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Cinco horas após o primeiro ataque terrorista a fazer vítimas desde o 11 de Setembro, Nova Iorque era uma cidade em festa.
Quem tivesse chegado à cidade e desconhecesse o ataque ocorrido durante a tarde, não suspeitaria de nada de anormal. O que testemunharia era um desfile de Halloween (Noite das Bruxas) idêntico ao dos outros anos, talvez com a diferença de um aparato policial ainda maior do que o habitual.
Indiferença pelos oito mortos no atentado da tarde? Talvez sim ou talvez não. O Halloween é uma tradição com raízes muito fortes na América, uma quadra em que cada um dá largas à imaginação com disfarces bem criativos que desafiam o fantasma da morte. E a noite de Halloween, de 31 de Outubro para 1 de Novembro é a véspera do Dia dos Mortos. Daí que a parada da Noite das Bruxas seja dominada por uma iconografia ligada à morte.
Ora, ver muitos milhares de pessoas na rua a desafiar o fantasma da morte justamente no dia em que a morte saiu à rua sob a forma de terrorismo acaba por ser uma afirmação de força e de coragem porventura mais poderosa do que ficar em casa a chorar os mortos.
E foi isso que se viu esta terça-feira à noite em Manhattan. Um desfile ruidoso, alegre, imaginativo, cheio de energia, que saiu de West Village, não muito longe do local do atentado terrorista, e percorreu um troço da Sexta Avenida e depois da Quinta com carros alegóricos em estilo carnavalesco, transportando cada um deles a sua tribo musical e reflectindo uma estética própria.
Houve quem defendesse o cancelamento da parada de Halloween e a observação do luto. Mas acabou por prevalecer o argumento de que isso seria fazer a vontade ao terrorismo, alterar os hábitos de vida, deixar-se intimidar. E se há algo de que os nova-iorquinos não gostam é de abdicar do seu estilo de vida frenético, ruidoso, extrovertido, social, na rua, sempre na rua.
Logo nas primeiras declarações públicas feitas cerca de 90 minutos após o ataque, quer o presidente da Câmara da cidade, Bill de Blasio, quer o governador do estado, Andrew Cuomo, sublinharam a resistência de Nova Iorque ao terrorismo após o 11 de Setembro de 2001. E proclamaram a sua certeza de que os cidadãos continuarão a demonstrar a sua coragem e o seu apego à democracia e à liberdade mantendo o seu estilo de vida de sempre.
Por isso, Cuomo e Blasio decidiram participar também no desfile do Halloween, disfarçados de si mesmos: governador e mayor de Nova Iorque, respectivamente.
Uzbeque fiel ao ISIS
Quem não tentou disfarçar os seus intentos foi o próprio terrorista. Sayfullo Saipov, 29 anos, proveniente do Uzbequistão, veio para os Estados Unidos em 2010, possuía autorização de residência permanente e casou no Ohio em 2013.
Alugou uma carrinha de caixa aberta (“pickup truck”) em Nova Jérsia algumas horas antes de rumar a Manhattan e entrar numa ciclovia junto ao rio Hudson, na baixa da cidade.
Atropelou indiscriminadamente peões e ciclistas, deixando oito vítimas mortais pelo caminho. Do local onde cometeu o crime, vê-se com nitidez, ali bem perto, a Torre da Liberdade, erguida no local onde estavam as Torres Gémeas derrubadas no 11 de Setembro.
Entre a tragédia desse longínquo ano de 2001, com os seus três mil mortos, e o atentado desta terça-feira, com os seus oito mortos, vai uma distância temporal e de escala que espelha bem o progresso que entretanto as democracias fizeram no combate ao terrorismo “jihadista”.
As medidas de segurança adoptadas tornaram hoje virtualmente impossível o uso de aviões comerciais ou outros meios de grande efeito letal para cometer actos terroristas.
Daí que o ISIS (Estado Islâmico) tenha incitado recentemente os seus simpatizantes a recorrer a quaisquer meios acessíveis para matar cidadãos inocentes: automóveis, camiões, facas, enfim qualquer meio que não suscite suspeita das autoridades policiais. Foi este o conselho seguido por Saipov, que inaugurou assim na América o tipo de atentado terrorista que tem sido mais frequente na Europa nos últimos tempos.
