O inspetor-chefe do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), 44 anos, disse em tribunal que “os factos não correspondem ao que aconteceu” e garantiu que só soube da morte do cidadão ucraniano no aeroporto de Lisboa quando foi chamado à Polícia Judiciária.
Luís Silva foi o primeiro arguido a prestar depoimento no julgamento da morte de Ihor Homeniuk, que começou nesta terça-feira de manhã em Lisboa, no Campus de Justiça.
Numa descrição exaustiva do que aconteceu quando contactou com o cidadão a quem tinha sido impedida entrada em Portugal, Luús Silva afirmou: “no dia 30 [de março], o meu chefe ligou a dizer que tinha de ir à Polícia Judiciária e só fui confrontado nessa altura com o que aconteceu”.
“Os factos não correspondem ao que aconteceu”, afirmou no seu depoimento, explicando que prestava serviço na segunda linha do aeroporto, no horário das 6h00 às 13h00, e que, por volta das 8 horas, ouviu uma comunicação “a solicitar contacto para uma equipa, com a finalidade de algemar um cidadão que estava a ter comportamento violento e autodestrutivo”.
Os destacados foram os três arguidos deste processo: ele próprio, Bruno Sousa e Duarte Laja.
“Fomos os três ao Centro de Instalação. Quando entrámos – aquilo fica a 15 minutos a pé – os seguranças abriram a porta e alertaram que o cidadão era violento e tinha tentado fugir durante a noite; que já lhes tinha atirado um sofá, gostava de morder e que tinha dado problemas toda a noite e que o segurança teve de estar em cima dele toda a noite”, relatou.
Luís Silva explicou ainda que, antes de entrar, retiraram as armas, fitas e prepararam-se para uma intervenção numa sala. “Precavemo-nos para uma ação que se previa violenta.
Quando abrimos a porta, ele estava deitado no chão com fita cola nas pernas e braços, tentando rebentar a fita contra a parede”.
Em declarações ao coletivo de juízes presidido por Rui Coelho, o inspetor do SEF referiu ainda: “eu tinha um bastão extensível e guardei no bolso quando entrei. Bruno Sousa meteu algemas de metal. Começámos a tirar a fita das calças de ganga. Levámos umas fitas médicas que se usam no hospital para imobilizar, com os braços junto ao corpo”.
Durante o processo de imobilização, o cidadão ucraniano tentou pontapear os inspetores, referiu Luís Silva. “Foi preciso segurá-lo pelos braços e conseguimos voltar a meter a algemas”.
“Quando acabámos de prender o passageiro, deixámo-lo em posição lateral de segurança, em cima de um colchão. Chamei os seguranças para eles verem como o tínhamos deixado. Ficou com as minhas algemas, porque não havia mais e o segurança ficou com as chaves e a indicação de as tirar quando ele acalmasse”, prosseguiu.
Segundo o arguido, a intervenção foi de pouco menos de meia hora. Mais tarde, numa conversa de serviço com o Centro, o segurança disse que o passageiro estava tranquilo e que lhe tinham dado o pequeno-almoço.
Em tribunal, o inspetor garantiu que, em momento algum, lhe foi referido o processo do cidadão ucraniano.
O juiz quis saber se, em algum momento, Luís Silva tinha agredido o cidadão. “Não. Nunca houve necessidade. Só me consigo recordar que tinha uma marca grande na testa e estava extremamente exaltado”, respondeu.
“Tremia muito. Tinha necessidade de se fazer entender”
Bruno Sousa foi o segundo inspetor a prestar declarações no arranque do julgamento, nesta manhã de terça-feira, dia 2 de fevereiro. Foi o terceiro a entrar na sala do Centro de Instalação.
Na descrição que fez dos factos, afirmou que Ihor Homeniuk “estava arroxeado nas mãos e tinha os braços bastante marcados – era a zona a descoberto. Ele tremia muito e o olhar não fixava”.
Bruno Sousa disse não fazer “ideia de há quanto tempo [aquele cidadão] tinha os braços presos. Não estávamos à espera de o ver assim. Ele tinha forte necessidade de se fazer entender”.
Os inspetores Bruno Valadares Sousa, Duarte Laja e Luís Filipe Silva são acusados da morte de Ihor Homeniuk em março de 2020, no aeroporto de Lisboa.
A acusação diz que os inspetores tiveram um comportamento desumano com Homeniuk, provocando-lhe graves lesões corporais e psicológicas até à morte. Arriscam uma pena de 25 anos de prisão.
Os três arguidos estão em prisão domiciliária desde a sua detenção, em 30 de março de 2020, e respondem pela morte do cidadão quando este tentava entrar ilegalmente em Portugal, por via aérea, em 10 de março.
Segundo o Ministério Público (acusação), os inspetores do SEF algemaram Homeniuk com os braços atrás do corpo e, desferindo-lhe socos, pontapés e pancadas com o bastão, atingiram-no em várias partes do corpo, designadamente, na caixa torácica, provocando a morte por asfixia mecânica.
A acusação critica os três arguidos e outros inspetores do SEF por terem feito tudo para omitir ao Ministério Público os factos que culminaram na morte do cidadão, no Centro de Instalação Temporária do Aeroporto de Lisboa, chegando ao ponto de informar o magistrado que Homeniuk "foi acometido de doença súbita".
Relatório feito dias depois
O arguido Duarte Laja foi o terceiro a prestar declarações. “Uma coisa achei estranha, a sala onde o passageiro se encontrava estava vazia, sem mobiliário e o cidadão sentado no chão. Estava numa zona intermédia, entre a sala e um WC”.
O arguido descreve que a vítima estava agitada e descontrolada e alternava entre o sentar e o deitar. “O segurança disse-me que ele fala algo de inglês e alemão”, explicou dizendo, no entanto, que a pouca comunicação foi sempre gestual.
Questionado sobre se tinha detetado marcas, respondeu: “marcas no rosto, dois hematomas, na testa e queixo, e marcas nos braços”. Situação que, no entanto, não o levou a questionar os seguranças.
Relatou ainda uma segunda coisa estranha: “estava com fitas adesivas nos pulsos e pernas. Mas a fita das pernas já permitia mobilidade. A fita estava laça”.
Questionado pela defesa da viúva do cidadão ucraniano, o inspetor do SEF esclareceu que não fez relatório da ocorrência. “Posteriormente, recebi indicação para fazer o relatório e lembro-me de fazer referência a alguns hematomas”, respondeu.
[notícia atualizada às 13h50]