Este texto é sobre uma guerra que começou no dia 15 de março de um ano terminado com o algarismo “um”. Não, não é (embora pudesse ser) sobre os sangrentos ataques da UPA de Holden Roberto, a 15 de março de 1961, aos fazendeiros portugueses do norte de Angola, de que resultaram cerca de 800 mortos, entre colonos brancos e negros. E por isso veio depois o “para Angola, rapidamente e em força!” de Salazar. O conflito que queria antes aqui evocar é mais recente e, tragicamente, ainda dura: é a guerra na Síria, iniciada com o levantamento armado de 15 de março de 2011.
Um relatório agora publicado pela UNICEF resume o horror. Em dez anos, dez mil crianças sírias morreram ou foram feridas; das que ainda (sobre)vivem, quase todas nasceram já em guerra e não conhecem, por isso, qualquer outra realidade; e um total estimável em seis milhões precisa de ajuda urgente, para suprir a fome, a miséria, a orfandade, as deslocações forçadas, a falta de infraestruturas de saúde ou de educação. Mais de metade das crianças sírias deixou de ir à escola e, no geral da população do que resta da antiga Síria, 65% das famílias não tem acesso a necessidades básicas e 80% vive abaixo do limiar da pobreza (em Portugal, esta percentagem é de 20%). Pelos países vizinhos (Líbano, Jordânia, Turquia ou Iraque), às portas da Europa ou arriscando a vida na travessia do Mediterrâneo vagueiam (é o termo) 2,5 milhões de crianças e adolescentes sírios, na maioria órfãos entregues a si mesmos. Perante um tal cenário, a UNICEF estima que, só para 2021, sejam precisos 1,1 mil milhões € para acorrer a necessidades psicossociais como alimentação, vacinação e educação. Com uma década de existência, a guerra na Síria já totaliza duração semelhante às I e II Guerras Mundiais somadas (quatro e seis anos). Sim, ainda “só” matou, ao todo, meio milhão de seres humanas, a maioria dos quais civis; mas já produziu doze milhões de deslocados internos e de refugiados migrantes, a maior vaga do género desde 1945.
O leitor perguntará: de quem é a culpa? Dez anos e tão terríveis números depois, a responsabilidade já se derramou, inevitavelmente, por (quase) todos. Tudo começou com o levantamento (armado) das oposições “reformistas” contra a tirania de Bashar al-Assad, tornando a Síria mais um dos palcos da então esperançosa “Primavera Árabe”. Mas Assad resistiu com violência contra o que logo classificou como “terrorismo armado que desestabiliza o país”. De 2011 até hoje, o tempo encarregou-se de estilhaçar a Síria, tornando-a terreno fértil para ali se fixar, e para a partir dali se “metastizar”, o autoproclamado Estado Islâmico. Os ocidentais (sobretudo os EUA), na companhia da Turquia, da Arábia ou de Israel (estranha junção!), dizem combater os extremistas, enquanto procuram favorecer a oposição moderada a Assad. Já ao lado deste estão a Rússia, o Irão, os xiitas do Iraque e o Hezbollah (uma bela mistura!), pretextando auxílio no combate contra o Estado Islâmico… enquanto ajudam também o regime de Damasco a eliminar opositores internos. Desde o princípio, ao longo de dez anos e não se sabe até quando, a histórica Síria, pátria de tantas civilizações antigas, agoniza, habitada por uma população das mais sofredoras do mundo atual.
Há dias, na audiência de balanço da sua visita ao Iraque, o Papa Francisco lembrou que “a guerra é sempre o monstro que, na medida em que os tempos mudam, se transforma e continua a devorar a humanidade” E acrescentou: “Mas a resposta à guerra não é outra guerra; a resposta às armas não são outras armas”. Francisco referia-se ao Iraque; é trágico, contudo, que as suas palavras possam ser aplicadas a tantos e tantos outros sítios onde a dramática rotina da guerra segue incontrolável.