“É indecente” tributar património dos pobres “como se fossem palácios”
09-04-2019 - 12:21
 • Liliana Carona

O Estado está a cobrar, desde 2017, IMI e AIMI a casas construídas há mais de 50 anos para famílias carenciadas. Em Cambres, Lamego, a paróquia tem 1.600 euros para pagar e quer vender as habitações, hipótese que não agrada aos inquilinos, na maioria idosos com fracos rendimentos.

Leia também:


A regularização contabilística dos rendimentos foi uma das condições da nova Concordata, assinada a 18 de maio de 2004 entre o Estado português e o Vaticano. O documento, que rege as relações entre os dois Estados, instituiu o fim do regime de isenção fiscal para todas as atividades exteriores à normal ação pastoral, mas verifica-se hoje uma falha, apontada à Renascença pelo pároco de Cambres, concelho de Lamego.

O padre Bouça Pires, 74 anos, há quase 30 na paróquia, diz que “houve uma falha na regularização da Concordata, em 2015, ao não ter sido prestada atenção na distinção entre 'património' e ‘património dos pobres’, que era uma entidade moral que deixou de existir e que passou para a ‘Fábrica da Igreja’, que não está interessada em ter aquelas casas”.

Esta alegada falha está hoje a causar grandes constrangimentos, com o Estado a tributar o que não devia. “Existe uma 'caça às bruxas' para ir buscar rendimentos miseráveis. Não interessa quem paga, querem é que paguem”, lamenta o sacerdote.

Foi em 2017 que os proprietários com património imobiliário elevado ficaram obrigados a pagar um novo imposto , o AIMI - Adicional ao IMI. A Lei n.º 42/2016, de 28 de dezembro (Orçamento do Estado para 2017) criou esse adicional ao Imposto Municipal sobre Imóveis, o qual, após a dedução dos encargos de cobrança, constitui receita do Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social, conforme previsto no n.º 2 do artigo 1.º do Código do IMI. Desde essa altura que o Estado está a pedir o IMI - Imposto Municipal sobre Imóveis, e o AIMI à ‘Fábrica da Igreja’ da vila de Cambres, a entidade formalmente detentora das casas.

"Parece-me injusto, indigno e indecente que se atribua uma carga de impostos a um património de casitas como se fossem um grande património ou um palácio", diz à Renascença o padre Bouça Pires.

“Estas casas constituem uma ‘entidade moral’ que teve início com o padre Américo e que foi acolhida pelo meu antecessor, o cónego Cardoso. Foram destinadas às pessoas mais necessitadas, passaram de mão em mão e nunca foram regularizadas”, adianta.

O sacerdote queixa-se de que a nova Concordata “não teve em conta que era ‘património dos pobres’”, anteriormente isento. Assim, desde 2017 que passaram a pagar dois impostos, o IMI, e AIMI, "atribuído como se fossem casas ricas, palácios, património de grande valor, quando são casas sem condições nenhumas”.

A alteração implicou uma nova despesa à paróquia de Cambres. “Este não é um património rentável, nunca pagaram absolutamente nada por estar ali. As pessoas não têm direito à propriedade, mas os encargos vão recair sobre a entidade que passou a ser a ‘Fábrica da Igreja’. Só em 2017 paguei do meu bolso o IMI, 200 e tal euros. Em 2018, foram 1600 e tal euros”.

“A igreja vive apenas das ofertas que as pessoas dão. Tem um peditório dominical, reduzido aos cêntimos, e tem todas as despesas de luz, água, pessoal de limpeza e conservação, o que equivale a quase esse valor que pagámos de IMI”, desabafa o padre Bouça Pires, explicando que foi para “benefício dos moradores” que lhes escreveu uma carta a propor “tornarem-se proprietários”.

“Consultei todas as pessoas que as habitam e perguntei se estavam interessadas em passar as casas para o seu nome, com um custo simbólico. Ainda nem sequer imagino o valor. Levei o assunto às reuniões próprias dos concelhos, as pessoas aceitaram, em geral, e dá-lhes interesse”, embora reconheça que a maioria das casas “não tem condições”.

