Antigo capelão hospitalar, durante 18 anos, o padre José Nuno Silva coordenou o Grupo de Trabalho Inter-religioso para a Saúde (GTIR) em Portugal, que permitiu que em 2018 representantes de oito religiões rubricassem uma declaração conjunta contra a eutanásia. Um documento semelhante ao que foi hoje assinado, em Roma, por representantes das três grandes religiões monoteístas.
Em entrevista à Renascença este responsável analisa a nova declaração, que considera fundamental no atual contexto e pelos vários alertas que faz, e que devem ser tidos em conta tanto pelos países onde a eutanásia já é permitida, como naqueles onde pode vir a ser legalizada.
Que importância tem o documento assinado hoje em Roma por representantes da Igreja católica, do judaísmo e do Islão?
Este documento é muito importante porque significa que os três grandes credos monoteístas estão de acordo na afirmação do respeito pela vida humana quando a vida humana se aproxima do seu termo. A pessoa humana é pessoa humana e é sagrado o valor da sua vida até ao seu termo, independentemente das condições de qualidade de vida que a pessoa possa gozar ainda. Este é uma afirmação fundamental que está a ser muito posta em causa - e o documento cita-o explicitamente - pelo humanismo laico, que não encontra razões para sustentar o valor da vida humana quando ela se aproxima do seu termo.
Este documento é importante porque oferece um quadro claro de reflexão sobre esta matéria, pondo os fundamentos onde eles devem ser postos, e estabelecendo orientações muito claras sobre como a sociedade se deve situar face aos seus membros que se encontram em fim de vida.
E pode ser importante em relação aos países onde a eutanásia já foi legalizada, quando faz referência, por exemplo, ao respeito absoluto que deve existir pela objeção de consciência dos profissionais de saúde?
Esse é um dos aspetos mais importantes do documento, a afirmação de que nenhum profissional de saúde pode ser obrigado a envolver-se, seja na prática da eutanásia, seja do suicídio assistido. O direito de fazer objeção de consciência e a não ser de alguma forma coagido a atuar contra a sua consciência é fundamental, até porque nós sabemos que efetivamente em alguns países onde a legislação já prevê quer a eutanásia quer o suicídio assistido, muitas vezes este direito dos profissionais de saúde é posto em causa. A afirmação de que este direito à objeção de consciência deve ser respeitado é um dos pontos que eu considero muito importante nesta declaração.
O documento também apela ao investimento nos cuidados paliativos. É uma área que não pode ser desligada do resto?
Não pode ser desligada do resto, e em relação à qual às vezes há uma certa hipocrisia política. Esta questão do investimento em cuidados paliativos deve vincular os Estados no desenvolvimento das estratégias políticas que permitam o desenvolvimento e o alargamento da acessibilidade aos cuidados paliativo, por parte de todos os cidadãos. Mas também desafia a Igreja…
Em que sentido?
O documento pede aos Estados que legislem no sentido dos cuidados paliativos, mas também pede às comunidades religiosa, à Igreja que se empenhem nos cuidados paliativos, e eu acho que isto no contexto português deve ser dito. Devia haver da parte da Igreja uma efetiva aproximação em relação à Rede Nacional dos Cuidados Paliativos, e perguntar-lhes a eles o que é que temos de fazer para que os doentes que os cuidados paliativos cuidam tenham efetivamente acompanhamento espiritual e religioso.
Isto não está a ser garantido?
A este nível a situação é bastante deficitária. Mas, este documento diz, com toda a clareza, que um dos principais direitos de quem está em situação terminal é o direito a ser acompanhado espiritualmente, religiosamente, e creio que da nossa parte devia haver uma atitude proativa de aproximação à Rede Nacional de Cuidados Paliativos. os paliativos.
A legislação nesta matéria também explicita a existência de assistentes espirituais e religiosos, mas pergunto - quantas equipas de cuidados paliativos é que têm agentes qualificados, profissionais, competentes para o domínio da assistência espiritual e religiosa?
Portugal foi pioneiro em relação ao que se passou hoje no Vaticano. O ano passado representantes de oito religiões assinaram declaração conjunta contra a eutanásia.
Essa declaração resultou de um processo no âmbito do Grupo de Trabalho Inter-religioso para a Saúde, que foi constituído há 10 anos, na sequência da nova Lei da Assistência Espiritual e Religiosa nos hospitais. Foi a existência deste grupo que permitiu que, quando nos vimos confrontados com o debate sobre a eutanásia, e com a sua votação na Assembleia da República, se avançasse aquele processo concreto. Não foi difícil e foi possível envolver quase todos os elementos do grupo, alguns não subscreveram, mas 8 fizeram-no. Fez-se o documento 'Cuidar até ao fim com compaixão’, que afirmou esta profissão de fé na vida e no valor da vida humana por parte da Igreja católica, de outras igrejas cristãs, do islão, do Judaísmo, do hinduísmo, do budismo e dos Mormons. Foi um processo bonito, e o documento produzido constituiu para nós aquilo que este documento promovido e assinado hoje na Santa Sé pode constituir para as religiões a nível global.
Em Portugal a eutanásia está de novo na ordem do dia, depois do Bloco de Esquerda ter avançado com uma nova proposta para a sua despenalização. Por outro lado os movimentos de defesa da vida querem um referendo sobre essa matéria. Concorda?
Pedir um referendo à partida não me parece que seja mau, agora efetivamente devemos pensar no modo como a sociedade portuguesa se vai envolver referendo. No contexto de uma campanha para um referendo o debate fica facilmente contaminado pela emoções, e raramente é esclarecedor. Devemos pensar bem o modo como vamos fazer, a linguagem que vamos utilizar. É muito fácil galgarem-se limites e chegar a uma base de falta de cordialidade, que torna difícil fazer-se opções serenamente.
Com a atual maioria de esquerda na assembleia tudo indica que a despenalização será aprovada.
Corre-se esse risco, de facto, com a configuração atual do parlamento. Deveremos fazer aquilo que estiver ao nosso alcance. Eu penso que essa linha não deve ser transposta em termos sociais.
A minha principal preocupação é a fragilidade das pessoas, isto é, abrir a possibilidade - e o documento assinado hoje na Santa Sé também alerta para isso - de alguém que sente que a sua vida já não tem sentido, ou que à sua volta são mais os que desejam que deixe de existir do que continue a viver, abrir a possibilidade destas pessoas pedirem para morrer. Isto é tremendo.
Vivemos numa sociedade em que há cada vez mais gente que não tem ninguém por quem esperar, e não tem ninguém à sua espera. Aprendi isto no hospital, onde vi muitas pessoas chorarem amargamente esta experiência: 'eu não tenho ninguém por quem esperar, e ninguém vem’.
A declaração que hoje foi assinada em Roma por representantes da Igreja Católica, do Judaísmo e do Islão pode ajudar a cimentar os argumentos de quem é contra a eutanásia? Pode também ser usada para sensibilizar os partidos em Portugal?
O documento quer isso, e afirma até que quer ser como um depositário de argumentos e uma clarificação de fundamentos para ser usada por aqueles que nele se reveem, no diálogo com os outros e explicitamente no diálogo com as instâncias políticas.
Creio que este documento poderá ser um bom instrumento e uma boa ajuda. Pensando no contexto português, e no debate que se vai reabrir, pode ser um horizonte e uma referência permanente para aqueles que queiram fundamentar seja os seus argumentos, seja a atitude com que se colocam neste debate.