*veja os resultados, as contas dos grupos e as estatísticas dos jogadores
Os parafusos que sustentam a prateleira com as medalhas começam a temer pela vida. Depois do Nacional de juniores, da Taça da Liga de Portugal, da Taça da Bélgica e ainda da Supertaça de Irão, Ricardo Sá Pinto foi campeão no Chipre, pelo Apoel.
O timing da conversa com a Renascença foi perfeito: depois do jogo contra a Chéquia e antes do duelo contra a Turquia (sábado, 17h00), seleções que defrontou nos Europeus 1996 (e 2000 também, no caso dos turcos).
O antigo avançado, um orgulhoso “coração de leão”, refletiu sobre as apostas de Roberto Martínez, descreveu o povo e os jogadores turcos e avaliou esta geração portuguesa, lembrando a de Eusébio, a de 1984, que aprendeu a admirar, e a sua, a 'geração de ouro'. O treinador, de 51 anos, revelou ainda a Bola Branca o que tem vivido nesse ofício e o que se segue.
Sentiu-se vingado por aquela derrota de 96 contra a República Checa?
Claro, logicamente que sim. Nós dominámos também, fomos melhores e eles fizeram a mesma estratégia de esperar pelo nosso erro e por um ataque rápido para nos surpreenderem. Foi o que aconteceu agora naquele remate de fora da área. Não criámos muitas oportunidades claras, tivemos claramente em todas as estatísticas superioridade sobre o adversário, em número de remates, oportunidades, posse, que foi uma posse ativa e não passiva, com grande domínio sobre o adversário, muitos cruzamentos e muita chegada... mas faltou-nos realmente ter a assertividade que precisamos de ter no último terço. Confesso que a estratégia adotada pelo treinador Martínez me surpreendeu, o posicionamento de alguns jogadores, nomeadamente ao de Cancelo.
Certo.
A estrutura tática também me surpreendeu. Habituei-me a ver a seleção numa determinada estrutura no apuramento. Depois, podemos ter saídas a três, com médio no meio, no corredor, com o lateral e os dois centrais, são dinâmicas que se criam para o jogo. Agora, foi uma surpresa ver o Vitinha ali a ‘6’. Gosto muito do Vitinha a ‘8’, acho que é um grande médio de chegada, é um grande médio criativo e finalizador de meia distância, é muito rotativo. Na minha ideia, como treinador, podia usá-lo como 6 para arriscar na parte final, porque realmente não se justifica ter ali mais alguém quando os adversários estão dentro da área. Tendo um Danilo ou Palhinha como ‘6’, dá para equilibrar e fazer o 3x2 com os avançados que estavam à espera.
Hm, hm.
Esta era a minha ideia, enfim, temos um lote de jogadores enorme, de grande qualidade, é uma grande geração. Não podem jogar todos, são todos titulares, nem todos podem começar. Mas as dinâmicas e a nossa forma de jogar tem de estar lá sempre presente e acho que isso faltou um bocadinho. Sabíamos que íamos ser superiores à Chéquia, jogando neste ou noutro sistema, íamos ser superiores, mas acho que perdemos ali a nossa identidade. Espero que o treinador possa recuperá-la rapidamente. Se for assim, podemos ganhar este Europeu, mas, para já, chegar às meias-finais é a minha convicção.
Agora vem aí a Turquia, que enfrentou nos Europeus 1996 e 2000, e treinou lá também. Os tempos são outros, mas qual é o maior perigo da Turquia? Eles jogam com alma.
Eles têm essa característica, têm uma personalidade forte, são pessoas emocionais. A escola turca tem jogadores muito bons, de muito talento, mas nunca tiveram aquela mentalidade ganhadora regular. Nunca tiveram muito o compromisso profissional diário, de trabalho, enfim, de regras. Mas o talento está lá e vão focar-se nesta competição, num mês, para fazerem algo diferente do que fizeram até agora. Deram uma resposta à Geórgia, ganhando por 3-1, deu-lhes uma grande motivação para abordar o jogo contra nós.
Provavelmente é a luta pelo primeiro lugar.
