O coordenador nacional da Pastoral da Saúde, padre José Manuel Pereira de Almeida, considera que "é muito provável" que o Presidente da República volte a vetar a lei da eutanásia.
O sacerdote e também médico afirma, em entrevista à Renascença e à Agência Ecclesia, que os deputados não responderam às questões que o Tribunal Constitucional tinha colocado.
José Manuel Almeida admite haver o risco do Serviço Nacional de Saúde (SNS) vir a transformar-se num serviço para pobres. "Parece que, afinal, os que podem pagar têm uma medicina melhor”, aponta.
O coordenador da Pastoral da Saúde defende que “é bom não termos uma medicina a dois ritmos” e chega a lembrar um clássico "slogan anarca": “Os ricos com médicos privados e os pobres privados de médicos”.
Sobre a crise vivida nas urgências hospitalares, o responsável considera “evidente” que não se pode “culpar os cidadãos que vão às urgências” nem os médicos, defendendo que é preciso “ouvirmo-nos uns aos outros” para se encontrar as melhores soluções.
“Teria que se fazer uma coisa como na Holanda, nos anos 70 e 80, em que se fez o plano Decker”, reforça.
Como está a ser acompanhada, no terreno, pela Pastoral da Saúde esta realidade que nos é descrita nas notícias, com serviços de urgência a encerrar a toda a hora?
A Pastoral da Saúde não tem, propriamente, vocação de andar a debicar sobre política de saúde a toda a hora, mas é evidente que, sob o ponto de vista genérico, é uma preocupação, como é para todos os cidadãos, tudo o que diz respeito à saúde das pessoas, sobretudo das que estão mais frágeis.
No recente observatório, publicado na primavera de 2022, é sublinhado que não vale a pena andar a bater nas vítimas, ou seja, a culpar os cidadãos que vão à urgência, porque não deviam ir. Os serviços de saúde é que têm que estar organizados de forma a que as pessoas possam ter os melhores serviços, nos melhores lugares.
Se calhar, recorrem à urgência porque noutro local não têm o atendimento que pretendiam ter...
Exatamente. As esperas são mais que muitas. É sabido que o número de médicos de medicina geral e familiar não cobre, nem de perto nem de longe, o número dos cidadãos portugueses. É uma ponta do icebergue, mas a culpa não está nos cidadãos, seguramente. Está na organização do Serviço Nacional de Saúde.
Nem está nos médicos?
Nem está nos médicos. Agora, falo na qualidade do médico não praticante e suponho os médicos que existem permanecem às vezes com grande dedicação nos serviços em que se encontram e com um número no geral abaixo do que é razoável em quase todos os serviços.
E terá esta realidade reflexos na qualidade dos serviços prestados? Tem alguns indicadores nesta matéria? Enquanto médico, tem, certamente, um olhar profissional sobre este assunto...
Sim, eu creio que termos uma ótima medicina, no sentido da técnica. E ótimos profissionais, os melhores entre os melhores. Às vezes, trabalham em circunstâncias que não se adequam a um país da Europa, mas que a gente conhece mais na ideia do hospital de campanha que o Papa Francisco também fala noutras circunstâncias e acerca da Igreja.
O que nos falta em relação ao Serviço Nacional de Saúde, já que diagnósticos há muitos, são as terapêuticas. Parece que ninguém quer discutir as terapêuticas. Estávamos em boas condições para isso, se houvesse vontades convergentes, e creio que as partes sociais ou institucionais, ou seja, quer os académicos quer o setor do Estado, o setor social e o setor privado, a Ordem dos Médicos, a Ordem dos Enfermeiros para só dizer duas importantes, e os sindicatos respetivos, os representantes das associações dos doentes, todos estão preparados para o diálogo. Imaginem uma conferência em que o objetivo seja só ouvirmo-nos uns aos outros...
Não estamos perante posições demasiado extremadas com vista a esse diálogo?
Por isso mesmo, se calhar, o diálogo era uma boa maneira de ouvir. Quer dizer, as posições são extremadas quando, perante uma inexistência de escuta do outro lado, a única maneira que temos de nos fazermos ouvir é gritar. Portanto, creio que estávamos em boas condições. Haja vontade política.
