Como toda a gente da minha geração, cresci debaixo do fantasma da sida. Esse pavor rodeava-nos. Havia o pavor relativo do sexo sem protecção e, acima de tudo, o pavor absoluto das agulhas dos toxicodependentes que varriam as ruas, que assaltavam casas, que faziam do roubo do auto-rádio um desporto nacional. Quem não se lembra de ver os pais de família com o auto-rádio debaixo do braço aos sábados e domingos? Retirar o auto-rádio do gavetão junto ao cinzeiro e andar com ele na mão era a única forma de garantir que o carro não era assaltado. Neste tempo, as agulhas eram as armas mais eficazes nos assaltos. Apontar uma agulha era mais intimidante do que apontar uma naifa. A segunda metia medo, claro, mas só podia dar um lanho novo; à partida tudo se resolvia com uns pontos no hospital. Ao invés, a primeira podia dar uma infecção mortal. Sem surpresa, “sidoso” era um insulto daquele tempo (final dos anos 80, início dos anos 90). Um rapaz muito magro e olharento podia receber essa alcunha, “franzino” era demasiado erudito e “lingrinhas” demasiado simpático. Mas a verdade é que todos os bairros acabaram por conhecer verdadeiros sidosos, isto é, doentes infectados com o vírus HIV (sida). Eram quase sempre rapazes ou homens. A droga e a sida destruíram uma enorme minoria da minha geração.
Lembro-me como se fosse hoje de um rapaz do meu bairro que morreu com sida. Chamemos-lhe “Nuno”. Frequentava um dos cafés que eu também frequentava. Foi consumido por dentro pela doença. Foi ficando cada vez mais magro. Foi ganhando cada vez mais manchas na pele. Quando ele entrava no café, gerava-se um fundo de silêncio e as pessoas afastavam-se como se ele fosse um leproso de outrora; nestes segundos de silêncio, lembrava-me do vale dos leprosos do “Ben-Hur”. Quando ele se levantava e saía, ninguém ocupava aquela mesa ou cadeira. Não me pretendo inocente. Quando o via descer o passeio, cadavérico, agarrado ao ombro da mãe, eu ia para o outro lado da rua e depois, sim, voltava ao percurso original quando o via dobrar a esquina. A expressão “dead man walking” tinha sentido literal. Não me julguem. O desconhecimento e a mitologia em redor da doença era quase totais e convém recordar a evidência médica: nesta época, a sida era de facto uma sentença de morte.
Sucede que o progresso da medicina transformou esta peste assassina numa doença que se gere como tantas outras. Muitos morreram, muitos pensaram que iam morrer, muitos terão cometido suicídio pensando que não havia futuro. Mas esse futuro existia, existe, existirá. Hoje em dia, um doente de sida é um doente que é gerido pela medicina, é alguém que pode ter uma vida quase normal. E este é o meu ponto: imagine-se que a eutanásia era uma possibilidade real no auge da epidemia de sida; imagina-se que homens e rapazes como o “Nuno” tinham acesso legal à eutanásia. Não é difícil imaginar o suicídio em massas dos infectados, não é difícil imaginar um surto de suicídios através da eutanásia na comunidade gay. No auge daquele desespero (bem apanhado pela série “Anjos na América”), não é difícil imaginar o suicídio de centenas ou milhares de homens que hoje têm uma vida normal. Repare-se que as legislações que autorizam a eutanásia falam em "sofrimento causado por doenças incuráveis”. Ora, na época, a sida era de facto incurável e determinava um imenso sofrimento físico e mental, como se pode ver num dos filmes marcantes daquele tempo – “Filadélfia”. A sida era a peste negra do ocidente contemporâneo. O acesso à eutanásia do infectado com HIV encaixava portanto no critério legal hoje usado na Bélgica e Holanda. Mas, como já vimos, o incurável de hoje é o curável de amanhã. Uma pessoa que se mata hoje devido a uma "doença incurável" não sabe aquilo que o futuro lhe reserva.