As circunstâncias que vivemos são novas para as nossas gerações. Colocam dúvidas sobre o futuro. Levantam medos e receios. Sugerem interrogações sobre modos de vida. Obrigam a rever modelos económicos.
Tudo isto é legítimo, para não dizer necessário. A atual pandemia é uma ruptura com o que nos habituámos a ver, a fazer, a ter e a gastar.
A União Europeia foi feita para garantir a paz. E com todos seus defeitos, nesse aspeto, tem cumprido. As últimas gerações europeias puderam crescer na sociedade do bem-estar, porque havia paz. E não só na Europa. Em geral, habituámo-nos a uma época de progressos sucessivos. A ciência e a técnica levaram o homem ao espaço e a internet tornou-nos vizinhos de (quase) todos os homens.
Mas a ambição aguçou-nos o engenho. O homem tornou-se deus de si próprio. Quis regular quem vive e quem morre. E alterar regras da natureza. Contrariá-las, porque não? Torná-las dóceis à vontade do homem. O império da vontade regularia o universo, cujas leis passariam a ser as leis do homem. A mentalidade, aparentemente dominante, entregava ao homem as chaves da vida e da morte.
Há meia dúzia de meses, alguém sonhava ver o homem todo-poderoso como nunca, entrincheirado à pressa por um vírus pequenino, mas global? Nada nos preparava para isto. Acontece que muitas das nossas reações aos acontecimentos são baseadas na experiência. Reações primárias, mas compreensíveis. Só percebemos o que já experimentámos. E coisas como esta pandemia, nunca nenhum de nós experimentou nem desejou experimentar. Nós, não. Mas outros, sim.
Ao longo da história, as ‘pestes’ ceifaram milhões de vidas. E apenas há cem anos a Pneumónica (ou Gripe Espanhola) vitimou entre 50 a 100 milhões de pessoas, em todo o mundo. Algumas zonas de Portugal terão mesmo perdido cerca de 10% da população. Essa pandemia fez estremecer o mundo a partir de meados de 1918 e durou cerca de dois anos. Pior um pouco: a pandemia somou-se à primeira guerra mundial. Durante seis anos - de 1914 a 1920 - a destruição, a morte e a doença deixaram o mundo de rastos. Os efeitos conhecem-se. E não foram bons.
Agora, no século XXI, vamos seguramente ultrapassar esta tragédia, como na história se ultrapassaram crises tão ou mais graves do que esta. Temos diversas vantagens. Aprender com os erros de quem nos precedeu, é uma delas.
Apesar dos egoísmos nacionais visíveis na Europa é decisivo evitar, agora, conflitos militares e económicos, os quais, de resto, iam deitando a perder o século XX.
A soberba e a arrogância com que o homem tem olhado a vida (a Holanda é dos piores exemplos que podemos encontrar) é irmã gémea da visão estreita e egoísta daqueles que na Europa (mais uma vez a Holanda...) pensam poder construir uma trincheira de riqueza, à prova de vírus, sejam eles sanitários, económicos, políticos ou culturais.
Devo dizer que até tenho simpatia natural pela Holanda. Mas factos são factos. O mesmo país que descarta a vida (dos mais novos e dos mais velhos) com enorme facilidade e vulgarizou a prostituição como um negócio a retalho, é exatamente aquele que mais se opõe à solidariedade europeia, na ânsia de manter o seu próprio conforto, como se o pudesse fazer orgulhosamente só. Na vida pessoal ou na dimensão coletiva a mesma mentalidade egocêntrica, baseada num individualismo exacerbado até às últimas consequências.
Nestas conjunturas surgem sempre adeptos do ‘salve-se quem puder’. E aqui, como sempre, o populismo espreita a sua oportunidade. E como quase sempre, espreita nos dois lados do tabuleiro: à direita e à esquerda. E não, não há populismos bons. São todos maus.
Mas da Europa também nos chegam sinais de esperança. Histórias de solidariedade, visão e de verdadeiro amor ao próximo. Até a ortodoxia económica alemã parece estar a chegar à conclusão de que para cuidar das feridas sociais e proteger as pessoas, é indispensável dar a mão e ajudar sem preconceitos os países mais atingidos. Perceber que nenhum país se salva sozinho pode ser uma das melhores lições desta pandemia.
Em todo o caso, a nossa vida vai mudar. Em maior ou menor grau, mas vai mudar: no modo de nos organizarmos, nalguns modelos económicos, nos desígnios de vida. Vai ser assim no mundo, na Europa e também em Portugal.
No contexto atual, os portugueses e os seus dirigentes estão a ser olhados como um dos exemplos a seguir. O interesse do país e das pessoas tem permitido definir consensos essenciais. Tem sido importante agora e vai continuar a ser depois. Sem apagar diferenças indispensáveis em democracia, mas não as transformando em trincheiras ideológicas desfasadas do interesse de todos.
Apesar de tantas interrogações sobre o futuro, alguns iluminados só têm certezas. Ao contemplarem o Papa Francisco numa praça de São Pedro singularmente vazia, mas espiritualmente cheia, já vieram mesmo proclamar que agora sim: Deus abandonou os crentes. E que deste modo se tornou finalmente evidente que só a ciência pode salvar o homem.
Na ânsia de transformarem desejos próprios em realidade, esquecem-se de um pormenor: nem a pandemia que no século XX ceifou mais de 50 milhões de vidas significou o fim da História nem o fim de Deus.
Deus abandonou os crentes? Atendendo à evolução das últimas décadas, talvez se deva colocar a questão contrária: até que ponto não têm sido os homens, incluindo muitos crentes, a virar as costas a Deus?