É a luta pelo primeiro lugar. Para nós, era muito importante ganhar, até porque nos garantia imediatamente a fase seguinte. Cuidado com esta Turquia, já vimos que individualmente tem jogadores talentosos, de qualidade. Enquanto equipa, querem demonstrar que são melhores do que foram noutros Europeus. Saíram sempre de forma frustrada, porque sempre tiveram jogadores como Rustu, por exemplo, com relevância e reconhecimento a nível europeu. Mas, na seleção, nunca foram muito reconhecidos. Sempre houve ali uma grande frustração, percebi isso quando lá estive, precisam de fazer algo diferente, algo grande, são um país enorme, apaixonado por futebol e que tem muito talento. Vamos ter de ser Portugal no máximo das suas capacidades. Apesar de eles terem capacidade, continuo a achar que somos superiores, mas teremos de o demonstrar dentro do campo logicamente.
Até podem estar mais moralizados porque têm Mourinho a ver…
[risos]
Esta é uma das melhores gerações de Portugal?
É uma das, uma das. Tivemos a dos anos 60, a mais marcante no Campeonato do Mundo por Eusébio, outros tempos, outras ideias, outra metodologia, tudo diferente. Mas, sem dúvida, muito talentosa e de grande alma. A de 1984 também, gostava muito dessa, todos nós aprendemos a admirá-la. Tinham muitos e bons jogadores. E a minha geração, da qual muito me orgulho de fazer parte. Acho que começou a catapultar para o exterior a imagem de Portugal como um país a ter em conta de uma forma sólida, estando presente nos campeonatos mais importantes, quer da Europa, quer do mundo. E agora é esta, com o Ronaldo, que tem um grande mérito e ainda está em grande forma. É uma geração que eu considero de grande, grande talento. Não só os que lá estão, mas como os que ficaram de fora.
É um sinal, não é?
É um sinal claro. Estamos perante uma grande geração, acredito que vai conquistar algo importante. Não sei se é neste Europeu, se é no próximo Mundial, mas acredito que vai conquistar um título importante, podemos acreditar e fazer por isso. Para já, meias-finais é a minha projeção. Depois, estamos dentro das quatro melhores seleções, depois são os tais detalhes que vão fazer a diferença como fizeram no nosso Europeu, em que ficámos em terceiro lugar, na Holanda e Bélgica, com o tal golo de ouro do Zidane, de penálti. Infelizmente aconteceu, foi o detalhe que fez a diferença. É isso que pode acontecer.
Cruzou-se com o herói do nosso jogo? Quando Francisco Conceição chegou a Alcochete, julgo que o Ricardo estava nos juniores e depois saltou para a equipa A. Chegaram-lhe avisos sobre ele?
A mim não me chegaram avisos porque eu conhecia o Chiquinho...
Ahh, certo.
Sou muito amigo do Sérgio [Conceição, o pai], passamos férias muitas vezes juntos, jogámos juntos no Standard Liège, onde acabei a minha carreira e construímos uma grande amizade. E desde pequenino que se via que o Chiquinho era o grande habilidoso, o grande talentoso do 1x1. O Serginho [Sérgio Conceição filho], no início, não se percebia bem. O Moisés também, o Rodrigo já se via muita garra, chegou a ser meu jogador no Moreirense. Mas o Chiquinho, sim, via-se que tinha algo diferente. Fico muito, muito contente porque chegou ao mais alto nível, ao nível onde o pai jogou, já fez golo também, um golo importante, deu-nos uma vitória.
…
Prevejo uma carreira muito boa. Acho que o Sérgio tem uma grande influência no sucesso dele, pela mentalidade que transmitiu aos filhos, uma mentalidade ganhadora, de compromisso, de seriedade, de ambição. Isso vê-se muito num extremo que tem atitude de médio defensivo, de defesa, é um extremo de raça, que é destemido no 1x1, quer decidir e, ao mesmo tempo, reage à perda, luta e emociona-se quando a equipa não ganha. É um ganhador. Temos ali um miúdo com grande talento, com capacidade e que nos pode ajudar muito neste Europeu.
Acabou de ser campeão no Chipre. Quão especial foi?
É sempre especial ganhar. Sempre. Para mim, é a única coisa importante. Quando se trabalha muito e se dedica muito e se é resiliente e dedicado e não desistimos, perante muitas e muitas adversidades... Hoje em dia, no futebol, temos de dominar muitas áreas. Tem de haver aqui um conjunto de muitos factores que têm de estar integrados para que possamos ter sucesso.
