O Alto Representante da União Europeia para a Política Externa foi ao Parlamento Europeu dizer que não basta condenar o Hamas e pedir uma resposta de Israel que respeite o direito internacional. Numa intervenção que foi mais longe na análise da situação face ao discurso da presidente da Comissão Europeia, Josep Borrell defendeu que a União tem que ser coerente e politicamente proactiva neste processo. Os grupos parlamentares dividiram-se nas críticas a Von Der Leyen e ao próprio Borrell ao mesmo tempo que pediam uma só voz na posição europeia.
Acusada de apenas ter valorizado o lado israelita, na esteira da sua deslocação a Telavive, Ursula Von Der Leyen ouviu críticas da esquerda do Parlamento Europeu esta quarta-feira em Estrasburgo. O debate sobre a guerra entre Israel e o Hamas acabou por revelar a fratura que, em ano pré-eleitoral, se vai cavando na Europa política sobre o Médio Oriente.
Antes da presidente da Comissão Europeia - de família política de centro-direita - tomar a palavra, coube a Josep Borrell, Alto Representante da Política Externa, avançar com uma intervenção que agradou às bancadas da esquerda a cujo quadrante pertence. Tentando quebrar a “intensa emoção com sentimentos em vermelho vivo”, o socialista vice-presidente da Comissão Europeia propôs-se como “voz da razão” para ir além das emissões e das palavras que se repetem, “mas que não nos farão avançar na reflexão necessária que possa guiar a acção”.
Borrell começou por tentar equilibrar os pratos da balança das reações aos acontecimentos. “Condenamos estes terríveis ataques terroristas, mas acredito também que temos de condenar as mortes de civis que ocorrem em Gaza e que chegam agora a 3 mil pessoas. Porque condenar uma tragédia não deve impedir-nos de condenar outra”, afirmou Borrell.
Pouco depois, Ursula Von Der Leyen reafirmaria que “não há contradição ao permanecermos solidários com Israel e agirmos em resposta às necessidades humanitárias do povo palestiniano”, mas foi muito clara sobre o apoio a Israel. “ Só se reconhecermos a dor de Israel e o seu direito de se defender é que teremos credibilidade para dizer que Israel deve reagir como uma democracia, em conformidade com o direito humanitário internacional”, afirmou a presidente da Comissão perante os eurodeputados, para logo de seguida defender a revisão “urgente e cuidadosa” da assistência financeira à Palestina.
“O financiamento da UE nunca foi destinado ao Hamas ou a qualquer entidade terrorista. E isso nunca acontecerá. O que o Hamas fez, não tem nada a ver com as aspirações legítimas do povo palestiniano”, afirmou Von der Leyen. Nem a anunciada multiplicação por três da ajuda europeia aos palestinianos pareceu comover a esquerda em Estrasburgo.
Os 4 princípios de Borrell
O Alto Representante da União Europeia para a Política Externa defendeu que a União Europeia deve orientar a sua resposta pelos “princípio éticos” da firmeza, humanidade, coerência e da atitude política proactiva face ao conflito.
“A firmeza começa com a clara condenação do Hamas, que não pode ser identificado com o povo da Palestina. Para nós, o Hamas é uma organização terrorista e demonstrou-o bem com as suas ações nos últimos dias. O Hamas tem boicotado qualquer tentativa de fazer a paz. Opôs-se às resoluções das Nações Unidas e da Liga Árabe. O Hamas quer fazer desaparecer Israel. Não quer paz, quer destruição”, começou por explicar no hemiciclo de Estrasburgo. Borrell diz que as acções do Hamas tornam impossível que os palestinianos “alcancem também uma paz justa” e a “firmeza” europeia passa também por pedir a libertação dos reféns.
O princípio da “humanidade” implica o cumprimento de regras também em tempo de guerra, considerando que o ataque a um hospital em Gaza - “sem ainda saber a quem atribuir a responsabilidade” - representa uma face horrível da guerra. “Cortar a água e o abastecimento básico a uma população não é compatível com o direito da guerra. Neste momento já não há água em Gaza. Já são mais de três mil mortos e um quarto delas são crianças”, sustentou o chefe da diplomacia europeia no Parlamento Europeu.
