Natural de Portalegre, nascido a 100 metros da rua onde decorrem as cerimónias do 10 de Junho, o presidente da comissão das comemorações do Dia de Portugal, o jornalista João Miguel Tavares, apelou aos políticos portugueses, "de esquerda e de direita", que deem aos portugueses "alguma coisa em que acreditar".
“Aquilo que melhor distingue as pessoas não é serem de esquerda ou de direita, mas a firmeza do seu caráter e a força dos seus princípios. Aquilo que se pede aos políticos, sejam eles de esquerda ou de direita, é que nos deem alguma coisa em que acreditar. Que alimentem um sentimento comum de pertença. Que ofereçam um objetivo claro à comunidade que lideram”, disse o jornalista já quase a terminar o seu discurso.
João Miguel Tavares disse mesmo que os portugueses precisam de sentir que contam "para alguma coisa, além de pagar impostos", e que essa necessidade faz com que cada um sinta que tem "um efeito real na sociedade" e possa "à sua medida, servir o país". Com o jornalista a elencar alguns exemplos: "é preciso dizer ao velho que perdeu tudo nos incêndios de Pedrógão – tu contas" ou ainda "é preciso dizer ao miúdo que habita na pobreza do Bairro da Jamaica – tu contas".
Com um discurso de alto teor social, João Miguel Tavares referiu-se também aos que vivem no país e que é preciso também "dizer ao cabo-verdiano que trocou a sua terra por Portugal, em busca de um futuro melhor para os seus filhos – tu contas, e os teus filhos não estão condenados a passarem o resto das suas vidas a limpar as casas da classe alta de Lisboa ou do Porto."
Na avenida no centro de Portalegre onde decorrem estas cerimónias, Tavares disse em frente aos três ramos das Forças Armadas que cresceu acompanhando "o crescimento da democracia portuguesa" e viu "o quanto o país mudou".
Referiu-se também à interioridade de Portalegre, que "até ao final da década de 90, Lisboa estava a mais de quatro horas de autocarro de Portalegre, e a essa distância física correspondia uma ainda maior distância cultural". Mas ainda viu o país "progredir".
Quanto ao presente, "não é fácil saber porque é que" se luta "hoje em dia". Segundo o jornalista escolhido pelo Presidente da República para discursar neste Dia de Portugal, "é nessa dificuldade que repousam tantas das angústias" dos portugueses.
Lamentou também que "boa parte" do país "talvez julgue mesmo que a política é somente um cenário longínquo, distante da vida que importa, que é aquela que está mais próxima de nós", concluindo que "daí o chamado “desinteresse pela política”.
Falta de empenho contra a corrupção
Colocando um forte teor pessoal no seu discurso, João Miguel Tavares salientou que é o “primeiro filho da democracia” a presidir a estas comemorações e traçou o percurso de tantos da sua geração.
“Devo ao Portugal democrático e ao Estado português boa parte daquilo que sou. Sou filho de dois funcionários públicos. Fiz o ensino básico e secundário numa escola pública. Licenciei-me numa universidade pública. Portugal não falhou comigo. Permitiu que um simples estudante de uma cidade do interior, sem qualquer ligação à capital e às suas elites, fosse subindo aos poucos na vida e chegasse até aqui”, afirmou o presidente das comemorações, para quem um dos problemas do país – talvez mesmo o maior – seja hoje não haver essa certeza de que se pode lutar por um objetivo.
“O sonho de amanhã ser-se mais do que se é hoje vai-se desvanecendo, porque cada família, cada pai, cada adolescente, convence-se de que o jogo está viciado. Que não é pelo talento e pelo trabalho que se ascende na vida. Que o mérito não chega. Que é preciso conhecer as pessoas certas. Que é preciso ter os amigos certos. Que é preciso nascer na família certa”, continuou João Miguel Tavares, para quem “a corrupção não é apenas um assalto ao dinheiro que é de todos nós – é colocar cada jovem de Portalegre, de Viseu, de Bragança, mais longe do seu sonho”.
