Quatro meses depois do início do conflito entre Rússia e Ucrânia, permanece ainda longe o fim das hostilidades. No entender do major-general Agostinho Costa, todos os sinais remetem para o seu prolongamento, com o risco de se transformar em mais um conflito não resolvido, à semelhança do Chipre, da Síria e da Líbia, entre outros.
“Se o Ocidente envia armas para a Ucrânia, mas condiciona o tipo de armamento que envia no seu alcance, na sua potência e na sua efetividade, significa que não procura que a Ucrânia ganhe a guerra. Se assim quisesse, teria de lhe fornecer armamento que permitisse uma efetiva superioridade no campo de batalha. O armamento que tem chegado tem estado dirigido, essencialmente, para neutralizar as vantagens russas”, refere Agostinho Costa em declarações à Renascença, apontando, assim, que “parece haver uma intenção de manter este conflito prolongado”.
Na mesma linha de raciocínio, o especialista militar acrescenta a pressão que está a ser feita sobre a Ucrânia para não atacar território russo.
“É para circunscrever o conflito a este território. Por um lado, é positivo porque não se pretende que haja uma escalada, mas, também não se vê uma intenção de entrar no patamar negocial”, aponta.
O major-general dá ênfase ao atual panorama do mundo globalizado sublinhando que o conflito na Ucrânia é apenas uma peça no xadrez. Afirma que o que está verdadeiramente em causa é a disputa pela hegemonia mundial entre os Estados Unidos da América e a China.
“Numa perspetiva geopolítica, diríamos, sobre os falcões que pairam sobre a Europa, que a ideia é manter os russos ocupados e os europeus entretidos para que os americanos possam canalizar o esforço para enfrentar o seu principal rival estratégico que é a China. Temos assistido ao agudizar dos acontecimentos no Indo-Pacífico. Basta olhar para o posicionamento dos porta-aviões norte-americanos no plano global para se depreenderem as prioridades. Há continuamente um porta-aviões no Mediterrâneo e dois no Indo-Pacífico”, alega.
Segundo vários analistas nesta matéria, não é de descurar uma guerra entre os Estados Unidos e a China, nas próximas décadas. As recentes notícias revelam que têm decorrido frequentemente exercícios militares conjuntos entre a China e a Rússia, tanto no Índico como no Pacífico.
O major-general Agostinho Costa adianta ainda que o principal eixo de ação estratégica com que o Ocidente está a confrontar a Rússia não é militar, mas económico. “Há a expetativa de que as sanções, que são duríssimas, possam surtir efeito e provocar uma mudança de regime russo, cujo objetivo, em última instância, é a substituição de Putin por alguém mais pró-ocidental”, especifica.
Ofensiva no Leste da Ucrânia e a Transnístria
No papel de analista, o major-general recorda que este conflito, na Ucrânia, já começou em 2014, quando foram proclamadas as duas repúblicas separatistas, no Donbass, e reitera que só acabará “no dia em que Joe Biden pegar no telefone para falar com Putin”.
O especialista em operações militares assinala, como objetivo estratégico declarado pela Rússia, o controlo da região do Donbass. Junta também nesta equação, como desígnios não declarados, a anexação da região de Kherson que garante a contiguidade territorial entre a Crimeia, o Donbass e a Rússia, bem como o controlo da conduta que assegura o fornecimento da água do Dniepre à Crimeia.
Também a cidade de Odessa para ligação à região separatista pró-russa da Transnístria, que está inserida dentro da Moldávia e faz fronteira com a Ucrânia, parece ser um dos objetivos desta “Operação Militar Especial”, tendo ainda em vista reconstituir o antigo território da Novorussia, correspondente ao Canato da Crimeia integrado no império russo por Catarina a Grande, em 1783.
“Depois de resolvidos os combates no Donbass, as tropas de Moscovo poderão prosseguir a ação ofensiva e intervir naquela cidade portuária de modo assegurar depois a ligação à Transnístria. É esse o nosso entendimento sobre presença da esquadra russa do Mar Negro, junto a Odessa”, acrescenta.
A Transnístria foi autoproclamada uma república em 1990, na sequência de um confronto armado que levou à intervenção de Moscovo e ao destacamento para o território de uma força de manutenção de paz composta por soldados russos.
“Recentemente houve um conjunto de incidentes, o mais recente com a utilização de um drone que largou uma granada sobre uma base da dita força de manutenção de paz, o que causou algum mal-estar”, nota Agostinho Costa, admitindo incerteza sobre as consequências que estes episódios poderão, eventualmente, vir a ter.
Major-general destaca Macron e Papa Francisco
Na qualidade de vice-presidente do Centro de Estudos do EuroDefense Portugal (ONG), o major-general Agostinho Costa aponta que a União Europeia tem demonstrado incapacidade para afirmar a sua autonomia estratégica e muito menos uma “soberania estratégica”.
A expressão tem sido amplamente utilizada pelo Presidente francês, Emmanuel Macron. “É o único político que usa esse termo com convicção e com vontade, mas, parece-nos que tem pregado no deserto. O Presidente Macron percebe que, a prazo, a Europa pode ser um dos grandes perdedores deste conflito”, adianta.
Para o major-general, neste contexto, só há “duas vozes reveladoras de sabedoria e de bom senso”: a de Emmanuel Macron e a do Papa Francisco. Este “é quem tem apelado à paz e ao entendimento e explica que as guerras não resolvem os problemas. O Papa Francisco é a grande voz da serenidade e da lucidez que falta à Europa”, declara.
Lembra ainda que os militares procuram assegurar as condições que permitam aos políticos encontrar pontes de entendimento. Nesse sentido, diz que quanto mais tarde acontecerem negociações, maior é o risco de a Ucrânia perder o acesso ao Mar Negro ou de o mundo poder assistir a um conflito nuclear.
“Basta haver um incidente, ou um erro de cálculo ou de avaliação. Neste momento, o conflito é total para a Ucrânia por estar em jogo a sua sobrevivência como Estado. Para a Rússia ainda é uma guerra limitada, mas no caso de este país ser confrontado com uma ameaça existencial, então o risco de uma escalada nuclear passará a ser real.”
A terminar, o analista refere três personalidades relevantes no âmbito do pensamento geopolítico.
Defende que é preciso ouvir Henry Kissinger. O antigo chefe da diplomacia dos EUA foi ao Fórum Económico Mundial de Davos, na Suíça, sugerir que a Ucrânia deveria ceder território, como forma de ser alcançado um acordo de paz. A esse propósito, Agostinho Costa comenta: “a idade ajuda a ver com clareza”.
Refere também que é preciso voltar à obra do antigo estadista norte-americano, Zbigniew Brzezinski, de origem polaca, e um dos principais estrategas da política externa dos EUA que, “no seu livro The Grand Chessboard (O Grande Tabuleiro de Xadrez) recomendava que os Estados Unidos nunca deveriam ser tão insensatos ao ponto de permitirem que a China, a Rússia e o Irão se possam unir”, remata.
Por fim, recomenda que se revisite o pensamento de Adriano Moreira, que tem reiteradamente alertado para a importância da Organização das Nações Unidas como único fórum onde todos os Estados têm voz, independentemente das suas dimensões, nível de poder ou alinhamento estratégico. Recorda, a este propósito, ser uma organização que emergiu da maior tragédia do séc. XX, cuja Carta visa regular as relações entre os Estados e, sobretudo, impedir a guerra.