No plano da “coerência política”, o vice-presidente da Comissão Europeia disse ser necessário garantir que a ação individual dos estados-membros seja compatível com a estratégia comum da União Europeia. “ A questão da ajuda à Autoridade Palestiniana, às vítimas de Gaza e a decisão da Presidente da Comissão de triplicar a nossa ajuda humanitária são um bom exemplo desta coerência política”, disse Borrell.
O eixo mais premente da estratégia enunciada por Borrell é o que remete para um maior investimento na “energia política” no sentido de uma “atitude proactiva” para resolver este conflito. A politica oficial europeia defende a solução de dois estados , israelita e palestiniano, a coexistir pacificamente. Borrell defende que, se essa é a solução, a Europa deve mobilizar as suas energias políticas nesse sentido. O Alto Representante para a Política Externa aposta em “recalibrar e aumentar” os esforços diplomáticos das Nações Unidas para o cumprimento das diversas resoluções sobre o conflito.
“Hoje no Conselho de Segurança continuaremos a debater uma resolução apresentada ontem pelo Brasil e cuja votação foi adiada para hoje. O que votarmos no Conselho de Segurança e a forma como comunicamos a nossa posição política neste conflito determinarão o papel da Europa no mundo durante muitos anos”, alertou Borrell, para quem os esforços de normalização de relações entre Israel e a Arábia Saudita não basta para conseguir a paz.
O chefe da diplomacia europeia acredita que o Hamas quis "possivelmente provocar uma reacção israelita que tornaria impossível essa normalização das relações”, porque “nem tudo é loucura” na ação do Hamas e pode ser consequência de “uma estratégia para impedir que se possa avançar para a paz”.
Os grandes partidos entram em cena
Antecipando as críticas do centro-direita pela ausência no terreno, Borrell lembrou que esteve em Gaza em 2008 e já presenciou quatro bombardeamentos desde então aquele território. “ Se não paramos o ciclo de violência, ele vai repetir-se dentro de uns anos”, apelou o socialista vice-presidente da Comissão Europeia. Mas o Partido Popular Europeu não deixou Borrell sem resposta, com o alemão Manfred Weber a elogiar Von Der Leyen e a deixar bicadas no trabalho de Borrell.
“ Tenho de ser sincero, fiquei um pouco surpreendido com o facto de o Conselho Europeu ter demorado dez dias para realizar uma reunião online. Caro Alto Representante, respeito-o muito pessoalmente , mas num momento em que a nossa vizinhança está em chamas e sabemos da importância geopolítica da região, Blinken [Secretário de Estado norte-americano] ia para o Egipto e para Israel e o nosso Alto Representante estava a viajar para a China num momento destes. E disseram-me que, nos últimos quatro anos, o senhor nunca foi a Israel para conversações e tentar estabelecer um processo de paz de uma maneira sólida”, criticou Manfred Weber, dirigindo-se ao Alto Representante da União Europeia para a Política Externa.
O líder da bancada do Partido Popular Europeu considera que o Parlamento Europeu deve defender 7 pontos. “ Estamos ao lado de Israel. Em segundo lugar, estamos a lutar contra o Hamas, contra o terrorismo, e não contra o povo palestiniano. Terceiro, estamos prontos para apoiar com ajuda humanitária e até com dinheiro adicional. Quarto, novo dinheiro europeu não deve acabar nos bolsos do Hamas ou de qualquer outro grupo terrorista. Quinto, quem apoia o terror do Hamas e do Hezbollah é inimigo da Europa. Temos de repensar também a nossa política em relação ao Irão. Sexto, é inacreditável o que aconteceu nas redes sociais nos últimos dias, com propaganda do Hamas glorificando o terror sem limites e o assassino de Bruxelas a explicar online porque estava a matar pessoas inocentes. Zuckerberg e Musk devem finalmente deixar de ser o megafone das mensagens de ódio. E sétimo, devemos activar agora os nossos mecanismos de rastreio mais rigorosos para garantir que nenhum terrorista entre na Europa através de rotas de migrantes”, resumiu em pleno hemiciclo de Estrasburgo.