Teria que se fazer uma coisa como na Holanda se fez: o "plano Decker" dos anos 70 e 80, ou seja, juntar profissionais, parlamento, indústria e fazer um pacto, em vez de correções quase cosméticas e conjunturais e temporárias.
De facto, não é só para as férias, não é só para o Algarve, não é só para as urgências, nem só para a gravidez, para a maternidade. É para muitos outros sectores, é tudo ao mesmo tempo. Tínhamos que parar um bocadinho e pensar, pensar juntos. Volto a dizer: precisamos de ouvirmo-nos uns aos outros e perceber o que é que está em causa.
Creio que nós não somos menos inteligentes do que outros povos que conseguiram, em tempo adequado, salvar o que era saudável. Ou seja, nesta perspetiva do social, no sentido de que nós temos uma medicina particularmente atenta a todos e não aos que podem pagar. Quando eu digo "medicina", estou a dizer mal: devo dizer "cuidados de saúde". Parece que, afinal, os que podem pagar têm uma medicina melhor. Era uma coisa que não acontecia quando eu estava nos hospitais, porque o sector privado era pequeníssimo.
Há esse risco de o Serviço Nacional de Saúde virar um serviço apenas para pobres?
Creio que é bom não termos uma medicina a dois ritmos. Lembro-me de, nos anos 80, ver escrito na Avenida de Berna, ali ao pé da Igreja de Fátima [em Lisboa], algo que se dizia que tinha sido escrito pelos "anarcas". Era, mais ou menos, isto: "Os ricos com médicos privados e os pobres privados de médicos". E isso continua a existir como risco. Acho que sim, acho que sim...
Vejamos um caso concreto, este que aconteceu no Hospital das Caldas da Rainha: a morte de um bebé, quando a urgência de obstetrícia se encontrava encerrada. É um caso em que se percebe ou suspeita que, de facto, os pobres podem estar privados de médico e é fundamental para defender a integridade do SNS sabermos rapidamente se há relação entre o encerramento desta urgência e a morte do bebé?
Claro que sim. Claro que sim. Os serviços competentes apressaram-se a dizer que não havia relação. Quando há uma negação tão rápida, interrogamo-nos. De resto, o texto do relatório de Primavera do Observatório de Saúde deste ano 2022 é comentado, quer pelo professor Henrique Barros, meu estimado colega do Porto, quer pelo professor da Universidade Évora Manuel Lopes, e ambos sublinharam algumas interrogações. Ou seja, é um relatório cheio de perguntas.
Temos que assumir que não temos respostas, sobretudo respostas feitas, sobretudo respostas de ontem para as questões de hoje e para as de amanhã. E essa pergunta parece-me muito oportuna e é importante que não fique agora no esquecimento porque já não é notícia. Vocês sabem disso melhor do que eu: as notícias têm um tempo e passam. Mas a morte da criança vai marcar aquela mãe e a família.
Até que ponto a eventual aprovação da lei da eutanásia terá implicações, efeitos no Serviço Nacional de Saúde?
Não tenho a certeza da resposta que lhe vou dar, mas vou dar uma resposta. Pode acontecer, não sendo nenhum de nós bruxos, mas pode acontecer que, se for aprovada uma coisa deste tipo - uma liberalização -, pode acontecer que essa função seja atribuída a um grupo privado ou a dois grupos privados que, esses sim, têm médicos e funcionários para a eutanásia. Ou seja, médicos e outro pessoal especializados em tanatologia. Do mesmo modo, podemos ter o serviço para quem possa pagar essa utilização. Nem que possa haver saldos... Não faço ideia.
Entretanto, a "The Lancet" tem um relatório sobre o valor da morte e o trazer a morte para a vida. É um relatório deste ano que tem recomendações para os governos e decisores políticos a propósito dos países com cuidados de saúde universais, como devem encontrar formas de estabelecer quantos cidadãos estão dispostos a gastar mais dinheiros para prolongar a vida. Prolongar a vida é sempre uma conversa esquisita porque, às vezes, vem associada aos cuidados paliativos. Ora, os cuidados paliativos é para dar vida ao tempo que se tem para viver e não para fazer uma vida artificial...
