A canonização dos pastorinhos está para breve?
O processo está a decorrer na Congregação para a Causa dos Santos, para ver se há fundamento para o milagre. Não temos confirmação nenhuma. Está muito bem fundamentado, está a correr bem, mas há várias etapas ainda a cumprir. Estou com fundada esperança de que possa acontecer durante o ano centenário.
Ainda a tempo da presença do Papa em Fátima?
Não sei. Não posso excluir, mas também não posso dar certezas, porque faltam muitas etapas. Sou um homem com responsabilidades e que não gosta de criar falsas ilusões. Esperamos e continuamos a orar ao Senhor. Mas espero que, durante o centenário, tenhamos essa graça e essa alegria de participar na canonização.
E sobre o milagre, propriamente dito? Podemos falar ou ainda é reservado?
O milagre é como o segredo de justiça [risos]. Enquanto está em exame, em análise, não podemos falar.
Fátima está habituada a receber papas, mas Francisco é diferente. Haverá novidades?
A grande novidade é a própria presença do Papa Francisco. Tudo o resto…
E também a opção de não passar por Lisboa…
Sim, ele vem como peregrino, entre os peregrinos. Porquê? Quais as razões? É uma bela pergunta para pôr ao Papa Francisco, porque só ele poderá dizer as razões que traz no seu coração. Mas, conhecendo o estilo do Papa Francisco, podemos entrar um pouco no seu coração e descobrir algumas razões. A primeira será confiar o seu pontificado a Nossa Senhora de Fátima.
Ele é muito devoto de Nossa Senhora…
É devoto, mas, além disso, a mensagem de Fátima diz respeito também à conversão da Igreja e o Papa está a fazer essa reforma que começa, antes de mais, pela conversão espiritual de toda a Igreja – hierarquia e todo o povo de Deus. Penso que é uma boa razão para confiar o seu projecto de reforma da Igreja a Nossa Senhora de Fátima.
Outra causa que o Papa leva a peito e em que insiste frequentemente é a da paz. A mensagem de Fátima é uma mensagem de paz, para a paz da humanidade, e o Papa tem dito que vamos vivendo uma terceira guerra mundial em episódios. E há outra, que nós não temos a coragem de lhe chamar “guerra”, que é a economia que mata.
E como pode Fátima ajudar nesse campo concreto da economia? Qual é a faceta da mensagem direccionada para isso?
A faceta não é, propriamente, dizer como se organiza a economia porque isso nem o Papa o pode dizer. É a defesa da dignidade humana, dos direitos da pessoa humana e saber que a economia está ao serviço da pessoa humana. Há uma globalização a nível financeiro, há uma finança desligada da economia que é preciso regular para estar ao serviço das pessoas, sobretudo dos mais pobres. Essa tem sido outra tónica do Papa Francisco. A guerra não tem só a ver com as armas.
O terceiro aspecto importante na visita do Papa prende-se com o reconhecimento do alcance universal da mensagem de Fátima. Como todos os outros papas anteriores que vieram aqui, ele tinha – e eu ouvi da própria boca dele – uma enorme vontade de vir a Fátima no centenário. São três boas razões para justificar a presença do Papa.
Voltando à ligação do Papa a Fátima, essa ligação não é inerente? Desde o início que o Papa integra a mensagem…
Sim, é isso. Na terceira parte do segredo, sobretudo, aparece a figura do “bispo vestido de branco”, que os pastorinhos entenderam tratar-se do Papa, sem saberem exactamente quem era. E, por isso, eles rezavam pelo Papa, pelo Papa que sofre como representante de toda a Igreja. Há, aqui, uma ligação entranhada, visceral, entre a mensagem de Fátima e a Igreja, entre a mensagem e, concretamente, a figura do Papa como símbolo e representante da unidade de toda a Igreja, porque havia esse programa ateísta de expulsar Deus da sociedade e destruir a Igreja, atingindo-a na sua catolicidade. O Papa sustentava essa catolicidade e a mensagem teve um cariz de apoio às nações que sofreram essas perseguições e nas quais se procurava cortar a ligação com o centro da Igreja, simbolizada no Papa. Esse é um dos aspectos, mas não é só isso.
O próprio Paulo VI, quando cá veio, em 1967, disse que uma das mensagens é rezar pela paz interna da Igreja – algo que está actual porque as divisões continuam. O Papa Bento XVI, no avião, na viagem para Portugal, dizia que os maiores ataques à Igreja saíam de dentro da Igreja, tal como os ataques ao Papa…
Por isso é que a terceira parte do segredo, quando fala da penitência, não se refere só ao mundo, refere-se à própria Igreja. Foi isso que o Papa Bento actualizou naquele momento em que a Igreja estava a sofrer porque causa dos escândalos revelados nessa época.
