isso é real: eu tenho uma instituição aqui muito perto de Évora que tem 26 funcionários, e é de longe o maior empregador local, porque é uma aldeia, e ali à volta são sobretudo agricultores, que empregam pouca gente. E este exemplo repete-se em imensas localidades por esse Alentejo, e por esse país, certamente.

A sociedade civil também tem tardado em assumir responsabilidades nesta matéria, valorizar o papel das instituições sociais e perceber que, de certa maneira, mesmo que indiretamente, acabam por beneficiar da sua ação?

Há alguns bons exemplos, mas de uma forma geral a sociedade civil e as empresas estão alheadas desta problemática. Certamente a crise que grassa no seio do tecido empresarial também não ajuda, porque houve tempos em que havia mais empresas que estavam despertas para este problema e contribuíam de alguma forma. Hoje não é assim.

Falando da atividade concreta da Cáritas de Évora, nesta fase de pandemia aumentaram os pedidos de ajuda? Quais são as principais dificuldades a que estão a dar resposta?

Tivemos um aumento significativo em 2020, em 2021 não foi assim tão expressivo, talvez porque nós, também por via da situação que estivemos a viver, não tivemos uma presença tão ativa junto das populações. Fizemos muitos atendimentos por videoconferência, e nem todas as pessoas estão preparadas para isso, e até houve um pequeno decréscimo de atendimentos. Mas continuamos a ter números altos e a perceber as problemáticas dominantes que tendem a agravar-se junto da população mais débil, nomeadamente as situações de doença crónica, desemprego e sobretudo o baixo nível de rendimentos. É isso que leva as pessoas a procurar a Cáritas, e a que procuramos dar resposta.

Quantas famílias estão a ajudar?

Estamos a ajudar na diocese de Évora mais de 1.500 famílias, o que é muito. É uma população que se aproxima das quatro mil pessoas individuais.

A situação agravou-se com o início da pandemia, como ouvimos. Além das dificuldades económicas, o sentimento de isolamento, e até de abandono, nas populações, é maior neste momento?

Sim. As pessoas estão isoladas, ainda com medo, muitas delas. Nós, inclusivamente, temos alguma dificuldade em chegar a todas, embora tenhamos uma rede que cobre toda a diocese, até ao nível da paróquia, com o apoio dos voluntários locais, mas tudo isto, com a pandemia, se retraiu um pouco. Sabemos que há muitas situações, como referiu, isoladas e em situação de grande fragilidade.

Há cidades mais distantes de Lisboa do que a cidade de Évora, mas, nesta região também sentem e sofrem os problemas da interioridade?

Seguramente. O Alentejo profundo, como se costuma dizer, está muito longe dos centros urbanos e vive lá gente que tem necessidades, muitas das quais nem sequer estão inventariadas. As pessoas não saem de lá, temos de ir à procura delas – há alguém que nos diz que aqui ou ali há uma situação, mas haverá muitas que não estarão sequer identificadas.

Sentem distância do poder político, no sentido de as decisões não darem resposta aos problemas concretos da região?

Eu sinto isso, esse distanciamento, por isso temos falado, tentado sensibilizar a opinião pública e os governantes para a situação que estão a viver as instituições e as populações, sobretudo, que é para elas que nos dirigimos.

Para quem está mais próximo do terreno, o que é que seria prioritário para a região, para dar respostas aos problemas sociais?

Potenciar o funcionamento das instituições, conhecedoras do terreno, das situações, para que possam exercer o seu trabalho com maior profundidade, dar maior resposta às carências das pessoas que necessitam desses apoios, sejam eles quais forem.

A questão da demografia e a desertificação também são uma preocupação na região, ou sendo Évora também um centro universitário, não sente ainda o desequilíbrio que existe noutras regiões?

Também se sente. Os jovens estudantes são, na sua maioria, de fora de Évora, estão cá durante a semana e vão para casa à sexta-feira ou à quinta. De qualquer modo, também há situações a que temos de dar respostas, no meio estudantil, e procuraram-nos sobretudo os estudantes dos países de língua portuguesa, que estão cá bastantes. Temos dado alguma resposta a essas situações.

Que tipo de apoio é que procuram?

Apoio monetário, para pagamento de residências, de rendas, e alimentos, também. Eles comem nas cantinas, de dia, mas à noite e ao fim de semana não, procuram-nos nessa dimensão.

Voltando ao tema do distanciamento dos centros de decisão: é favorável à regionalização? Devia ser uma prioridade?

Eu acho que vai andar muito lentamente. Tinha esperança que pudesse ser uma forma de termos o poder político mais próximo das populações, mas o que estou a ver, com a transferência de competências para as autarquias… Os serviços de atendimento deveriam passar em março para as autarquias, já veio um despacho a adiar, penso que ‘sine die’ essa transferências, algumas não estarão preparadas, não estarão recetivas a assumir essa responsabilidade, portanto, vejo com alguma reserva a implementação de qualquer forma de regionalização.

Essa descentralização de competências para as autarquias não está a ser aplicada de forma eficaz…

Não está, mesmo.

Que outras medidas seriam necessárias e urgentes?

Como disse, qualquer forma de ajuda às instituições que estão no terreno repercute-se na qualidade do seu serviço, na forma como prestam apoio às populações carenciadas, é por aí que as coisas têm de ir.

E para as populações que não são carenciadas, o que fazer para que se possam manter no seu território? Descentralizar serviços, apoiar a natalidade, a fixação da população no Interior para inverter esta tendência de desertificação e de abandono?

Sem dúvida. A fixação de indústrias, de empresas ligadas à agricultura ou serviços, proporcionaria o aumento do emprego e a fixação das pessoas. Isso seria muito vantajoso. Haja esperança.

Em Évora também tem sido o setor social e solidário, sobretudo ligado à Igreja, que tem estado na linha da frente na resposta às necessidades?

Sim, estas preocupações têm motivado a Igreja a levar ajuda, a identificar situações de carência, porque às vezes as pessoas vivem uma pobreza dita envergonhada e é preciso alguém que as identifique. A Igreja tem feito esse trabalho.

O Governo anterior aprovou uma Estratégia Nacional de Combate à Pobreza. É urgente que entre em vigor?

Sim, é preciso que ela seja implementada de forma a dar resultados práticos, que não fique só no papel.

O que seria prioritário neste combate?

É perceber os problemas das pessoas e encontrar formas de as ajudar. Não falo de uma forma meramente assistencialista, essa é também uma preocupação nossa, na forma como ajudamos as pessoas, procurando tirá-las do seu canto, da desmotivação, de dependência, para que levantem a cabeça, procurem sonhar e fazer pela vida.

Estamos na fase de elaboração do IRS. Que peso tem para as instituições a consignação que os contribuintes podem fazer na sua declaração de impostos? É importante que o façam?

É uma ajuda. Não atinge valores muito significativos, sobretudo aqui na nossa região, porque há poucas empresas, e as pessoas de uma forma geral têm baixos rendimentos. Mas, tudo o que for feito neste campo é favorável e benéfico.