A Renascença constatou no local que a proposta não agrada aos inquilinos, que não têm dinheiro e não entendem como é que a igreja quer vender-lhes casas onde “chove como na rua” e onde não há saneamento básico condigno.

Casas pequenas, sem WC

Na vila de Cambres, com pouco mais de 100 habitantes, a beleza da imensidão do Rio Douro não foi suficiente para apagar a pobreza em que muitos vivem. Há uma herança forte de dificuldades, de gente que viveu da agricultura e que ainda hoje clama por saneamento básico e acessos condignos na região.

No chamado “lugar da pedreira”, ou “lugar dos cucus”, umas casinhas azuis têm uma placa identificativa “Património dos pobres”. Foram construídas na década de 60 do século passado e foram passando de pais para filhos, existindo ainda hoje alguns dos primeiros moradores.

Os moradores com quem a Renascença falou garantem não ter dinheiro para comprar as casas e estão preocupados. Com uma pensão de sobrevivência de 188 euros, José Manuel de Jesus Inácio, 64 anos, diz que “só com um milagre”. A casa onde vive tem três quartos, mas não tem sequer uma casa de banho digna desse nome. Vale-lhe a ajuda da irmã, que tem uma reforma abaixo dos 400 euros.

Maria Emília de Jesus tem 74 anos e, além do irmão, tem três filhos a viver debaixo do mesmo teto. Não conseguem comprar a casa que, na década de 60, dizem ter sido oferecida pelo homem que está no retrato à entrada de casa. “Acho que é demais 200 euros de IMI por umas casas que estão a cair. Três quartos, o quarto de banho é isto, não tem nada, só um buraco. Foi o senhor cónego Cardoso que nos ofereceu, deu a chave à minha falecida mãe", relembra José.

Nas oito "casas dos pobres", o nome ainda lhes faz justiça. Por ali não abunda a fartura e em algumas chove como se fosse na rua. Ana Patrícia, 41 anos, fala pela avó do marido, Joaquina, de 97, acamada. “Ela está aqui desde sempre, e nunca lhe pediram nada. Agora é que se lembraram? Eu acho isto uma treta. Casas sem condições, até chove aqui dentro", desabafa.

Pároco garante que valores de venda vão ser “simbólicos”

Sem adiantar à Renascença o valor pelo qual serão vendidas as oito casas dos pobres, o padre Bouça Pires garante apenas que “serão sempre valores simbólicos”.

“Nem eu ainda pus preços nenhuns”, diz. “Mandei uma carta, a dizer que é um preço a acordar com eles. Se quiserem também não são obrigados a comprar, e não têm que sair das casas. Não é nenhum xeque-mate”. Segundo o sacerdote “a maioria disse que estava interessada, e o nosso desejo não é tirar-lhes nada, mas dar essa possibilidade de compra”.

“Li publicamente a carta que lhes enviei, não quero ferir suscetibilidades. Nós estaríamos interessados em que este património deixasse de ser nosso, por causa dos impostos. Parece-nos injusto que se atribua uma carga de impostos a um património de casitas sem condições, como se fosse um palácio ou um palacete. Aquilo são casas pobres, que ainda não têm casa de banho”, acrescenta o padre Bouça Pires, sublinhando que este não é caso único no país. "Seria importante que este problema fosse resolvido a nível nacional. Somos comunidades com problemas muito próprios. Se é dos pobres, seja dado aos pobres. Falamos de um valor simbólico, porque é muito mais fácil a venda do que a doação. Um preço a acordar”, insiste.

O preço a acordar para a eventual compra das casas terá de ser mesmo mito baixo, de outra forma os moradores não sabem o que fazer à vida. “O dinheiro que recebo é todo para os medicamentos. O meu pai nasceu pobre, a minha mãe morreu pobre, e eu é o que se vê”, diz-nos José, enquanto abre o saco onde mostra mais de uma dezena de caixas de remédios.

“O governo não olha para isto, somos pobres, ninguém olha para nós”, acrescenta Patrícia. E Emília diz que não vê luz ao fundo do túnel: “Não tenho dinheiro, não sei o que fazer.”