Já a líder dos socialistas no Parlamento Europeu, a espanhola Iratxe Garcia Pérez, não poupou Von Der Leyen no rescaldo da ida a Israel. “ Senhora Von Der Leyen, lembrou-lhe [a Netanyahu] que só haverá uma paz a longo prazo quando os habitantes de Gaza e os palestinianos tiverem esperança ?", questionou cara-a-cara em Estrasburgo. Sobre Israel, considerou que o ultimato para a saída de Gaza é "inaceitável" até mesmo violador do direito humanitário e acusou o ministro israelita da Defesa de chamar "animais humanos" aos habitantes de Gaza.
“ Deveríamos recordar ao Senhor Netanyahu que os crimes não podem ser combatidos com outros crimes", disse a dirigente do PSOE que lembrou ainda a proposta de suspensão de ajuda aos palestinianos proposta pelo Comissário Europeu para a Vizinhança, o húngaro Olivér Várhelyi para avisar que a UE " não pode continuar a cometer erros". Pelo meio acabou por fazer um discurso próximo da posição oficial europeia defendendo que "Israel tem todo o direito de combater o Hamas e de responder ao terrível ataque de 7 de Outubro, mas tem a obrigação de respeitar o direito internacional [evitando] assassinato de civis em Gaza e o corte de água, comida e medicamentos.
No cravo e na ferradura de um debate cheio de fraturas, com eleições em pano de fundo, a socialista espanhola acabou a reconhecer que "não é hora de batalhas ideológicas ou padrões duplos". Já os liberais , pela voz de Stephane Séjourné, pareceram puxar as orelhas às principais famílias politicas de Estrasburgo.
"A geopolítica não é um parque infantil e não deveria ser partidarizada. Trata da proteção das nossas populações, dos nossos valores. E se quisermos ser um ator positivo na crise, então precisamos estar presentes á altura desse desafio. Os comentários aleatórios feitos nas últimas semanas têm que chegar ao fim. Israelitas e palestinianos precisam de uma Europa unida e clara e todos os europeus numa posição clara", afirmou no plenário.
Para os Verdes, a "luta legítima" de Israel contra o Hamas está a transformar-se na "punição coletiva" de 2 milhões de habitantes de Gaza, "dos quais metade são crianças presas sob um cerco ilegal, forçadas a uma deslocação impossível ou são mortas em ataques". Philip Lambert acusou o Hamas de "actos bárbaros, como matar civis deliberadamente, fazer reféns crianças, mulheres e homens", associando o movimento a "crimes contra a humanidade, em linha com o seu objectivo principal: a destruição de Israel".
Líbano e Internet
O debate fica ainda marcado pelo alerta do Ministro dos Negócios Estrangeiros de Espanha, em representação da Presidência rotativa do Conselho da União Europeia, em relação à estabilidade não apenas na Cisjordânia, mas também no “fragilizado” Líbano onde a Força de Paz das Nações Unidas é liderada por um general espanhol.
“A Europa deve cerrar fileiras pelo Líbano e fazê-lo em torno dessa agenda de paz e estabilidade, com uma verdadeira visão de Estado, base necessária para que o país possa finalmente abordar os desafios que enfrenta. Não permitamos que ninguém explore esta tragédia para os seus próprios fins”, declarou Albares Bueno, o terceiro militante do PSOE a intervir na sessão plenária de Estrasbugo
O debate serviu ainda para Ursula Von Der Leyen elogiar a Lei dos Serviços Digitais que permitem eliminar conteúdos ilegais em linha e conter a propagação da desinformação. "E agora estamos a usá-la pela primeira vez. Já iniciamos uma investigação em relação ao X, anteriormente conhecido como Twitter. Devem cumprir a obrigação de combater a propagação da propaganda terrorista e do discurso de ódio. Porque na Europa não há lugar nem tolerância para o ódio, seja online ou nas nossas ruas”, afirmou a Presidência da Comissão Europeia que lembrou a sua proposta de acrescentar crimes de ódio na lista de crimes da UE que devem ser sancionados em toda a União. " A nossa proposta ainda está bloqueada por alguns Estados-Membros. Mas não pode esperar mais. Chegou a altura de os Estados-Membros agirem e seguirem em frente”, rematou, devolvendo críticas dirigidas a si durante este processo.