E esse afastamento entre os cidadãos e os sonhos, que relacionou com o desinteresse pela política, cresce porque existiram fracassos, nomeadamente a necessidade de três intervenções externas, mas sobretudo porque não se encontraram respostas para esses fracassos. “Perguntamo-nos como foi isto possível.
Criámos comissões de inquérito para encontrar responsáveis. Descobrimos um país amnésico, cheio de gente que não sabe de nada, que não viu nada, que não ouviu nada. Percebemos que a corrupção é um problema real, grave, disseminado, que a Justiça é lenta a responder-lhe e que a classe política não se tem empenhado o suficiente a enfrentá-la”, acusou o jornalista e cronista, que não quer ver os seus quatro filhos condenados ao “discurso fatalista” de que Portugal é assim porque nunca foi de outra maneira e que a única solução para os jovens talentosos que queiram apenas subir pelo seu mérito é emigrar.
“O desespero não nasce do erro, mas do sentimento de que não vale a pena esforçarmo-nos para que as coisas sejam de outra forma – porque nunca serão. A falta de esperança e a desigualdade de oportunidades podem dar origem a uma geração de adultos desencantados, incapazes de acreditar num país meritocrático”, lamentou, alertando que esta perda de esperança facilmente dá lugar ao cinismo, ao pessimismo e à desconfiança permanente e ao aumento da separação entre os cidadãos e as instituições.
“Há o ‘eles’ – os políticos, as instituições, as várias autoridades, muitas das quais (receio bem) se encontram hoje aqui presentes. E há o ‘nós’ – eu, a minha família, os meus colegas, os meus amigos. Entre o “nós” e o “eles” há uma distância atlântica, com raríssimas pontes pelo meio. ‘Eles’ não têm nada a ver connosco. ‘Nós’ não temos nada a ver com eles”, resumiu.
Portugueses precisam de mais lírica e menos Lusíadas
Também o Presidente da República, que o convidou para presidir a estas comemorações, não ficou fora dos remoques do jornalista e opinador. Principalmente por causa de uma coisa que Marcelo diz amiúde: que os portugueses, quando querem, são os melhores do mundo.
“O senhor Presidente da República que me perdoe o atrevimento: não há qualquer razão para os portugueses serem melhores do que os finlandeses, os nepaleses ou os quenianos. Mas tenho uma boa notícia para dar: também não precisamos de ser melhores. Para quem ainda acredita numa ideia de comunidade, os portugueses são aqueles que estão ao nosso lado. E isso conta. E conta muito”, disse o jornalista, partindo para uma defesa da ideia de comunidade e de proximidade.
“Partilhamos uma língua, um país com uma estabilidade de séculos, sem divisões, e é uma pena que por vezes pareçamos cansados de nós próprios. Tivemos História a mais; agora temos História a menos. Passámos da exaltação heróica e primária do nosso passado, no tempo do Estado Novo, para acabarmos com receio de usar a palavra ‘Descobrimentos’. Simplificamos a História de forma infantil. No século XVI, Luís de Camões já cantava os seus amores por uma escrava de pele negra – tão bela e tão negra que até a neve desejava mudar de cor. Para desarrumar os estereótipos, talvez precisemos de um pouco menos de Lusíadas e de um pouco mais de lírica camoniana”, afirmou João Miguel Tavares, apontando o que lhe parece ser a fórmula certa: “Menos exaltação patriótica e mais paixão por cada ser humano”.
“Sendo já poucos os que acreditam nas grandes narrativas, continuamos a acreditar nas pessoas que temos ao nosso lado. E esse é o caminho para a identificação possível dos portugueses com Portugal. Sozinhos somos ninguém. A velha pergunta bíblica ‘acaso sou eu o guarda do meu irmão?’ tem uma única resposta numa sociedade decente: ‘Sim, és.’ Num país algo desencantado, o grande desafio está em tentar desenvolver um sentimento de pertença que vá além dos prodígios do futebol”, continuou o presidente das comemorações, deixando o desafio a todos: “Sobre cada um de nós recai a responsabilidade de construir um país do qual nos possamos orgulhar.”