O sínodo da família começa no domingo e o tema dos divorciados e recasados e o respectivo acesso aos sacramentos estará inevitavelmente em cima da mesa.
No sínodo de 2014 não foram apresentadas soluções para o problema, mas sim compromisso de o analisar mais a fundo. Este é um dos temas mais fracturantes, no verdadeiro sentido da palavra, uma vez que motivou o mais aceso debate entre os bispos.
Do lado de fora, milhares de casais que vivem numa situação canonicamente irregular, aguardam com expectativa as decisões dos bispos, sabendo todavia que é sempre o Papa quem tem a palavra final. O cónego Carlos Paes, que é assistente das Equipas de Santa Isabel, um movimento reconhecido pela Igreja que acompanha casais neste estado, confirma que há muito sofrimento.
“Uma pessoa que está privada do acesso à comunhão, nomeadamente, mas também à absolvição sacramental, acaba sempre por ter o sentimento de alguma exclusão, de alguma penitência, que lhe é imposta. Às vezes, as pessoas têm a sensação que fizeram uma coisa má e agora têm de suportar o castigo. Também não estão castigadas”, explica.
Desde o Papa João Paulo II que se tem procurado respostas e Francisco não é excepção: “Este Papa sugere caminhos de integração, de participação, de inclusão, dessas pessoas, para que não se sintam marginalizadas.”
As actuais regras da Igreja ditam que quem vive numa união irregular, seja porque o próprio ou porque o esposo já foi casado pela Igreja, não pode receber os sacramentos da comunhão, da absolvição ou, se for caso disso, do baptismo. Isto só se aplica a quem vive numa segunda união, pois estar meramente divorciado ou separado não é em si motivo de afastamento dos sacramentos.
O cerne da questão é a indissolubilidade do casamento cristão, segundo as palavras de Cristo no Evangelho, quando disse que o homem não deve separar o que Deus uniu. Em caso de segunda união, e partindo do princípio que não foi declarada a nulidade da primeira, na prática é como se a pessoa estivesse num estado de adultério – e, por isso, em pecado grave.
A confissão não é solução – a não ser que haja propósito de emenda, o que levaria ao fim da segunda união ou, como acontece em alguns casos, o compromisso sincero de os seus membros se absterem de relações sexuais – e a doutrina da Igreja dita que quem não está em estado de graça não deve comungar.
A “abordagem misericordiosa”
No sínodo, de um lado está a proposta encabeçada pelo cardeal Walter Kasper, que prevê uma “abordagem misericordiosa” que possibilite aos bispos de cada diocese decidir em alguns casos, onde há prova de uma caminhada sincera de aproximação aos ensinamentos cristãos, readmitir as pessoas aos sacramentos. Do outro lado estão vários crentes, e não poucos bispos, que não vêem como é que isto seria possível sem mudar a doutrina.
Sem se comprometer com uma posição ou outra, o cónego Carlos Paes ajuda a entender o que significa a abordagem misericordiosa, dizendo que não se trata de passar um pano sobre a questão. “A abordagem misericordiosa é, sobretudo, uma abordagem criativa, uma abordagem medicinal, uma abordagem transformadora, uma abordagem reveladora.”
“Às vezes, pensamos que é simplesmente passar um pano, para limpar, sem mais. Não. A abordagem misericordiosa é sempre reconstrutiva, porque o Deus que é misericordioso, antes de o ser, é criador. E todos os gestos de Deus trazem a marca da criação e Deus cria e recria constantemente o seu povo e os membros do povo de Deus em geral e também individualmente, exactamente oferecendo uma possibilidade de reconstrução e regeneração.”
Comunhão espiritual?
Perante o impasse e o aceso debate, alguns bispos propõem uma terceira via, da comunhão espiritual.
O termo data de São Tomás de Aquino e o padre Bernardo Aranha ajuda a decifrar o seu significado. “Qualquer sacramento que uma pessoa recebe tem um efeito espiritual. A comunhão tem um efeito espiritual, a união com Cristo, a união na fé e na caridade com Cristo. Portanto toda a comunhão é comunhão espiritual.”
Pode acontecer, contudo, o fiel querer comungar mas não poder: “Este desejo por vezes não é possível concretizar, porque não tenho acesso aos sacramentos, não posso ir à missa, estou doente, inválido, longe de uma igreja, numa circunstância que, independentemente da minha vontade, me impede de comungar.”
“O problema que se põe com os divorciados e recasados é um problema diferente. Quando o Papa Bento XVI e o Papa João Paulo II falam na comunhão espiritual, o que querem dizer é que os divorciados e recasados devem procurar as disposições interiores para poder unir-se espiritualmente a Cristo, embora não o possam fazer porque a sua vida, livremente escolhida, contradiz de alguma maneira o mistério a que a comunhão nos une”, explica.
“No fundo, a comunhão espiritual vivida desta segunda maneira é um apelo à conversão, que é feito a todos e cada um de nós, que cada vez nos aproximemos mais de uma verdadeira comunhão espiritual com Cristo.”
Começar pelo fim
Independentemente das conclusões a que o sínodo chegar, o cónego Carlos Paes teme que se comece pelo fim. “Há todo um trabalho a montante que será a melhor solução para uma reintegração positiva dessas pessoas e até para que esses casos não se multipliquem, como parece continuar a acontecer.”
O sacerdote acredita que é preciso fazer muito mais em termos de educação e formação. “Há muita ignorância acerca da beleza do matrimónio e da família como célula base e mais importante, quer para a sociedade civil, quer para a comunidade religiosa, seja cristã ou de outra religião.”
“Há toda uma riqueza que se pode perder no meio dessa discussão, se vão ser admitidos ou não, se podem receber absolvição ou não, isso não é o principal com certeza e ficaria desiludido se a tónica principal fosse essa e não fosse exactamente revalorizar o matrimónio na sua dignidade natural e sobrenatural”, diz.
O sínodo dos bispos começa no domingo e decorre até ao dia 25 de Outubro. No final serão apresentadas ao Papa as conclusões dos trabalhos, mas cabe sempre a este qualquer decisão final.