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Joanesburgo, dia 64 do lockdown - Na consulta diária ao site do Governo dedicado ao COVID-19 lemos 655.723 testes, 27.403 casos positivos e 577 mortes. Um nada na população de quase 58 milhões e comparando com a evolução da doença noutros países e continentes. As baixas taxas de contágio e mortalidade comparativamente com outros países do mundo, a vastidão do território e a dispersão populacional de muitas províncias sugerem que o país poderá não ser duramente afetado por esta pandemia. Ironicamente, a província onde se regista maior número de casos positivos e de mortos é a da “europeia” Cidade do Cabo.
Joanesburgo, dia 64 da notícia de que esperamos uma filha - O tempo mais estranho que estamos a viver os dois, com o resto do mundo, começou com a notícia há mais tempo desejada pelos dois e, supomos, pelo resto do mundo.
O tempo da nossa quarentena é marcado por estes dois acontecimentos. Um tempo de circunstâncias e sentimentos que vão em muitos sentidos. Evidentes perdas, individuais e coletivas, mas alguns benefícios (talvez melhor expressos como externalidades positivas). Mudanças inesperadas que se nos impõem, mas também o vislumbre de que podem ser propostas de uma vida diferente para melhor (melhores hábitos, melhores rotinas). Como muitos com quem falamos, também nos sentimos apanhados no meio destas tensões.
A África do Sul, como outros países africanos, tem experiência em lidar com epidemias e as decisões rápidas e a progressão lenta do contágio permitiram preparar o sistema de saúde para um pico que ninguém estima quando ocorrerá. As medidas de isolamento adotadas e impostas pelo Governo foram tão atempadas como foram restritivas. Por exemplo, só 35 dias depois do início do lockdown é que foi possível sair à rua para fazer exercício e apenas entre as 6h e as 9h da manhã e num raio de 5km de casa (para além de supermercados, farmácias e uma lista reduzida de trabalhadores essenciais).
O lockdown é particularmente severo para uma percentagem significativa da população que ou só recebe dos biscates que consegue fazer durante o dia ou trabalha no “sector informal” e, como tal, não é abrangido pelo pacote financeiro de apoio que o Governo aprovou.
Da mesma forma as medidas de higiene recomendadas pela Organização Mundial de Saúde são impossíveis de implementar, por exemplo nos townships onde se partilham pontos de água e aquelas casas de banho que nos habituámos a ver nos estaleiros de obras (de acordo com o Banco Mundial cerca de metade da população urbana da África do Sul vive em townships. Estima-se que cerca de 1.250.000 vivem no Soweto, o maior e mais conhecido destes bairros).
Apesar de tudo, há muito poucas notícias de distúrbios ou violência. Estranhamente poucas para um país onde facilmente bairros inteiros se transformam em campos de batalha de onde as forças policiais são corridas à pedrada e onde as imagens de pneus a arder numa qualquer rua do antigo centro são parte das notícias diárias de um país cheio de desigualdades. Pode ser porque, desde o primeiro dia, um exército de reflexos rápidos tem estado a patrulhar as zonas tipicamente mais problemáticas (novamente os townships) e pela onda de ajudas vindas de instituições sociais e privados a uma escala que impressiona – os telejornais portugueses mostraram há dias imagens de um campo de futebol em Pretoria com filas intermináveis e ordenadas de sul africanos a pedir e a receber ajuda de alimentos básicos.
Ao nível do terceiro andar em que vivemos, há verde (agora verde de outono) e sol abundantes. É assim todos os dias desde que me juntei à Mariana a trabalhar a partir de casa. A Mariana, que trabalha muito a partir de casa, tem agora um colega. Para mim, para quem o trabalho acalmou, mas não parou, a mudança é principalmente de uma sala do escritório para um quarto da casa. Almoçamos juntos e passeamos nas ruas à volta da casa quase todos os dias. Nas manhãs mais frias, o passeio é a seguir ao almoço, quando o sol ainda está quente. Na zona residencial de Sandton onde vivemos, antes como agora, passam poucos carros, pelo que são dias de trabalho completos, sossegados e cheios de luz no meio da floresta que caracteriza Joanesburgo.
Somos conscientes da minoria privilegiada que somos. Brancos, numa casa com espaço e infraestruturas básicas não partilhadas, acesso a cuidados de saúde (a saúde privada na África do Sul é de reputação mundial) e um sustento que não depende de sairmos à rua cada dia para trabalhar. É um contraste profundo com uma parte grande da população sul-africana, o que gera um desconforto difícil de explicar; ao mesmo tempo descansados e envergonhados por circunstâncias que não criámos, agradecidos e devedores de um crédito que não é nosso. Um exemplo deste desconforto foi a tensão dos primeiros dias entre comprar apenas o que é necessário ou um bocado mais do que isso com medo que depois não houvesse. A verdade é que não conhecemos como reage esta cidade (com fama de violenta) e as suas gentes numa situação limite.
Por estes dias a maior discussão nos vários grupos tem que ver com as restrições à venda de álcool e tabaco. Ao fim de 66 dias (daqui a 2), vai ser possível comprar álcool, ainda que com limitações nos horários e quantidades e apenas para consumo em casa já que os bares e restaurantes permanecem fechados. Já a venda de tabaco continuará totalmente proibida, exceto no florescente mercado informal. Para bebedores muito ocasionais e não fumadores, também estas medidas não nos afetam particularmente.
Estamos para lá do segundo mês de confinamento, a meio de uma escala de desconfinamento progressivo definida pelo Governo (daqui a 2 dias passaremos do 4 para o nível 3), mas com a sensação de que o percurso mais importante está a começar e não a acabar. Receios e novos cuidados, aprender a viver dia-a-dia, como se diz muito. Ao mesmo tempo uma esperança grande de planear a vida a três, e pensar no dia-a-dia a partir de novembro. São muitos ajustes e incertezas em ambos os casos. E em ambos a permanente contagem do tempo: dias de confinamento, semanas de gravidez, meses até um regresso a Portugal. Um ano estranho e memorável.
*Gonçalo Noronha de Andrade é advogado e é casado com a Mariana, designer gráfica e ilustradora. Ele está na África do Sul há três anos, ela há ano e meio. Este postal foi escrito no dia 29 de maio.