Marta Vitorino é invisual, mas essa característica física não a impede de ter uma vida normal. “Para mim, ser cega é tão natural como ter os cabelos castanhos. Falta esta naturalidade e acho que se devia investir muito em medidas, a longo prazo, para naturalizar a deficiência”, afirma. Aos 26 anos de idade é formada em Ciências da Comunicação. Por estes dias vai integrar a equipa de media da JMJ, e não esconde o entusiasmo.
“Eu estava na dúvida: será que faz sentido eu participar como voluntária? Será que têm coisas para eu fazer?”. Até que pensou “por que não? Eu já me aventurei em tantas coisas! Já fiz voluntariado em Taizé, um sítio onde não se fala português, passei pelo Rock In Rio, em 2014, foi a minha primeira experiência de voluntariado”.
Na JMJ já foi chamada a dar opinião sobre a acessibilidade dos meios, “por exemplo, se o site era acessível, ou se o terço em braille estava em condições. Há uma grande preocupação por parte da Jornada, e isso é muito importante”.
Para quem não vê, os obstáculos são muitos, mas não dramatiza. Natural de Santarém, diz que se sente “livre” em Lisboa, onde usa os transportes públicos no dia a dia. Desde pequena sempre foi incentivada a ser pragmática e a arriscar. “Eu sou crente, acredito que Deus está sempre comigo, mas tive a sorte de ter uma família que me incentivou e de ter amigos, na maioria normovisuais, que não me discriminaram pela minha deficiência”.
Uma JMJ diferente no acolhimento da deficiência
“O Papa pediu-nos criatividade na organização da Jornada Mundial da Juventude, em Lisboa. Uma das grandes novidades é este acompanhamento específico dos grupos que vão trazer peregrinos com deficiência”, conta Inês Didier. Com 25 anos, é uma das responsáveis por esta área na JMJ. Confirma que já têm “cerca de 1500 peregrinos com deficiência inscritos”. Quase todos vêm acompanhados, e ainda pode haver mais inscrições. O importante, diz, “é que saibam que podem participar na Jornada. Não podemos fazer o convite e ser só uma frase feita. Temos de fazer com que a Jornada seja, de facto, para todos”.
O apoio é feito através dos “gestores de peregrinos”, e não é apenas logístico. “Há um acompanhamento quase pastoral: conhecer os grupos quem vêm e montar a Jornada a pensar já na pessoa X ou na pessoa Y”.
O programa foi adaptado, e os locais onde vão decorrer os eventos centrais (Colina do Encontro, no Parque Eduardo VII, e no Campo da Graça, no Parque Tejo) têm áreas reservadas para os peregrinos com deficiência. Para além do acesso facilitado “vão existir intérpretes nas cinco línguas oficiais e em gesto internacional, em língua gestual. E vai haver uma tenda de saúde, um posto médico avançado, casas de banho adaptadas, camas para os peregrinos que não podem dormir no chão, no caso da Vigília com o Papa. Há um cuidado grande”.
E sublinha: “é a primeira vez que isto está a ser feito, adaptar a Jornada a cada pessoa”. A experiência talvez fique como legado para próximos encontros.
Falta de acessibilidades “é um dos principais fatores de exclusão”
Joana Abreu Gorgueira, de 32 anos, trabalha na Associação Salvador. É gestora de projeto na área das acessibilidades, e congratula-se com a atenção que a JMJ Lisboa está a dar a esta temática. “Dou os parabéns à Jornada por se preocuparem desta maneira, mas sozinhos não é possível”, lembra.
“Será que a cidade de Lisboa está realmente preparada para receber todas as pessoas que vão cá chegar com deficiência? Será que eu consigo atravessar uma passadeira? Será que tenho um passeio que tem uma faixa confortável para eu conseguir circular com autonomia? Tudo é um pequeno obstáculo, e ainda estamos longe de poder dizer que temos uma cidade totalmente inclusiva para todos”.
“O apelo é que a preocupação sobre este tema não seja só ao nível da acessibilidade física, mas da acessibilidade universal”, porque isto não é só para as pessoas com deficiência, “também é para as pessoas mais idosas”.
“É importante que exista um investimento maior das autarquias, neste caso da câmara de Lisboa” e “aproveitar o momento” da Jornada para melhorar, porque “a falta de acessibilidades ainda é hoje um dos principais fatores de exclusão social das pessoas com deficiência e, se calhar, temos muitas pessoas que não vêm às Jornadas porque ainda não se aventuram”, afirma, lembrando que um dos maiores desafios é “poder circular com autonomia na cidade, ou porque não há transportes adaptados suficientes, ou porque no Metro, por exemplo, há sempre muitos elevadores avariados.
“Diria que o desafio dos transportes é um grande desafio para a Jornada, e que a resposta não será suficiente para as pessoas com deficiência”.
