“House of Cards”, versão Brasília
17-04-2016 - 12:56
 • José Bastos

“Democracia pode perder com destituição de Dilma”, diz Carvalho da Silva. “Nomear Lula foi o grande erro”, defende Álvaro Almeida no programa “Conversas Cruzadas” da Renascença.

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A bomba atómica da Constituição brasileira, o ‘impeachment’, pode explodir de novo quando passam 24 anos do mecanismo ter derrubado Fernando Collor de Mello. A comparação termina aí: com Dilma, o país está dividido. Com Collor, todos estavam de acordo.

O processo de destituição da Presidente do Brasil irá culminar, este domingo à tarde, com a votação aberta dos 513 deputados do Congresso quando, um a um, passarem na tribuna para dizer sim ou não.

Junte-se uma grave crise económica a graves erros políticos, misture-se com complexas e instáveis redes de alianças parlamentares (mudam mais depressa que areias do deserto em dias de tempestade) e deixe-se ferver num caldo político que tornam, por comparação, o roteiro da série televisiva “House of Cards” uma brincadeira de crianças.

Se ‘impeachment’ foi uma das expressões do léxico político popularizadas para os espectadores de televisão com séries como “Scandal”, “Homeland”, ou a sugestiva, “House of Cards”, agora o Brasil, país das telenovelas, assiste a um drama político em tempo real não em Washington, mas em Brasília.

O episódio deste domingo não será o último da temporada, mas promete dar pistas interessantes para os argumentistas das novas séries da “televisão política” num caso onde a realidade parece ultrapassar a ficção. Sem Kevin Spacey ou Robin Wright no cenário, o momento é para outros protagonistas da vida real brasileira Michel Temer, Eduardo Cunha ou Renan Calheiros, por exemplo.

Dilma não é acusada de corrupção, mas a oposição diz que deve ser afastada do cargo devido “a crime de responsabilidade na manipulação do orçamento de 2015”. Se o Congresso aprovar a destituição o processo transita para o Senado. Se aceite, Dilma é suspensa seis meses e há lugar a um julgamento. Michel Temer, vice-presidente, sobe interinamente a Presidente da República.

No final, 54 votos em 81 no Senado derrubam Dilma, inelegível por oito anos e Temer será presidente até 2018. Detalhe “à la House of Cards”: Michel Temer também enfrenta um processo de destituição pelos mesmos motivos que Dilma e, o segundo na linha sucessória, o presidente do Congresso, Eduardo Cunha é réu central do processo de corrupção Lava-Jato.

Se a oposição conseguir hoje os 342 votos necessários irá constituir em breve o governo provisório do presidente interino Michel Temer. Os cálculos da imprensa brasileira apontam para, pelo menos, 50 deputados indecisos até ao último minuto. Convencê-los é a esperança que resta a Dilma para evitar a perda de mandato.

Álvaro Almeida. “Dilma está desacreditada”

Álvaro Santos Almeida, no “Conversas Cruzadas” da Renascença, sustenta que o Brasil assiste a este complexo processo de destituição de um Presidente, a segunda vez numa geração, entre outras razões, porque o regime não tem outro mecanismo para fazer cair um Governo.

“É óbvio que o processo de destituição só avança porque Dilma está politicamente desacreditada. Essa é a questão central. Não haveria um impeachment se no Brasil houvesse uma forma de demitir politicamente o Governo. Dilma já foi eleita com uma margem reduzida do que as vitórias de Lula”, diz o economista.

“Dilma já não tinha um apoio tão alargado e, depois, há aqui o problema da corrupção. Um problema que, até ao momento, não envolvendo directamente Dilma, não deixa de ter uma conotação com o PT e a sua grande figura: Lula da Silva”, afirma Álvaro Santos Almeida.

“A questão implica um grau de suspeição sobre o PT que é agravado quando surge aquele que é o grande erro político que condena Dilma ao impeachment: quando nomeia Lula ministro para ajudar o ex-presidente a fugir à justiça. É um acto que arrasta Dilma para o meio do processo de corrupção. Mesmo que não tenha tido vantagens materiais, passa a fazer parte do processo”, sublinha o professor da Universidade do Porto.