Quando se retirou, o Papa emérito disse que ia rezar e sofrer...
Não disse que ia sofrer... Disse que ia rezar e interceder pelo seu sucessor...
Sim, mas a vocação dele também não se liga com a mensagem de Fátima?
Ele intercede pelo seu sucessor e isso é muito belo. Se ele o faz por causa da mensagem, isso terá de lhe ser perguntado, porque essa ligação explícita ele não a fez. Mas estou convencido, por exemplo, de que o Papa João Paulo II, quando fez, no ano 2000, aquela jornada de a Igreja pedir perdão, foi por causa da mensagem de Fátima. Ele sentiu que era preciso, da parte da Igreja, uma conversão, um pedido de perdão pelos pecados dos seus filhos e da História.
Olhando para os aspectos organizativos da visita de Francisco, preocupa-o a segurança?
Fala-se muito na segurança, mas confesso que não tenho grande preocupação porque ela está bem entregue. As forças de segurança no Estado estão a trabalhar nisso há muito tempo e confio também na protecção de Nossa Senhora.
Naturalmente que, no mundo em que vivemos, não podemos excluir um problema, mas estou confiante de que não haverá problema algum.
As pessoas não vão poder ver o Papa senão em Fátima, pelo que esse é mais um factor que fará com que venha mais gente do que o habitual...
Sim. Além de termos ecrãs gigantes no recinto, vamos tê-los também na cidade. E, entre o campo desportivo, onde pousará o helicóptero do Papa, e o recinto, são 3,5 quilómetros de papamóvel. É outra possibilidade para ver o Papa.
Já recebeu indicações do Vaticano? Sei que vêm cá comissões para verificar tudo...
A única indicação que recebi da comissão é que o Santo Padre deseja que seja tudo com a maior das simplicidades. Incluindo as refeições. Chegou a esse pormenor, de dizer que quer refeições simples.
E já decidiram o que ele vai comer?
Não, isso não é comigo. É com as cozinheiras, certamente, e com o administrador. Não sei de nada.
Por que é que Fátima não passa de moda?
Fátima, por vezes, é vista, sobretudo por determinada comunicação social, através de aspectos marginais: as promessas, os peregrinos mais simples que vêm a Fátima, como se as elites não viessem, os sacrifícios de andar aqui de joelhos ou de rastos... Ora, isso é apenas um fragmento de todo o cenário. Estamos habituados a acentuar o aspecto dos apelos – à conversão, à reparação –, mas, antes de mais, há os dons, porque Nossa Senhora veio aqui trazer uma advertência muito séria à humanidade para repensar os caminhos que estava a percorrer, que a levavam à autodestruição e à ruína. E uma advertência, também, à Igreja, que estava a sofrer perseguições e era preciso enfrentar o problema da apostasia e da infidelidade. Para isso, Nossa Senhora veio trazer os dons: graça, misericórdia e paz. A chave para interpretar a mensagem é esta, a chave do amor de Deus por este mundo, concretamente o mundo que estava a passar por sofrimentos horrorosos, como os das duas guerras.
Nesse tempo, isso era mais evidente. Não acha que agora há outro tipo de problemas?
Exactamente. Agora é preciso actualizar, mas a mensagem é esta, sempre. Deus traz sempre os dons, oferece os dons, com o chamamento e a advertência para o que se está a passar em cada época. Por isso, um dos aspectos da mensagem de Fátima é a dimensão profética de ajudar a ler os sinais dos tempos.
Mas quem consegue ler os sinais dos tempos?
Temos sempre o Papa Francisco, que nos ajuda a ler os sinais dos tempos de hoje. Hoje, não temos lideranças mundiais. O único líder mundial neste tempo de inquietação, perturbação e desorientação é o Papa. É o único que nos ajuda a parar, a reflectir, a ler os sinais do tempo. Por isso, a vinda dele a Fátima representa uma mais-valia, também para Portugal. E julgo que ele trará uma mensagem nesse sentido.
Também não podemos pensar que a mudança no mundo acontece com uma varinha mágica. Vem-se a Fátima, faz-se umas orações e pronto... Por isso, entra aí a dimensão da conversão, da conversão dos corações.
Mas muitos podem achar fascinante o carisma de Francisco, mas depois o Papa vai-se embora e…
Eu também não tenho a chave do segredo. Como é que se toca o coração dessas pessoas? Só Deus sabe. Agora, há uma coisa que a gente vê e até apalpa: por que é que o Papa Francisco toca o coração de tanta gente? Por causa do seu testemunho evangélico, que não é triunfalista - é humildade, não diz muitas palavras, faz muitos gestos, gestos eloquentes, que falam por si.