Num país onde toda a gente possui armas, Saipov nem uma pistola a sério arranjou e isso trouxe-lhe um problema adicional – ter sobrevivido ao atentado. Quando a carrinha que conduzia embateu num autocarro escolar e ele a abandonou, fê-lo com duas falsas armas na mão e começou a correr no meio da faixa de rodagem, expondo-se por completo. O objectivo era ser abatido pela polícia e cumprir até ao fim o padrão das missões suicidas jihadistas.
Mas o polícia que disparou sobre ele deixou-o apenas ferido e não morto. Pode ter sido uma casualidade, mas é uma casualidade bastante útil porque um terrorista morto não faz revelações, enquanto um vivo pode ser precioso para os investigadores. Ainda ele estava a ser operado ao ferimento no abdómen causado pela bala e já a polícia desvendava as suas duas moradas mais recentes — Flórida e Nova Jérsia. Um ponto de partida fundamental para apurar ligações familiares, de amizade ou de vizinhança, que permitirão reconstituir o seu percurso nos Estados Unidos e eventuais saídas ao estrangeiro.
Lobo solitário?
As primeiras informações e análises de especialistas apontavam para mais um “lobo solitário” que terá agido por conta própria e se terá radicalizado sozinho. Mas ainda é cedo para tirar tais conclusões. Do que já não restam dúvidas é da sua simpatia pela causa “jihadista”. Quando saiu da carrinha gritou mais do que uma vez “Alla Akbhar” (Deus é grande), o slogan “jihadista” por excelência. E junto do veículo deixou algumas notas manuscritas em que declarava a sua fidelidade ao ISIS.
Mero simpatizante ou militante treinado e com contactos com o grupo terrorista? Eis a dúvida maior que os investigadores agora terão de esclarecer. Para já, há indícios de que possa estar ligado a um grupo uzbeque que foi alvo de uma investigação conjunta do FBI, da polícia nova-iorquina e de um procurador de Brooklyn por ter fornecido suporte material ao ISIS.
A investigação decorreu nos últimos dois anos e acabou com acusações a cinco uzbeques e a um outro homem proveniente do Cazaquistão. Mas um porta-voz do FBI recusou-se a revelar se Saipov já era conhecido da agência ou se estava no radar das unidades policiais anti-terroristas.
Na galáxia “jihadista” internacional, militantes uzbeques, bem como outros oriundos de antigas repúblicas soviéticas, têm desempenhado um papel crescente, segundo os especialistas anti-terrorismo. Além de alguns terem engrossado as fileiras do ISIS na Síria e no Iraque, um grupo uzbeque teve em tempos em preparação um ataque à base militar americana de Ramstein, na Alemanha.
Recorde-se que o islamismo é a religião dominante em várias das antigas repúblicas soviéticas, pelo que os jihadistas as vêem como campo de recrutamento favorável.
Demagogia trumpista
Nos Estados Unidos, o atentado desta terça-feira deu a Donald Trump mais um pretexto para relacionar imigração e terrorismo, uma constante no seu discurso político desde o início da campanha à presidência.
Num “tweet” algumas horas depois do crime, Trump escreveu que tinha dado instruções ao Ministério de Segurança Interna para reforçar o processo de escrutínio dos candidatos a imigrar para a América.
I have just ordered Homeland Security to step up our already Extreme Vetting Program. Being politically correct is fine, but not for this!
— Donald J. Trump (@realDonaldTrump) November 1, 2017
Antes disso, tinha comentado que este tipo de ataques não podem acontecer no país, na linha da promessa eleitoral de “acabar com o terrorismo” se fosse eleito Presidente.
Apesar dessa promessa de combate implacável ao terrorismo e ao crime em geral, nos dez meses que leva na Casa Branca Trump já tem no seu registo o maior massacre com armas de fogo da história da América moderna – em Las Vegas no passado dia 1 de Outubro, onde morreram 59 pessoas – e o maior atentado terrorista na sua cidade natal depois do 11 de Setembro – o desta terça-feira, onde morreram oito pessoas.
Acontecimentos funestos que vêm provar que a demagogia populista não garante a segurança dos cidadãos.
We must not allow ISIS to return, or enter, our country after defeating them in the Middle East and elsewhere. Enough!
— Donald J. Trump (@realDonaldTrump) October 31, 2017