Não nos lancem poeira para os olhos
30-10-2023 - 06:00
 • Luís Janeiro

A Comissão nomeada para estudar a localização do novo aeroporto, talvez com a bola cristal usada nas projeções das autoestradas José Sócrates, empola a referência para 67 milhões de passageiros (mais 50% que a Eurocontrol).

Os portugueses estão fartos de comissões nomeadas/partidarizadas que levam a relatórios e conclusões “vazios”. E se desta vez formos diferentes na questão do novo aeroporto na região de Lisboa?

1 - Confiemos em quem é (realmente) independente: Eurocontrol projeção 2050

É inquestionável que a supranacional entidade formada pelos Estados-membros (neste momento 42+2 extra-Europa) é a líder técnica da aviação europeia. Esta entidade estudou a fundo as mudanças originadas pela pandemia, mormente comportamentais, e reviu as suas projeções.

Do seu estudo, no que toca a Portugal, conclui-se que a taxa anual (média) de crescimento do tráfego aéreo está a entrar na fase madura (0,8%), pelo que, no ano 2050, Lisboa terá 40 e poucos milhões de passageiros. Indo mais ao pormenor, a Eurocontrol, no cenário-base, antevê para Espanha também uma taxa anual média de 0,8%, assim pouco mais que os países maduros França-Alemanha-Itália-Reino Unido, em que prevê 0,7%, e Suíça-Holanda (0,6%).

Na Europa, sem contar com a Turquia (é outro campeonato), acima de nós teremos Finlândia-Marrocos (1,6%), Hungria-Albânia (1,4%), Grécia-Croácia-Suécia (1,3%), Irlanda-Noruega (1,2%), Áustria (1%) e Dinamarca (0,9%).

2 – Olhemos, sem rodeios, para o que é realmente essencial e à medida do país: tenhamos a coragem de olhar de frente para Dublin

O seu aeroporto-HUB está a 7 km do centro da cidade (Portela 5km), é base da companhia legacy Air Lingus – cuja frota é 2/3 da frota TAP, as duas privatizadas em 2015. O aeroporto-HUB Dublin tem uma pista operacional e uma pista cruzada (como a Portela pré-Vinci), não tem ligação ferroviária (Portela tem metro). Com esta infraestrutura, no ano anterior à pandemia, Dublin conseguiu ultrapassar Lisboa (33 milhões de passageiros versus 31).

Parece quase igual, mas não é.

A Irlanda só tem cerca de metade da população de Portugal, mas o seu PIB é o dobro (per capita 4:1). A cidade de Dublin é rica e a curva de crescimento-2050 do tráfego aéreo (1,2%) até será superior à de Lisboa (0,8%).

O que este pequeno aeroporto (850ha) conseguiu só com uma pista operacional?

Conseguiu atrair há 30 anos a Intel, que instalou um campus (140ha) de alta tecnologia em Leixlip, a 15km do centro de Dublin, investimento que até agora somou cerca de 15.000M€. Recentemente, em concorrência com o mundo inteiro, Dublin ganhou a instalação de uma nova fábrica Intel de semicondutores de última geração, num investimento de 17.000M€. Na Europa, só a Alemanha (Magdeburgo) terá uma nova fábrica de tal grandeza.

O que está a fazer Dublin para atender o crescimento de tráfego aéreo:

A cidade está a construir uma ligação ferroviária ao aeroporto (semelhante à Linha Vermelha em Lisboa). O aeroporto acrescentou, há pouco mais de um ano, 1 pista paralela/ 1 taxiway, uma torre de controlo mais alta e fez mais algumas melhorias. Esta fase custou 320M€.

Mais para a frente, irá construir um comedido terminal (área por milhão de passageiros será metade da de Alcochete), ou seja, a expansão em relação a uma infraestrutura semelhante à da Portela-2019, custará grosso modo 1.000M€.

Assim, para o século XXI, o aeroporto terá 850ha (já inclui cidade-aeroportuária com 25ha), duas pistas paralelas (90mov/h) e poderá ir até 65-70 milhões de passageiros.

Será que se Dublin tivesse optado por construir um novo aeroporto de raiz estaria melhor? Para respondermos, comparemos com a capital de outro companheiro de intervenção troika: Atenas.

3 – Evolução de Atenas com o novo aeroporto de raiz

Na Europa, a época dos aeroportos de raiz foi dos anos 60 aos anos 80 (Munique). O único caso europeu posterior (exclui-se Istambul por ser outro campeonato) foi Atenas, planeado nos anos 90 e concluído há 20 anos. É um aeroporto de 1.200 ha (duas pistas paralelas) dentro de uma área livre com cerca de 7.000 ha. Está a cerca 25km da cidade, o seu tráfego é um pouco inferior a 30 milhões e o seu entorno está, até hoje, totalmente vazio e o país não captou qualquer investimento sequer parecido com a dimensão do da Intel. De facto, conseguiram vender à Grécia, país endividado, que só com um grande aeroporto de raiz poderia enriquecer. O comparativo de resultados entre Dublin e Atenas dispensa comentários.

4 – A “arte” de atirar poeira para os olhos dos portugueses

O enviesado empolamento das projeções-2050

A Comissão nomeada, talvez com a bola cristal usada nas projeções das autoestradas José Sócrates, empola a referência para 67 milhões de passageiros (mais 50% que a Eurocontrol).

A falácia de um aeroporto se pagar a si próprio

É comum ouvir-se que um aeroporto se paga a si próprio. Nada menos evidente pois custar 1.000M€ ou 10.000M€ para a mesma receita (ou até menor) não é, obviamente, indiferente. Para um país rico como a Irlanda, cujo aeroporto de Dublin movimentou, antes da pandemia, mais passageiros do que Lisboa (33M versus 31M), e para o qual a Eurocontrol prevê um crescimento médio anual superior ao de Lisboa (1,2% versus 0,8%), é suficiente um aeroporto de 850ha, com uma capacidade de 90mov/h.

A Comissão ainda tem como referencial o tempo pré-2007 em que os “bolsos não tinham fundo”

Atenas demonstra como, mesmo tendo um aeroporto a apenas 25kms, o seu movimento é inferior a Lisboa e não atraiu investimento. Ora, para Lisboa, cidade parecida com Atenas, mas até com menor população, a Comissão nomeada impõe como referência um conjunto aeroporto/cidade aeroportuária de 5.000ha, precisando da maior ponte mundial do seu género, somando um custo no intervalo 10.000-12.000M€.


Luís Janeiro é professor na Católica Lisbon School of Business & Economics

Este espaço de opinião é uma colaboração entre a Renascença e a Católica Lisbon School of Business and Economics