Penso que para a Igreja de hoje é este o caminho que Deus lhe pede: o caminho de um testemunho humilde, corajoso e, sobretudo, a alegria do Evangelho. Porque muitas vezes pomos a tónica só numa espécie de código de leis ou de proibições. Falta-nos muitíssimo na Igreja: a experiência viva da fé, da esperança e do amor.
É preciso fazer uma releitura de certos aspectos da mensagem de Fátima que, no seu tempo, podiam ser normais, como a visão do Inferno?
Mas já estamos a fazer! Uma das tentações que temos é de olhar para a mensagem à letra. Jesus também usou essas imagens extremas acerca do Inferno. Quando se fala da visão do Inferno em Fátima, não quer dizer que era um filme a cores que eles estavam a ver. Nossa Senhora serve-se do imaginário das crianças para fazer compreender a monstruosidade do mal, do pecado, e as consequências devastadoras que isso pode trazer – como as guerras, as carestias, as perseguições. Por conseguinte, pôr os jovens a interpelar a liberdade humana e a responsabilidade que têm. A liberdade no homem está sempre a ser interpelada na sua responsabilidade.
A seguir vem, depois dessa visão aterradora, o Coração Imaculado de Maria a oferecer-se como um caminho para Deus, para o bem. São mensagens belas, é preciso interpretá-las para hoje.
Há sempre um bem que pode sair vitorioso?
A última palavra é sempre a palavra do amor, que vence nos dramas da história.
Ser bispo em Fátima é diferente de ser bispo noutra diocese?
Cada diocese tem características próprias e esta tem este dom que é um carisma. Uma diocese que recebeu uma mensagem, que é responsável por ela e pela sua divulgação. Fátima tem um alcance para a Igreja em Portugal, para a Igreja Universal e para a Humanidade.
E para si?
Sou um convertido a Fátima. Eu era um céptico em relação a Fátima. Antes de ser bispo, ainda como padre…
Céptico como?
Céptico... Não ligava, não me despertava interesse, também não tomava posição. Entendia que teria sido uma coisa de crianças, para crianças, que estava esgotado tudo isso.
O que aconteceu para mudar a sua visão?
Em 1997, fui convidado para vir fazer uma conferência aqui. E, pela primeira vez, li as memórias da irmã Lúcia. Fiquei profundamente impressionado, quer pela autenticidade do testemunho que ela dá quer pela seriedade dos problemas que tratava. Li as memórias três vezes para encontrar o contexto histórico, eclesial, as chaves hermenêuticas. Para ver quais são os pontos essenciais, o que é secundário.
Nesse sentido, sou convertido a Fátima. Faço sempre a distinção: não foi um convertido de Fátima. Interpelou-me.
Ainda nem sonhava que viria a ser bispo de Fátima...
Nem sonhava ser bispo nem nunca na vida pensei que viria parar aqui, a Fátima.
Com que riqueza gostaria que as pessoas voltassem para casa depois de vir aqui?
Aquilo que me tocou foi o chamamento a descobrir a beleza de Deus e do seu amor. Foi a primeira impressão dos pastorinhos. Não me posso esquecer da profundidade na simplicidade das palavras do Francisco: “Gostei muito de ver o anjo, gostei mais de ver a Nossa Senhora, mas aquilo de que gostei mais foi de ver Deus naquela luz que Nossa Senhora nos metia no peito e que ardia sem queimar. Gosto tanto de Deus!”
Sem a experiência de Deus, a religião fica reduzida a uma ética, mandamentos, e não [inclui] a experiência viva de Deus, que se traduz na ternura da mãe do Coração Imaculado. Uma linguagem que toda a gente entende, dos mais simples às elites.
Mesmo a questão da reparação é muito linda, sabe porquê? Porque a Nossa Senhora veio buscar colaboradores de Deus para a reparação do mundo, isto é, do pecado do mundo e dos estragos do pecado do mundo. Resistir à força do mal: não vamos ficar de braços cruzados.
É o que deseja como fruto do centenário?
Sim, esta nova visão, uma nova linguagem para os tempos de hoje, uma nova cultura, a beleza, para mostrar que não é uma subcultura porque há uma certa elite que olha para isto...
Revê-se nesse preconceito?
Antigamente, era um racionalista.
Agora, como convertido [risos], já olha de maneira diferente.
Fátima é um lugar de cultura. É a cultura materna, é a cultura espiritual, é a cultura da beleza – da beleza do coração humano, da pureza. Eu costumo dizer: os milagres de Fátima não são espectaculares, não fazem notícia de primeira página, mas muita gente refaz a sua vida aqui. Há todo um bem que está presente por todo o lado, que não faz notícia, mas é esse que sustenta o mundo. É esta outra dimensão que Fátima também faz ver.