O antigo comissário europeu apela a um escrutínio do Banco Central Europeu por autoridades democraticamente eleitas quanto às decisões tomadas em Frankfurt em relação à banca portuguesa. António Vitorino recusa condenar á partida a instituição liderada pro Mário Draghi mas deixa claras as suas reservas em relação à forma como os processos foram conduzidos pelo BCE.
“Existem dúvidas fundadas de que todas as decisões que foram induzidas pelo Banco Central Europeu tenham respeitado escrupulosamente um princípio de independência e de isenção em relação às partes. Não vou condenar o BCE. Mas se há fundadas razões para colocar dúvidas, é do interesse do estatuto de independência do BCE que elas sejam desfeitas. Para as desfazer, é preciso tornar transparente os métodos e que os critérios de decisão que sejam escrutinados por uma autoridade democrática”, afirma António Vitorino no programa “Fora da Caixa” da Renascença.
Mais, o caminho para aferir o que realmente foi decidido em Frankfurt pode chegar em último recurso ao Tribunal de Justiça da União Europeia.
"Se alguém se lembrar de impugnar uma decisão do BCE junto do Tribunal de Justiça da União Europeia, tenho a certeza absoluta que os juízes do Luxemburgo vão exigir que o Banco Central europeu ponha todos os documentos do processo”, acrescenta Vitorino, seguro de que irá haver controvérsia jurídica no caso Banif, em função da relevância dos interesses em causa e "havendo dúvidas se a conduta das entidades se pautou por um estrito critério de legalidade”.
Opacidade do BCE
O andamento dos trabalhos da Comissão Parlamentar de Inquérito ao caso Banif sugere que o conhecimento aprofundado do processo de decisão do BCE e da Comissão Europeia no processo é essencial para apurar responsabilidades. António Vitorino, profundo conhecedor da máquina comunitária, acredita que ambas as instituições vão responder de forma limitada e insatisfatória aos deputados da comissão de inquérito.
Outra questão é uma suposta recusa de divulgação de documentação, em especial por parte do Banco Central Europeu.
“Há aí uma interpretação perversa da independência [das instituições]. Percebo que não se divulguem documentos que divulguem segredos de negócios que podem ser depois aproveitados para fins comerciais. A própria Comissão Europeia, quando toma uma decisão de política de concorrência, também elimina os números dos documentos que torna públicos, mas não elimina a fundamentação. Explica quais foram os critérios, compara os vários casos para fundamentar a decisão que tomou”, exemplifica o jurista e antigo ministro do PS.
“Metade do problema não está do lado de cá"
Pedro Santana Lopes observa que todos estes processos jogam-se num contexto de grande complexidade no plano europeu.
"Não estou a dizer que as autoridades europeias sejam más. Isto é um terreno muito complexo, difícil, movediço”, começa por comentar o antigo primeiro-ministro. Santana Lopes está convencido que “pelo menos 50% do problema não está do lado de cá”.
O antigo chefe de Governo lembra que Portugal já tem a experiência de grandes dificuldades na supervisão interna, ainda sem União bancária, dando exemplos como os casos BCP, BPP e BPN.
“Vamos agora caldear a supervisão interna com a supervisão de Frankfurt, saber quem tem poder para quê. Não deixa de ser sintomático que o senhor Draghi tenha ido ao Conselho de Estado e o Governador do Banco de Portugal tenha estado lá presente para responder a perguntas e não para fazer a intervenção”, anota Santana Lopes.
O antigo governante admite que os políticos actuais podem vir a ser "de algum modo responsabilizados” pela forma como geriram estas matérias.
“Poderá parecer alguma inconsciência por deixarmos estas matérias numa espécie de limbo, um terreno a meio caminho entre os estados e a União Europeia. Estamos sempre a meio caminho. Na prática pode dizer-se que ninguém tem culpa e todos têm culpa. É uma situação ‘tramada' para poder ser resolvida. Mas tem que ser”, afirma Santana Lopes.
Vitorino ataca a troika
O antigo comissário europeu critica ainda que no quadro do programa de assistência financeira a Portugal, as instituições europeias não tenham detectado os problemas na banca portuguesa.
"No caso português o que é chocante - e merece ser esclarecido - é que estando o BCE e a Comissão Europeia - inclusive a DG Concorrência - na Troika que fez vistorias exaustivas a todos os bancos portugueses que receberem ou não ajudas públicas, incluindo o BES, é espantoso como escrutinadores tão escrupulosos não conseguiram ver os ‘elefantes' que estavam na sala. Isso vão ter que explicar”, denuncia o antigo comissário europeu.
Santana Lopes insiste que metade da culpa do descarrilamento na banca portuguesa não pode ser assacada apenas a Portugal. “Foi a própria Troika que disse sempre que resolver a questão no sistema financeiro era essencial para resolver os problemas estruturais da economia portuguesa”.
António Vitorino reconhece que nem sempre há convergência entre as duas cadeias de comando europeias para o sector financeiro. Uma delas respeita ao sistema de supervisão e resolução sediado em Frankfurt no BCE. A outra cadeia de comando lida com a política de concorrência aplicada ao sector bancário, que depende da Direcção Geral de Concorrência da Comissão Europeia em Bruxelas.
E Durão Barroso podia ter feito mais?
O governador do Banco de Portugal terá tentado sensibilizar o então presidente da Comissão Europeia Durão Barroso para os riscos das decisões que estavam a ser tomadas por Bruxelas e Frankfurt.
Pedro Santana Lopes reconhece o dever de isenção do Presidente da Comissão e sublinha desconhecer as acções empreendidas por Barroso durante o processo.
"Não quebrava a isenção atender ao caso português, que era muito especial no sistema financeiro. Espanha tratou disso a tempo, nós não”, assinala Santana Lopes. Já António Vitorino diz que há um problema na Comissão Europeia a montante da posição de Durão Barroso.
“Há uma certa leitura muito ortodoxa das condições de aplicação da política de concorrência, que leva a pensar que tudo se resolve com uma bitola única que pouco tem em atenção os sistemas nacionais. O Banif tinha um poder muito importante nos Açores e Madeira. Será que a Comissão Europeia conseguiu chegar a perceber isso?”
Mais uma pergunta para tentar responder na comissão de inquérito ao caso Banif.