Já Manuel Carvalho da Silva, conhecedor profundo da realidade política brasileira, identifica a perda do consenso popular como um erro da governação do PT, no poder desde Janeiro de 2003.

“Na governação do PT houve questões que claramente foram secundarizadas. Em pontos fundamentais da sua estrutura e até na gestão do seu espaço de influência social. Houve um distanciamento do PT face às pessoas, face aos problemas. Não houve capacidade de acompanhamento das transformações”, indica Manuel Carvalho da Silva.

“Vários dirigentes do PT já têm dito que houve autismo. Houve compromissos que pareciam ser inevitáveis face a um certo pragmatismo de manutenção no poder”, diz o responsável do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.

Carvalho da Silva. “Democracia pode perder”

“Dilma já foi eleita com uma margem muito curta e foi preciso sectores do PT engolirem sapos para a apoiar e possibilitar essa vitória à tangente. No Brasil era claro que Lula era o único dirigente do PT que, no contexto actual, poderia dar ainda alguma esperança do partido se manter na liderança da sociedade”, prossegue Manuel Carvalho da Silva.

“Admito que Lula possa voltar à primeira linha se Dilma perder o impeachment, mas é muito difícil regressar tudo à primeira forma. Acompanhei todo o processo de ascensão do PT ao poder ao Brasil, em particular, através da CUT (a maior central sindical do país), fiz várias visitas ao Brasil, acompanhei os vários fóruns sociais mundiais de Porto Alegre (âncora de todo o processo), fui convidado para a primeira tomada de posse de Lula (já não fui para a segunda e percebe-se porquê: como evoluíram as coisas, faz sentido) e havia uma grande dinâmica”, lembra Manuel Carvalho da Silva.

“Mas esse processo dinâmico foi sendo desgastado e, objectivamente, o PT não foi capaz de o gerir. O PT não foi capaz de estar à altura de integrar positivamente as mudanças que foram sendo conseguidas. E no Brasil é uma constante o tal quadro promíscuo entre interesses partidários e interesses económicos”, diz o professor da Universidade de Coimbra.

“A Dilma é atacada porque está frágil e é uma oportunidade para os seus adversários alcançarem o poder, mas este processo está muito para além desta questão. Pretende anular a tal reserva que o Lula ainda representa no Brasil, mas também colocar fim a um profundo processo de transformação social e política. Um processo onde a democracia ganhou muito, no Brasil e na América Latina, e agora pode perder”, alerta Manuel Carvalho da Silva.

Álvaro Santos Almeida defende que, além de erros próprios e alheios, o PT de Lula não soube evitar o desgaste do poder num macrocosmos político particular. “Inicialmente o que Lula representava era temido pela classe empresarial brasileira e pelos mercados, mas rapidamente, com duas ou três decisões chave, Lula eliminou essas suspeitas. Se analisarmos o período inicial de governação do PT não houve qualquer revolução com mudança do sistema, mas apenas diferenças de políticas concretas, mas isso todos os governos têm”, sustenta o ex-quadro superior do FMI em Washington.

Álvaro Almeida. “PT demonstrou que não há milagres”

“No exercício do poder o PT demonstrou o que todos já sabíamos: quando a conjuntura não é favorável, não há governo nenhum, de esquerda ou de direita, que consiga fazer milagres. O principal problema de Dilma e da sua inabilidade em o enfrentar foi ter uma população que queria mais e que estava habituada a um crescimento que a economia mundial e brasileira não teve nos últimos tempos”, afirma Álvaro Santos Almeida.

“Estando a economia brasileira em crise é normal que toda a gente se volte contra quem está no poder. Com uma agravante: no Brasil, como dizia Carvalho da Silva, há uma lógica política que torna a corrupção mais ou menos transversal a todo o sistema, mas o PT ainda se afirmava como o partido impoluto.”