“Quero ter trabalho pelo meu valor”
O café Joyeux promove a inclusão de jovens portadores de trissomia 21 ou perturbações do espectro do autismo. O conceito, nascido em França, chegou a Portugal em 2021. Esta semana foi inaugurado o terceiro espaço, desta vez em Cascais, que vai empregar e dar formação a 12 jovens com dificuldades intelectuais e de desenvolvimento.
Numa mensagem gravada para este episódio do ‘Somar Ideias’, Filipa Pinto Coelho, da Joyeux Portugal, explica que o projeto quer ajudar a “desbloquear preconceitos”, e que a experiência tem sido muito positiva.
“Tem sido incrível! Nunca tivemos uma reação menos positiva, pelo contrário. É um serviço que funciona, é uma equipa que está motivada, é um modelo super profissional, uma importância no rigor, no detalhe, no servir, que é feito com o coração, por isso as pessoas gostam, sentem isso, sentem a alegria”, conta.
O projeto prova que é possível integrar no mercado de trabalho quem tem dificuldades intelectuais e desenvolvimento, mas ainda há muitas barreiras e preconceitos a este nível, da parte dos empregadores. “Penso que a lei das quotas está a ajudar a fazer esse desbloqueio e a criar vontade de conhecer o modelo. Cada vez mais empresas querem fazer este caminho e têm-nos contactado, e outros parceiros que também fazem estas integrações, e isso é um ótimo sinal”.
“Acreditamos que estamos a conseguir ajudar a desbloquear preconceitos e a fazer com que um dia, de facto, isto a que chamamos ‘diferença’ já não se veja, porque vai fazer genuinamente parte de nós”.
Filipa deixa uma mensagem aos jovens, que têm sido os “maiores aliados” do projeto. “São eles as próximas famílias, os próximos empregadores e profissionais. Está nas mãos deles envolver a comunidade que os cerca, para que o futuro seja, não diria mais inclusivo, mas que exclua menos”.
Joana Abreu Gorgueira não tem dúvidas de que “quanto mais pessoas tivermos com deficiência a trabalhar num café, numa loja, etc , mais o tema vai ganhar importância e vai deixar de ser um tema”. E acredita que os jovens podem ser “agentes de mudança”, já hoje. Mas, “para além das empresas estarem sensibilizadas para este tema da empregabilidade” é importante “estarem mais abertas e inclusivas, também, a adaptarem as suas ofertas de trabalho às pessoas com deficiência. Existe aqui um longo caminho a ser feito ao nível da inclusão, de acessibilidades e de mudança de mentalidades, acima de tudo”.
Marta põe em causa a justiça do sistema de quotas. “A minha ambição, até como pessoa - e acho que muitas pessoas com deficiência concordarão comigo – é que eu quero ser empregada, quero trabalhar numa empresa, porque sou a Marta, tirei ciências da comunicação e porque na ótica daquela empresa eu faço bem o meu trabalho. Porque tenho valor, não porque existe uma quota a ser respeitada”.
O seu sonho é ser locutora, e lembra a sua passagem pela produção da RFM. “Quando me convidaram para estagiar estava a fazer diálise, por isso, foi uma dupla inclusão. Porque convidar uma pessoa para estagiar que é cega, e eu disse logo que a qualquer momento podia ser chamada para transplante…. Cheguei a vir estagiar de manhã, a ir para as aulas à tarde e a fazer diálise das 11h da noite às 6h da manhã, e o meu trabalho nunca foi posto em causa”, conta.
Em 2020 teve de interromper o estágio. “Fui transplantada a dois dias da pandemia entrar completamente em Portugal e tive de ficar em casa em confinamento, pelo transplante, e até ser vacinada contra a Covid. E a RFM, dois anos depois, estava aqui para me abrir as portas, para terminar o meu estágio. Isto é uma abertura de mente que deveria acontecer em todas as empresas”.
Para Inês Didier “é preciso que haja exemplos como o da Marta que lutam, de facto, para ter uma vida normal e estarem dentro da sociedade, como devem estar”.
Que pergunta fariam ao Papa?
O desafio foi lançado, como acontece em todos os episódios do ‘Somar Ideias’. Marta Vitorino diz que “gostava de perguntar como é que ele idealiza a Igreja inclusiva daqui a 50 anos? O lema da Jornada é ‘Maria, pôs-se a caminho’, será que já nos estamos a pôr a caminho também neste tema?”.
Joana diz que “daria um prazo menos longo para o Papa responder”, não tanto a uma pergunta, mas a um desafio: “será que conseguimos ter a maioria das igrejas acessíveis até à próxima JMJ?”.
Inês parte da sua experiência na organização da Jornada, em que está rodeada de “gente católica, padres e irmãs pelos corredores, é o trabalho de sonho”, mas, muitas vezes, ocupa tanto que distrai. Por isso gostava de saber “como é que nos podemos voltar a recentrar?”, perceber “saber se Papa passa por isto também, se em algum momento se esquece de Deus por estar envolvido em logísticas e coisas do mundo, e como é que se volta a focar no essencial”.