Felizmente, consegui ganhar numa época difícil, em que terminei a época, eu e jogadores, com quatro e cinco meses de ordenados em atraso. Uma loucura. Tive um balneário difícil de gerir, muito pelo lado emocional dos jogadores, cansados de promessas, mas nunca se desuniram e não deixaram de estar focados no objetivo, que fugia há cinco anos no Apoel. Há seis ou sete equipas com capacidade, foi a ferros. Foi muito gratificante, estou muito orgulhoso, por mim e pela classe de treinadores portugueses, porque é importante ganharmos lá fora. E por Portugal, numa altura em que estamos nesta grande campanha no Europeu.
Como foi a festa no Chipre?
Foi uma grande festa dentro do relvado, fora do relvado. Foi muito emocionante. Este foi provavelmente o campeonato mais difícil dos quase 100 anos do Apoel, que nunca atravessou uma crise financeira como esta. Foi fantástico, uma explosão de alegria, um alívio para os adeptos fervorosos e muito emocionais, sofrem muito nas derrotas. Foi um alívio para toda a gente. Os jogadores foram realmente os grandes heróis deste campeonato, tive de anular três, quatro greves que iam fazer, não tinham cabeça para treinar. Foi mais um desafio para a minha carreira.
E cansou o ‘coração de leão’...?
[risos]
Não estamos habituados a ver um Sá Pinto vergado, mas esta temporada testou os seus limites?
Tenho vindo a testar [risos]. Nisto de ser treinador os limites estão sempre a ser testados, principalmente no insucesso. Como disse e muito bem, como me apelidam simpaticamente há muitos anos e com razão de 'Ricardo coração de leão', é realmente isso. Sempre fui um jogador, pessoa e agora treinador de uma dedicação extrema e de uma mentalidade ganhadora sem limites. Quando não tenho sucesso, quando a equipa não tem sucesso, psicologicamente isso arrebenta comigo e deixa-me de rastos. Há coisas que não controlamos. Somos os responsáveis, mas não podemos vir dizer cá para fora que foi A, B ou C, que foi uma infelicidade deste jogador ou que foi uma falha que ele sabia que não podia fazer.
Não podemos fazer este tipo de discurso porque, mais tarde ou mais cedo, o grupo também se sente traído. Na verdade, o jogo muitas vezes não é só o lado estratégico, podemos falhar aqui ou acolá, na leitura de jogo, mas tem muito a ver com o erro individual. E são coisas que ninguém está à espera, são coisas que treinamos, que já sabemos, que repetimos, mas continuam a acontecer. Quando é mérito do adversário, a tristeza é na mesma grande, mas a aceitação é maior porque vemos que há qualidade do outro lado. É sempre uma frustração quando não ganho, não consigo estar em projetos que não sejam para ganhar.
Então?
Tive algumas escolhas na minha carreira em que fui demasiado emocional, fui pelas pessoas que queriam muito a minha ajuda. Como no Moreirense, são pessoas que gosto muito e respeito muito, excelente clube mas que, enfim, era um projeto difícil logo à partida. Ainda por cima vendemos dois jogadores que não podíamos ter vendido, fez logo a diferença. É algo que não poderei repetir no futuro. Como a situação do Vasco da Gama, um clube histórico e apetecível, com milhões de fãs, mas quando fui para lá o foco era a formação, a nível financeiro não estava bem, ia haver eleições. Eram 12 candidatos e o meu presidente não se ia recandidatar. Só por isso não deveria ter tomado esta decisão. Estive lá cinco meses sem receber um ordenado.
…
Tenho tido cuidado em escolher desafios que me dão oportunidade de lutar por títulos. Os clubes são sempre os mesmos, não vejo clubes a nascer, mas os treinadores são cada vez mais e bons treinadores. Muitos estão espalhados pelas 2.ª e 3.ª Ligas. Tornou-se muito, muito competitivo. Não podemos escolher muito se gostamos do que fazemos, nem escolher muito porque se escolhemos demasiado alguém vem para o nosso lugar rapidamente por metade do ordenado, por menos exigências. Temos de estar atentos ao mercado.
Já passou por campeonatos e geografias tão exigentes, até do ponto de vista pessoal e da personalidade das pessoas de lá. Como é que os cipriotas reagiram à sua frontalidade?