“Mas estes últimos dados sobre Lula, sobre o PT e a forma como Dilma protegeu o ex-presidente e o resto do partido nestes casos veio demonstrar à população brasileira que o PT é igual a todos os outros partidos. Portanto, ‘se é igual vamos tirá-los do poder e colocar lá outros’, dizem os brasileiros”, faz notar Álvaro Santos Almeida.

“Sim, a imagem é essa”, anui Manuel Carvalho da Silva. A esmagadora maioria dos brasileiros – seja qual a sua posição – já tem consciência de que deste processo não vai resultar qualquer limpeza no país. Limpeza no sentido de diminuir fortemente a corrupção e castigar os corruptos. O PMDB é um partido infectado até porque a sua pretensa ausência de ideologia tem sido substituída por um processo de intervenção em interesses promíscuos”, refere.

Carvalho da Silva. “Nos aeroportos já havia pés-descalços”

“Há no Brasil um aspecto que até sociologicamente importa referir. Na discussão à volta da classe média, há classes médias que foram surgindo, há anseios, as pessoas começaram a ter perspectivas de futuro e, depois são frustradas essas possibilidades. Nesse caso podem ter reacções, muitas vezes, contraditórias e são mobilizáveis para processos pouco claros”, afirma Manuel Carvalho da Silva.

“Não é exclusivo do Brasil, mas estamos a falar de uma sociedade onde num espaço muito curto de tempo, três décadas, cerca de 30 milhões de pessoas passaram de uma situação de pobreza para uma situação, não diria de classe média, mas de classes intermédias”, observa o sociólogo.

“Eu recordo-me de ir ao Brasil e estar a começar a ser falado – depois com grande ampliação ao longo do tempo – o fenómeno da incomodidade da burguesia com as classes emergentes. Havia textos nos jornais e comentários, entrevistas, sobre o ‘desconforto’ da burguesia porque nos aeroportos já se viam ‘pés-descalços’, já andavam classes baixas a movimentar-se e a viajar”, lembra.

“Ou seja, houve uma impressionante mobilidade social. O governo Lula alterou relações de poder e possibilitou essa ascensão social a muita gente. Mas daqui também decorre um outro elemento: como se gerem as ambições humanas no imediato do nosso estilo de vida? Um aspecto também de análise interessante”, observa Manuel Carvalho da Silva.

E os riscos?

E agora? Ganhe quem ganhar, ao contrário do processo contra Collor, o Brasil surgirá ainda mais dividido? O muro colocado diante do Congresso em Brasília para separar manifestantes contra e a favor de Dilma Rousseff terá uma dimensão simbólica e não apenas física? Podem as Olimpíadas do Verão suavizar tensões?

“Não creio que o Brasil corra o risco de explosão social no sentido de haver ‘revolução”, afirma Álvaro Santos Almeida. “Agora sendo a situação política conturbada, muito crítica, assente em coligações de grande mobilidade muito pouco sólidas e de legitimidade eleitoral duvidosa, o risco que se corre é de que as discussões saiam do Congresso dos Deputados e continuem nas ruas. Pode haver alguma perturbação nos próximos tempos”, admite o professor de Economia da Universidade do Porto.

“A grande preocupação é saber como vai a democracia brasileira resistir a todas estas tensões”, sustenta, por seu turno, Manuel Carvalho da Silva. Os Jogos Olímpicos vão desempenhar neste contexto apenas um papel simbólico”, defende o sociólogo.

“O Brasil é um país enorme, é um grande país, o seu rumo não é alterável por epifenómenos. Preocupa-me saber como vai resistir a democracia. Como esta relação de poderes vai criar recomposições que salvaguardem a democracia, ou será a abertura a uma situação de autoritarismo militarizado ou não?”, interroga Carvalho da Silva.

“É um risco a que será importante olhar”, diz. “É um risco”, admite também Álvaro Santos Almeida.

Tal como Washington, em House of Cards, também Brasília, na vida real, não deixa de surpreender.