Está, de alguma forma, a falar de distanásia?
Antigamente, chamava-se assim, no século passado. Os espanhóis ainda gostam muito dessa palavra. Distanásia ou ortotanásia, a eutanásia... Tudo somado, trata-se da administração sensata do último tempo que nós temos para viver sobre a terra: uma administração sensata, quer dos meios utilizados quer, sobretudo, o conforto e o alívio da dor e do sofrimento ao doente.
Ainda assim, estamos a falar de eventual aprovação da lei. Ainda deposita a esperança de que, por exemplo, o Presidente da República volte a vetar o diploma?
É muito provável, é muito possível, muito possível, sim. De resto, para responder às questões que o Tribunal Constitucional tinha aberto, os senhores deputados fizeram pequeníssimas alterações e eu creio que não respondem às questões que o tribunal tinha colocado. De qualquer dos modos, está disponível também o parecer do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, que vai neste sentido. E tem quatro votos, declarações de voto, por acaso, muito interessantes: uns concordando e outros discordando. Vale a pena ler essas essas documentações.
No início deste mês de junho, o Papa Francisco criticou o desinvestimento nos serviços nacionais de saúde, considerando que esses cortes podem ser um ultraje à humanidade ou são mesmo um ultraje à humanidade...
Sobretudo porque tinha sido um ganho, tinha sido um caminho feito...
No caso português, está em causa esse investimento ou desinvestimento ou está em causa a produtividade?
Está em causa o planeamento estratégico. O senhor ministro das Finanças explicou que não era questão de dinheiro, o que é muito confortável, para nós. Não sei se para a senhora ministra [da Saúde,], mas para nós, cidadãos, é com certeza confortável. Portanto, o que o professor Manuel Lopes sublinha numa entrevista recente ao "Expresso" é que passámos a viver muitos anos, a ter uma população com doenças crónicas associadas e múltiplas dependências funcionais e, portanto, a população com envelhecimento crescente, que é um ganho, teria de ser acompanhada de uma intervenção, um gasto na prevenção e a promoção da saúde, vista não como um gasto, mas como um investimento. É isso que não tem sido feito. Por exemplo, o que é feito da saúde escolar, da educação para a saúde? O que é feito da efetiva saúde pública, construída como nós já tivemos sonhada investimos durante um tempo?
Tudo isto parece um suflé a sair do forno e só nos restam as urgências e as emergências. Os cuidados de saúde são só os que são prestados em últimas circunstâncias.
Já afloramos a questão, de alguma forma, mas agora pergunto mais diretamente: as dificuldades do SNS potenciam a fuga para os serviços privados e podem criar modelos de cuidado baseados na resposta de privados?
E mesmo para o estrangeiro... Hoje, os hospitais privados são estruturas estimáveis e com um nível científico muito relevante. Estou a falar das dos grandes - e não são aquelas clínicas de vivenda, para não dizer que tinha umas partes em vão de escada em que a hotelaria era boa e tudo o mais era bastante sofrível. Isso tudo já passou, nos anos 50 e 60. Progressivamente, o setor privado é um setor muitíssimo significativo. Os grupos que se mexem, mexem com qualidade. Portanto, sim: médicos a poder preferir essa circunstância até sob o ponto de vista científico pode ser interessante.
Um fator que pode mostrar também que se agrava a doença do SNS é o número de mortes que aconteceu em 2021 e agora em 2022...
Sobretudo neste mês...
Até ao dia 14 de junho, morreram mais 128 pessoas do que até 14 de junho do ano passado, quando a pandemia estava bem mais grave...
Mas o ano passado não houve muitas mortes, não obstante a pandemia. Mas houve muito mais morbilidade que estamos agora a recolher os maus frutos...
Foram deixados muito para trás...
As consultas não foram feitas, os rastreios foram adiados... Nós temos pouquíssimos rastreios bem feitos. É uma lástima, sob o ponto de vista da organização da saúde de um país, não dar atenção ao que precisa de ter atenção.