Eu pensava que eles eram muito parecidos com os gregos, mas não. Ainda por cima é uma ilha, as pessoas são mais fechadas. Não são tão efusivas como os gregos são. Vivi em Creta e Atenas e eles são igualmente emocionais, adoram futebol, 90 e tal por cento dos homens são treinadores, percebem tudo, sabem tudo, dizem eles logicamente. Sempre fui muito bem recebido. No Chipre são muito educados, receberam-me lindamente, criaram as condições para eu e a minha família estarmos bem e vivermos bem. É um país muito seguro, com uma temperatura extraordinária, um tempo fantástico o ano todo, a média é 24, 25 graus. Não existe um inverno acentuado. No verão faz muito calor.
As estruturas eram boas, o que pecou foi em termos organizacionais, de ideias, de forma de estar... é completamente diferente da minha. Percebe-se porque não tiveram sucesso recentemente. Financeiramente, o clube estava a atravessar muitas dificuldades. É impossível ser campeão com jogadores com ordenados em atraso durante quatro ou cinco meses. No Irão, no ano passado, pagaram a última vez oito meses antes do final da época e deviam-me seis meses. Ainda não me pagaram esses seis meses. Tenho tido projetos, financeiramente, difíceis mas desportivamente têm corrido bem. Agora, se não me garantem mudanças importantes para o ano seguinte, é difícil continuar.
E o telefone já tocou?
[risos]
Há um mês, "A Bola" escreveu que seria México. Estão longe?
É uma possibilidade, já foi mais concreta, mas o clube não tinha a dimensão que eu queria, com os objetivos que eu queria. Houve outro contacto já, de outros países. Estou em negociações já com um.
Podemos saber a zona do hemisfério?
Podemos [risos]. Um deles é na Europa. Está na iminência de acontecer, ou não acontecer, hoje em dia há a moda das ‘shortlists’, dois ou três treinadores, enfim. Há o convite do Esteghlal novamente, isto posso assumir. Não é uma prioridade nesta altura, ainda não percebi, temos ali coisas em atraso que não resolveram. Houve coisas que aconteceram que não foram as mais corretas. Vamos ver o que pode passar.
Portugal está fora de hipótese?
Gosto muito do meu país e gostava de treinar no meu país, mas tenho-me desiludido um bocado nos últimos tempos quando tenho regressado, pela forma como as coisas têm acontecido, nomeadamente no Braga. Era um projeto bom, um grande clube que está a crescer de ano para ano, fiz um trabalho muito bom. A liderança do presidente [António Salvador] desiludiu-me muito, foi uma pessoa que me abandonou numa altura em que estávamos a ganhar e a fazer coisas muito, muito boas.
…
Jogávamos um grande futebol, estávamos na final da Taça da Liga, fomos a melhor equipa da Europa de sempre na fase de grupos (em pontos e vitórias), estávamos a três ou quatro pontos do quarto lugar que era o objetivo, era normal estávamos em quatro competições e não é fácil ser o melhor a toda a hora. Na semana em que saí, perdemos na Luz para a Taça de Portugal, com uma infelicidade do nosso guarda-redes. Perder na Luz uma Taça de Portugal não é alarmante ou anormal. Fiquei com grande tristeza, sentia que as coisas iam correr bem. Penso no meu país e depois... vou para lá, vou-me desgastar, continuo a ver estes programas todos, toda a gente com opinião para aqui e para acolá, pouca qualidade nos comentários, muita fofoca, muito interesse. Desanimo um bocado. Não quer dizer que não volte, mas teria de ser um projeto bem sólido com pessoas em quem acredito e com equipas competitivas.
Até quando vai decidir?
Tenho oportunidades, mas não tenho um tempo limite. Depende de mim. Se quiser começar a treinar já, posso. Mas não é a qualquer custo. Depois de ganhar, estou a ambicionar outro campeonato, estou à procura de um projeto semelhante que me dê oportunidade de poder continuar a ganhar títulos. É a minha prioridade. Não sendo assim, prefiro esperar nesta altura, salvo aconteça aqui algo diferente num clube que lute por competições europeias mas que tenha estabilidade e uma equipa competitiva. Não podemos esperar muito, nem rejeitar muito, porque existem outros que entram logo e apanham a oportunidade. Com calma, estou à espera que aconteça uma ou outra situação que está em cima da mesa. Vamos ver se acontece.