Filipa Galrão escreveu um post no seu Instagram que merece reflexão. Segundo a locutora da tarde aqui da Renascença, o ódio ou desprezo pelas crianças está a caminhar para o estatuto de "novo normal"; as pessoas acham que podem dizer "não gosto de crianças", acham que isso é aceitável. Será um exagero ou será verdade? Eu acho que está para o lado da verdade. Os indícios são imensos. Basta fazer um teste auditivo: qual é o ruído que incomoda mais as pessoas num prédio ou numa esplanada, o do bebé a chorar ou o cão a ladrar? Façam esse teste e depois digam-me. E o que dizer do que se passou durante a pandemia? Os confinamentos foram impostos contra as crianças e jovens sem se pensar nos efeitos dramáticos que agora são visíveis numa geração inteira.
E o #ficaremcasa é mesmo um exemplo chave porque toca no ponto central que leva a este incómodo em relação às crianças: a obsessão com o controlo. Havia a ideia absurda – ainda mantida na China – de que era possível matar o vírus e alcançar a meta zero covid. Esse absurdo nascia da obsessão pelo controlo, a marca do nosso tempo. A sociedade de hoje acha que controla tudo e que pode alterar tudo, a começar nas doenças ou na própria dor e morte. Somos ainda um tempo marcado pela ideia de que cada pessoa deve planear a sua vida e os seus sonhos e prazeres ao milímetro. As próprias crianças são tratadas por muitos pais nesse sentido: a criança tem deve ter imensas atividades porque é preciso treiná-las para atingir as metas x e y.
Ora, o que faz uma criança na nossa vida? Desorganiza tudo, baralha tudo, cria caos onde antes só havia controle e planificação. Ou seja, esse controle absoluto só é possível numa vida solitária de eterno adolescente - uma marca de muitos homens do passado que se tornou hoje em dia uma marca cultural transversal, é a cultura.
A vida que é cultivada por este ar do tempo é uma vida que implica a total ausência de filhos (e de velhos) para cuidar. O que é suposto fazermos segundo o ar do tempo? Reparem: acordar e fazer meditação, exercício físico ou sexo; sair de casa e passar num café cool onde se pode beber um batido com fruta detox importada do Paraguai; chegar à faculdade ou trabalho e cumprir o sonho, dar o litro por projetos que nos realizavam; sair do trabalho ou faculdade e passar pelo ginásio, por um sítio de tapas, tomar um duche em casa enquanto se tem o segundo orgasmo do dia, sozinho ou acompanhado, tanto faz; marcar mesa e jantar num sítio da moda e instagramável, voltar a casa, ver uma série da Netflix ou HBO, ler um romance russo e voltar a ter sexo ou uma massagem e por fim meditar ou, já agora, já que estamos na Renascença, rezar. O que falta neste dia "perfeito" e controlado e programado ao milímetro? Os filhos, as crianças, que, por inerência, criam uma disrupção neste dia de eterno adolescente.
No post, Galrão diz que se ouve muito nos espaços públicos, piscinas, restaurantes, rua, a seguinte reprimenda: “Controle a sua criança”. Faz sentido. Naquele dia controlado ao milímetro (e por isso desumanizado, higienizado), o egoísmo de quem segue o mantra do controlo não sabe lidar com o imprevisto criado por uma criança; de repente, a piscina do hotel onde era suposto ocorrer um amasso erótico subaquático está cheia de crianças que estragam o “clima”, o "mood"; idem para o restaurante de onde as crianças, que escândalo!, fazem barulho.
Portanto, só discordo num ponto em relação à tese de Filipa Galrão: o desprezo pelas crianças não vem da ideia de que elas, as crianças, têm de ser perfeitas. Não. O problema é que as crianças destroem a ‘perfeição’ instagramável que é suposto existir em todo o lado, na piscina, no restaurante, no café, na cama, na mesa, na carreira, nas viagens, em tudo. Não há nada mais disruptivo para planos e sonhos do que uma criança, ou seja, a criança é a perfeita negação da ‘cultura’ que foi criada nas últimas décadas; uma cultura que nem sequer percebe a existência do conceito de sacrifício e renúncia pelos outros. Esta geração do controlo e da vida instagram está muito interessada em salvar o Planeta, diz-se. Pois, percebo. O Planeta dá muito jeito em quem não tem espaço para os outros. Ama-se o planeta enquanto se odeia as pequenas parcelas da humanidade que nos rodeiam.