Desde o início de março, quando a pandemia de Covid-19 chegou a Portugal, houve quase seis mil mortes em excesso em Portugal, em comparação com igual período em 2019.
Os dados foram revelados esta sexta-feira pelo Instituto Nacional de Estatísticas (INE). Em causa está, sobretudo, o acréscimo do número de óbitos de pessoas com 75 ou mais anos de idade. Até hoje, a Covid-19 provocou 1.855 mortos em Portugal, o que significa que, mesmo sem as mortes causadas pelo novo coronavírus, há um excesso de mortalidade em cerca de quatro mil mortes.
Questionada sobre estes números na conferência diária sobre a situação epidemiológica, a diretora-geral da Saúde, Graça Freitas, diz que apurar as causas desta mortalidade excessiva envolve um "trabalho complexo" que já está em marcha.
"Em relação à mortalidade, temos de entender duas coisas que são totalmente diferentes, apesar de serem complementares. Como sabem, em Portugal, desde 2014, o certificado de óbito é eletrónico e, no momento em que é emitido, nós temos conhecimento dele. Essa é a contagem do número de mortos, que é só saber quantos. E em relação a isso, quer a Direção-Geral da Saúde (DGS), quer o Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge, têm linhas de mortalidade estudados em função dos anos anteriores, em que os casos que vão correndo vão sendo contabilizados."
Codificação das causas de morte é "complexa" mas vai ser feita
Quando essa linha é ultrapassada, fala-se em excesso de mortalidade. Mas "diferente coisa é o cálculo das causas de morte", indica Graça Freitas.
"Codificar as causas de mortes é muito difícil, porque a maioria das pessoas, quando morrem, tem um historial de doenças que podem levar à sua morte mas que pode não ser a sua causa básica. Isto é difícil de explicar, mas é um processo complexo, tem regras que são definidas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e em Portugal esse processo de codificação das causas de morte, que determina para o INE a forma como se morre no nosso país, é feito manualmente."
Neste momento, adianta Graça Freitas, estão a ser testados "sistemas semiautomáticos de codificação para acelerar" o processo, que "é feito por codificadoras especializadas e que obedece a um processo de extremo rigor" e que, mais importante, "é feito retrospetivamente".
"Estamos a finalizar agora, em 2020, a análise de todas as causas de morte em 2019, porque exige formação específica e a utilização de uma classificiação internacional complexa. Não é qualquer pessoa, são pessoas especialmente treinadas para fazer codificação das causas de morte. Quando acabarmos de codificar o ano de 2019, vamos começar o atual ano, 2020."
Por este ser um ano excecional, contrapõe Graça Freitas, parte dos recursos de codificação foram desviados para fazer a codificação Covid-19, para "ter estatísticas fiáveis" e para distinguir quem, estando infetado com Covid-19, morreu da doença ou morreu por outros motivos, por exemplo, acidentes de viação.
Menos idas ao médico
Um dos ângulos abordados pelos especialistas ao analisar estes números é o número de episódios de urgência nos hospitais, que caiu a pique desde o início da pandemia e que, apesar de registar agora alguma recuperação, está longe da situação pré-Covid-19.
Dados disponibilizados pelo próprio Ministério da Saúde, no site do Serviço Nacional de Saúde (SNS), indicam, por exemplo, que ontem, dia 10 de setembro, foram registados cerca de 13 mil episódios nas urgências. No mesmo dia do ano passado, foram cerca de 17 mil.
A par disto, como sublinha o presidente da Associação de Administradores Hospitalares à Renascença, há o facto de a média de casos de urgência hospitalar, mesmo nos meses de verão, continua muito abaixo da que foi registada em anos anteriores.
"Nós temos vindo a alertar, já desde o mês de abril, que esta mortalidade para além da Covid-19 se tem vindo a verificar e que é constante ao longo dos últimos meses", refere Alexandre Lourenço. "O que é importante agora perceber é porque é que ela está a ocorrer e aí há uma obrigatoriedade de investigação, nós não estamos a encontrar respostas fáceis para este excesso de mortalidade, como já vimos muitas vezes mencionado, como as ondas de calor ou outras. Temos de perceber quem são estas pessoas, quais são as condições, quais são as patologias que estão a condicionar esta mortalidade excessiva."
O representante dos administradores hospitalares diz que vê "algumas hipóteses" para explicar esta mortalidade excessiva, a começar pelo que diz ser a "evidente falta de acesso aos cuidados de saúde" por dois motivos, um deles a incapacidade do SNS em voltar a dar "respostas idênticas" às que dava antes da Covid-19.
"Nos cuidados primários perdemos sete milhões de contactos presenciais, entre enfermagem e consultas médicas, nos hospitais estamos a falar de mais de um milhão de consultas, mais de 100 mil cirurgias, isto até julho deste ano, o que pode ter efeitos sobre a saúde, principalmente dos doentes crónicos e doentes com maior idade", refere Alexandre Lourenço. "Nestas atividades programadas – nas cirurgias, nas consultas – estamos agora a verificar alguma recuperação, mas continuamos com uma atividade inferior à da era pré-Covid."
Por outro lado, acrescenta, há a questão de as pessoas terem ficado com medo de se dirigirem aos hospitais e centros de saúde.
"Há algo que procurámos fazer – e lançámos uma campanha em conjunto com a Ordem dos Médicos e a Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares – que é dizer aos portugueses que devem dirigir-se aos serviços de saúde, ao seu médico, se tiverem alguma sintomatologia e não devem adiar."
Para Alexandre Lourenço, é urgente conhecer as causas desta mortalidade em excesso, também porque, com a aproximação do inverno, vamos estar a "conviver com a Covid-19 mas também com infeções respiratórias sazonais", lembra.
"É essencial saber o que está a acontecer e, de acordo com esse conhecimento, tomar medidas concretas. Depois, por outro lado, ter consciência de que a janela de oportunidade que nós temos atualmente em mãos fica muito reduzida à medida que nos vamos aproximando do inverno, porque aí, sim, vamos ter de conviver já com uma pressão sobre os serviços de saúde. Aliás, estamos já a verificar um crescimento da incidência da Covid-19, mas depois para além da Covid-19 vamos ter também de conviver com as infeções respiratórias sazonais e aí, a nossa janela de oportunidade para ter um sistema direcionado aos doentes não-Covid é muito mais reduzida."