Uma parte dos dois milhões de euros angariados pela família da bebé Matilde, que sofre de uma doença rara, será sujeita a tributação, em sede de imposto de selo e o valor poderá chegar às dezenas ou centenas de milhares de euros, disse à Renascença o fiscalista Leonardo Marques Santos.
“O regime português não é muito amigável para este tipo de entregas. Costumam-se chamar donativos, mas na verdade não se enquadram no regime do mecenato, que exige que os beneficiários sejam entidades, qualificadas”, afirma o fiscalista. No caso da Matilde os donativos têm sido feitos para uma conta em nome dos pais.
Leonardo Marques Santos explica que este valor “não é tributado em sede de IRS, mas a incidência poderá existir em sede de imposto de selo”. Contudo, grande parte dos donativos podem não estar sujeitos. “No código do imposto do selo existe uma não sujeição quando estamos a falar de donativos de acordo com os usos sociais, até um valor de 500 euros”, explica o fiscalista.
Sem uma lista descriminada das contribuições por pessoa, não é possível calcular o valor devido em imposto. Se é natural que a maioria dos donativos pessoais tenham sido inferiores a 500 euros, sabe-se que alguns dos fundos recolhidos foram angariados em eventos organizados propositadamente, e esses devem exceder o meio milhar de euros, sendo por isso tributáveis.
Sendo o imposto de selo de 10% para a aquisição gratuita de bens por pessoas singulares, basta que a soma dos donativos acima de 500 euros ser de 100 mil euros, que o valor devido em imposto será de 10 mil euros.
Existe ainda a possibilidade de a Autoridade Tributária não considerar que os donativos inferiores a 500 euros se enquadrem nas ofertas de acordo com os usos sociais e, por isso, o valor total dos dois milhões de euros ser tributado, diz Leonardo Marques Santos, mas isso “seria chocante”, considera. Nesse caso, o valor a pagar em impostos seria mais de 200 mil euros.
“Estes donativos de acordo com os usos sociais não estão muito trabalhados, não existe muita doutrina. Normalmente, aplica-se a aniversários, casamentos e batizados. Se quando uma pessoa vai jantar a casa de outra leva uma garrafa de vinho, de acordo com os usos sociais, e essa garrafa não é tributada, seria para mim chocante que donativos feitos para ajudar uma bebé de dois meses a comprar um medicamento que é essencial não se enquadrassem num uso social.”
Uma “válvula de escape” para a lei?
Questionado sobre se seria mais avisado os pais tentarem formar uma entidade para receber os donativos ao abrigo da lei do mecenato, Leonardo Marques Santos responde que isso dificilmente seria viável. “O processo de constituição de uma entidade elegível para efeitos de mecenato, por regra geral, demora algum tempo. Poderia ser viável que os donativos tivessem sido feitos a uma entidade já constituída, e ser ela a controlar, mas não é certo que teria tido o mesmo sucesso”.
O fiscalista diz, contudo, que esta é uma boa oportunidade para refletir sobre a lei atual. “Não podemos tirar os olhos do que é realmente importante, as pessoas precisavam de ajuda e a sociedade mobilizou-se e ajudou rapidamente. É um excelente momento para ponderarmos sobre se não deve existir nalguns casos uma exceção na lei, por ventura um reconhecimento a posteriori. Podia-se equacionar uma situação de recebimento e de qualificação ao abrigo do regime, depois dos fundos serem transmitidos. É um bom caso para se ponderar se o regime não devia ter uma válvula de escape”, conclui.
A Renascença contactou os pais da menina. Responderam que, neste momento, estão "focados na recuperação da Matilde”, escusando-se a comentar, mas dando indicações de que estão a par da possibilidade de ter de pagar alguns impostos sobre o valor recebido, ao dizer que “não me parece que sejamos apanhados de surpresa”.
Questionado pela Renascença sobre uma possível exceção à cobrança de impostos neste caso, o Ministério das Finanças respondeu que "não comenta situações de contribuintes em concreto".
[notícia atualizada às 18h30 - com a resposta do Ministério das Finanças]