Estamos num lento processo de saída da pandemia e, ao longo deste tempo, fomos sentindo os alertas do Papa Francisco para nos mantermos unidos e para que ninguém ficasse para trás. Ainda há muito caminho a percorrer? Saímos, de facto, mais solidários deste processo de pandemia que ainda não acabou?
O que o Papa diz é que não saímos iguais: ou saímos piores ou melhores. Melhores seria esse sentido de maior solidariedade. Eu creio que há muitos bons exemplos de grande solidariedade, mas há um crescendo de individualismo que é preocupante. E tínhamos que intervir cedo. Estes dois anos quase sem sociabilidade nas escolas, e estou a falar das escolinhas, por exemplo, os pimpolhos pequeninos. Ou, então, os primeiros anos de universidade ou a não existência de experiência de campus e os desafios que isso comporta, sem qualificações de outro tipo, creio que fazem falta as pessoas para perceberem o nós e não a partir do eu.
Este longo período teve efeitos particularmente a nível da saúde mental. Falamos que o SNS pode estar com muitos diagnósticos de doença, sobretudo neste da saúde mental?
Seguramente. E na saúde mental já tínhamos fragilidades anteriores. Nós temos muitos doentes mentais na rua, no sentido verdadeiro. Quando agora se fala dos sem-abrigo e andamos pelas grandes cidades, os doentes mentais não estão agora nos grandes hospitais, que, entretanto, foram encerrados. Resta-nos, no que diz respeito à saúde mental em Portugal, os hospitais da Ordem de São João de Deus e das Irmãs Hospitaleiras. Os outros são clínicas pequenas em grandes hospitais, como, por exemplo, Santa Maria, São João...
“A missão da Igreja Católica visa cuidar do homem todo e de todos os homens”. É uma frase do Papa Paulo VI, em Fátima, no ano de 1967. Para o responsável pela Pastoral da Saúde, esta é uma frase atual?
É muitíssimo atual. Se calhar, hoje não diríamos “o homem”, mas quando o Papa Francisco a atualiza no sentido de “desenvolvimento humano integral” é a mesmíssima ideia. Atualiza já na sequência da utilização deste termo pelo Papa Bento XVI. Aqui falamos de continuidade e descontinuidade, mas há, de facto, uma continuidade e uma atualidade nessa ideia. E, já agora, outra que o Papa Paulo VI utiliza da “Populorum Progressio”: o mundo está doente. E o "doente", diz ele, está nos desequilíbrios ecológicos, na delapidação dos recursos naturais ou noutras coisas deste tipo, na apropriação por parte de alguns da riqueza de todos. Mas isso são sintomas. A doença é a falta de fruto.
Creio que o texto "Fratelli Tutti" como o texto "Laudato Si" são dois belos cenários para projetarmos os nossos pensamentos sobre a realidade atual e sobre a realidade da saúde em Portugal, nomeadamente.
Uma outra pergunta sobre a Pastoral da Saúde, sobre a assistência religiosa espiritual que acontece em ambiente hospitalar: é necessário envolver mais leigos, formar mais leigos, envolvê-los neste papel?
É, com certeza. Mas na coordenação da Pastoral da Saúde nos hospitais, dos capelães, não tenho direta competência.
Mas é uma afirmação do próprio padre Fernando Sampaio, que coordena o setor...
Absolutamente! E ele tem sublinhado - e outros têm sublinhado - a necessidade da articulação com as paróquias. E isso compete, de facto, à Pastoral da Saúde. A nossa proposta de uma vida plena, uma vida em cheio - a vida em abundância para a qual Jesus nos convoca - é a missão de todos os batizados, nas comunidades em que vivem.
A Comissão Nacional da Pastoral da Saúde corresponde a esta atenção específica e é muito importante essa articulação entre o lugar. Os hospitais são lugares de vida e lugares de morte, claro, como todos, são lugares de fronteira, mas essa fronteira tem que ser ultrapassada e é visitada pelas pessoas que, na relação com os doentes e nas comunidades locais, têm essa missão de anunciar Jesus presente nestas periferias ou nestas situações de pobreza, porque a doença é sempre uma situação de pobreza.