O realizador Tiago Guedes admite que cresceu “a achar que o Salazar sempre defendeu uma enorme neutralidade”, mas ao realizar a série “Glória”, que estreia esta sexta-feira na Netflix, percebeu como “a CIA conseguiu de alguma forma convencê-lo a construir” um centro de propaganda na aldeia portuguesa de Glória do Ribatejo, em plena Guerra Fria.
Em entrevista à Renascença, Tiago Guedes conta como foi rodar a série em plena pandemia, com diversos obstáculos devido a surtos e confinamentos.
Com um elenco nacional e internacional, “Glória” tem 10 episódios de 45 minutos cada, com coprodução da RTP, e vai passar em 190 países. Tiago Guedes assume que “é uma oportunidade” e, ao mesmo tempo, uma “responsabilidade” para a produção televisiva nacional.
Como surgiu a ideia de realizar a série "Glória" e que história é contada? Tem por base factos reais?
Essas duas respostas estão interligadas. Fui contatado pela SP e SPI, na altura, para me convidarem a apresentar o meu projeto do "Glória". E eu nesse instante fiquei a conhecer o que era este segredo da existência da RARET que é algo que desconhecia por completo.
Essa RARET era uma espécie de rádio, um centro de transmissões norte-americano que na Guerra Fria transmitia propaganda ocidental a partir de Portugal para o bloco de Leste.
Sim, era uma enorme instalação de um centro emissor de onda curta que tinha como missão emitir propaganda para os países que estavam dominados pela União Soviética, na altura. Estávamos em plena Guerra Fria. O que tínhamos era propaganda americana que era emitida desde a Glória do Ribatejo. Acabou por ser um ponto nevrálgico importante na Guerra Fria, a forma como foram contaminando as mentalidades que estavam para lá da “Cortina de Ferro”.
Em que contexto é que isso aconteceu?
Isto aconteceu num Portugal em ditadura. Eu cresci sempre a achar que o Salazar sempre defendeu uma enorme neutralidade e que não estava nem com os americanos, nem com os alemães, ou russos, não estava com ninguém. No entanto, a CIA conseguiu de alguma forma convencê-lo a construir esta empreitada na Glória do Ribatejo.
Tudo isso se passou em pleno Ribatejo.
É incrível! Era um centro gigantesco, altamente tecnológico à época e depois tinha todo um aldeamento onde viviam todos os funcionários americanos e provavelmente muitos dos portugueses que trabalharam lá.
Parece irónico que a realidade seja quase melhor do que a ficção!
(risos) Eu fiquei fascinado pelo tema e pela ideia de termos esta pequena ilha tão improvável e tão importante nesse momento histórico do Mundo. Termos uma aldeia portuguesa que, de repente, estava desta forma ligada a tudo o que se estava a passar no mundo.
Como foi a rodagem? Ser uma série para um canal de streaming como a Netflix teve algumas exigências diferente?
A principal diferença prende-se muito com a dimensão. São 10 episódios, com alguns níveis de exigência técnicos de acabamento, porque as plataformas emitem agora num nível de qualidade de 4k, onde surge o HDR. São tudo questões que não estávamos ainda muito habituados a ter de ter esse cuidado final. Mas foi essencialmente isso. São 10 episódios de 45 minutos cada. É muito minuto. Foi muito tempo.
Depois estamos a retratar uma época, tivemos de recriar todos aqueles universos, o décor e guarda roupa de toda aquela envolvência. Foi de extrema dificuldade. A própria Glória do Ribatejo teve de ser recriada da forma que foi, portanto, foi um trabalho complexo e difícil, mas tive uma equipa maravilhosa do meu lado, sempre!
Esta série pode abrir caminho para que a ficção feita em Portugal possa ter outra visibilidade? Mesmo depois da transposição da diretiva europeia sobre o audiovisual.
Espero sinceramente que sim. Aliás, esse sentimento foi uma coisa muito presente em todos nós, atores, técnicos e todos os criativos. E um sentimento de responsabilidade. É a primeira vez que se está a investir assim, com dinheiro não português, em Portugal. Para nós era muito importante que o resultado e o trabalho que se conseguisse fosse de qualidade suficiente para atrair e para não demover. Tivemos sempre essa preocupação. Isso esteve muito presente na grande parte dos profissionais que agarraram isto. É uma oportunidade de o Mundo ver isso, porque o facto de estrear em 190 países acarreta essa oportunidade/responsabilidade.
A série irá depois passar na RTP?
Sim, a RTP é coprodutora e irá passar, não sei exatamente quando, nem quais os moldes, mas vai passar de certeza.
Como foi escolher o elenco nacional e internacional?
Foi um processo normal tendo em conta que se iniciou em plena crise pandémica. Arrancamos com o casting em pleno confinamento o que obrigou a uma certa adaptação, ao processo normal. Recorri pela primeira vez na minha vida àquilo que os atores estão habituados que são as 'self tapes', são vídeos que eles próprios gravam depois de algumas conversas e reuniões comigo. Fazem esses vídeos sozinhos.
Depois fui fazendo um processo de seleção até que consegui reunir um núcleo mais fechado, onde fizemos já um casting presencial. Com os estrangeiros, foi essencialmente só através das 'self tapes' porque não se podia viajar e as fronteiras estavam fechadas. Portanto, foi tudo mais estranho, mas foi um processo natural. Trabalhei com muita gente que já conhecia e conheci muitos com quem nunca tinha trabalhado. Estou muito contente com todo o trabalho do elenco.
Podemos dizer que esta série foi toda ela pensada e realizada em pandemia?
Completamente! O processo de preparação foi completamente em pleno confinamento. Foi dificílimo os momentos de procura de locais, porque não havia autorizações para ir a lado nenhum. Nós próprios estávamos muito limitados na nossa mobilidade. Os concelhos fechavam, foi tudo muito complexo e moroso.
Depois em plena rodagem também tivemos de criar a nossa bolha onde estávamos sempre todos testados, mas mesmo assim tivemos alguns sustos e dificuldades complexas de ter de alterar o mapa constantemente. Sítios onde iriamos filmar tinham surtos, depois não podíamos entrar, portanto foi claramente uma produção marcada pela pandemia.