O terror do passado domingo foi vivido por muitos portugueses em isolamento quase absoluto, numa crua lembrança de que, em países de gestão centralizada e centralizadora, mesmo no seio da União Europeia, a Idade Média não parece tão distante assim.
Na terceira maior cidade do país, Braga, um incêndio sem paralelo nas últimas décadas, evoluiu à frente dos olhos de todos os residentes sem que isso tivesse qualquer reflexo significativo na produção dos média nacionais e também locais.
Os primeiros, limitadíssimos por uma existência no limiar do possível, tinham noticiários generalistas, com dados globais da terrível situação no país e com menções breves a cada uma das localidades atingidas; os segundos, em situação ainda pior, ausentaram-se quase por completo (a primeira página de um dos jornais diários da cidade é, desse ponto de vista, absolutamente exemplar – reflete uma realidade alternativa, sem qualquer menção ao assunto).
Os cidadãos não tiveram – em Braga e em muitas outras localidades – nenhum mecanismo integrado de produção de informação relevante para as populações e não tiveram – em Braga e em muitas outras localidades – acesso a canais de informação fiável e oportuna sobre o que estava a passar-se no seu entorno.
Em resumo, um cidadão da terceira maior cidade do país – repito! – conseguia apenas recolher informação solta sobre o que estava a acontecer à frente dos seus olhos através de métodos medievais (com tecnologias do presente, claro): o testemunho partilhado em redes de amigos e conhecidos e o comentário acrescentando detalhes.
O exemplo de Braga é, claro está, apenas um. E nem sequer é o mais significativo nem mais grave. Mas, sendo a terceira cidade do país, mostra-nos com enorme clareza como aquilo a que chamamos “o Estado” é uma edificação muito frágil, assente em complexos dispositivos legais, mas com muito pouca complementaridade concreta, no terreno.
O país viveu um domingo entregue à sua sorte, conduzindo em estradas rodeadas de fogo sem saber se seria seguro avançar ou não, defendendo propriedade privada sem qualquer auxílio, organizando-se para apoiar o esforço extraordinário de bombeiros voluntários sem capacidade para lidar com tão grande catástrofe.
Tudo indica – sobretudo depois do relatório sobre a tragédia de Pedrogão – que a forma como o Estado organizou, equipou, preparou e gere os serviços de proteção civil é desadequada. Tudo indica que o desinvestimento do Estado, ao longo de décadas, por falha ou omissão, na dinamização do chamado jornalismo de proximidade (sobretudo, permitindo a completa subversão da ideia de ‘rádio local’) interfere de forma determinante com a segurança das populações em situações extremas e, por arrastamento, com o desígnio de coesão nacional.
O Portugal dos Uber X, dos Airbnb, das Web Summits e das Madonnas em estádio gigantes de futebol não é o mesmo que enfrenta incêndios tenebrosos sem apoio e sem informação. O primeiro maltrata e desrespeita, há séculos, o segundo. Chegámos agora a um ponto em que terá terminado a paciência para ouvir mais discursos sobre a imponderabilidade da natureza, terminou o tempo para continuar a permitir que a Proteção Civil continue a ser território sereno para o serviço de clientelas e interesses e está na hora de se exigir a promoção de uma rede sustentável de órgãos de comunicação locais e regionais (que passa pela urgente revisão da Lei da Rádio).
Invertendo a direccionalidade daqueles despachos que costumam irradiar do Terreiro do Paço para o resto do território, este é o momento para, do lado de cá, se dizer, em tom firme: “faça-se”.