Vivemos, os últimos meses, agarrados à vida com unhas e dentes. Às nossas vidas. Às vidas dos outros. Fizemos tudo para nos/os proteger. Passámos noites sem dormir, cuidando, velando por elas. Fechámo-nos em casa, fechámo-los em casa. Cobrimo-nos de gel. Descalçámo-nos e calçámo-nos, criámos novos rituais. Mudámos de roupa, vezes sem conta, para nos/os poupar. Vimos cenas comoventes de centenários, curados, exibidos como troféus da não desistência, por médicos e cuidadores. Fizemos tudo. Superámo-nos. Gastámos o que tínhamos (e não tínhamos) para os salvar. Sabendo, de antemão, que talvez fiquem connosco mais umas semanas, uns meses, uns anos. Mas, seguramente, nunca mais uma década. Não vimos ninguém como tendo esgotado o seu prazo de validade. Não desistimos de nenhum. Como Sociedade recriámo-nos. Quem sabe, mudámos. Para melhor.
Hoje vivemos um certo contrassenso. No Parlamento, Ferro Rodrigues recebeu 95 mil assinaturas de portugueses a pedir um referendo para debater a legalização da eutanásia, adiando a promulgação certa e apressada da lei. Uma autorização para repensar e debater o diploma cuja votação, na especialidade, ficará também hoje, finalmente, agendada, eufemisticamente dissimulada no título mais pomposo de “despenalização da morte medicamente assistida”. Na descrição bondosa até a palavra “morte” parece estar a mais. “Despenalizar” parece logo bom. “Medicamente assistido” é tudo o que nós queremos ser, quer na vida, quer sobretudo na morte.
Oliveira e Silva, ex-presidente do Conselho de Ética para as Ciências da Vida, mostrava-se hoje, em declarações à Renascença, esperançado em que os efeitos da pandemia se façam sentir, também, entre os parlamentares não apenas fazendo soar as campainhas para as fragilidades inerentes aos projetos em análise ( que não preveem por exemplo nenhuma avaliação psiquiátrica prévia) mas, sobretudo, porque “o simples facto de se admitir a dúvida de que os deputados, sem prévio mandato eleitoral para debater a questão, se possam colocar a dúvida de estarem, ou não, a exorbitar os respetivos poderes”. Motivo, mais do que suficiente, para se recusarem a votar. Ou, quem sabe, alterarem o sentido do seu voto.
E enquanto Ferro recebe a petição popular, Isabel Moreira, tentará dar os últimos retoques num texto de consenso que consiga fundir os cinco projetos já aprovados, por larga maioria, na generalidade. PS, BE, PAN, Verdes e Iniciativa Liberal divergem nos pormenores, mas convergem no fundo: aceitar o princípio da morte a pedido. Dando assim início à liberalização.
Na Holanda, onde a lei foi aprovada há quase vinte anos, já se vai uns passinhos à frente. A eutanásia tornou-se um fim habitual. A sociedade, devagarinho, foi fazendo o caminho passando da vaga comoção inicial à celebração oficial. Hoje há quem já convide amigos para partilhar o momento. À semelhança das festas de divórcio faz-se um luto, ao contrário, da relação de amor à vida. Não morrer “por eutanásia” começa a parecer falta de planeamento ou, no mínimo, uma certa falta de cuidado. Uma espécie de forretice do candidato a defunto, incapaz de pagar um último copo de despedida. Pior do que isto só fenecer de improviso como antigamente.
Daí que não espante que o autor no projeto inicial da lei holandesa já se apresse a apresentar uma nova modalidade ainda mais barata, discreta e eficaz. Uma simples pilula “sem dia seguinte” a adquirir nas farmácias. O medicamento visa colocar o fim rápido e eficaz a quem, em vez de entrar num “sofrimento insuportável”, se sinta apenas a entrar num puro e simples “cansaço de viver”. E quem alguma vez não se sentiu assim? Mais vale prevenir.
Imagino que inicialmente o comprimido só se venda com prescrição médica, não vá o diabo tecê-las e começarem a aparecer velhinhos cansados de viver quando, na véspera, não mostravam sinais de nenhuma fadiga. Mas, na Holanda, tudo começa sempre com enormes cuidados de forma a impedir que as ondas de choque se façam sentir de início. Foi assim que a lei inicialmente falava apenas em doenças incuráveis e sofrimento físico insuportável e foi depois acolhendo, passo a passo, quase tudo, desde as crianças, ao sofrimento psicológico, passando pelas doenças psiquiátricas e acabando agora nas demências sem renovação de vontade no momento da morte.
Há poucas semanas o Supremo Tribunal de Justiça publicou o acórdão que faltava. Os médicos podem estar descansados porque não serão punidos mesmo por praticar a eutanásia “à força”, desde que a pedido dos familiares, caso o doente, mesmo demente resolva resistir.
O acórdão resulta de uma denúncia, pela prática efetuada por uma médica que só conseguiu aplicar a solução letal numa doente de 74 anos, “amarrada” pelos familiares que solicitaram que fosse eutanasiada.
O tribunal inocentou a médica atendendo ao facto de existir um pedido anterior da própria doente, ainda em estado de lucidez, manifestando a vontade de ser morta dessa forma. A partir de agora deixará de haver direito ao arrependimento uma vez aceite o procedimento. Resta saber o grau de liberdade com que os mesmos foram assinados. Há muitas formas de se sugerir a vantagem de morrer desta forma ou de vencer pelo cansaço quem se sente a mais.
Por cá ainda nada disso se coloca. A chamada “rampa deslizante” apenas vai começar.
Ou talvez não. Entre o pedido de referendo e a declaração, feita há dias, por 15 catedráticos de direito público e constitucional, quem sabe se retoma de novo o debate agora pós-pandémico. Quem sabe alguns deputados tenham tido tempo de confinamento suficiente para mudar de sentido de voto. Quem sabe Marcelo consiga ver agora um diferente pulsar da sociedade. O único fator que o Presidente, sempre disse poderia influenciar, no minuto final, a sua decisão de promulgação, ou não, da nova lei.
Favorável à figura do “referendo”, enquanto instrumento jurídico útil, Marcelo poderá sempre optar por essa via difícil. Ou, em alternativa, respaldado nas dúvidas dos 15 professores de direito público e constitucional optar por mandar para o Tribunal Constitucional a lei para “fiscalização sucessiva”.
Nomes como os de Jorge Miranda (pai da Constituição), Maria da Glória Garcia ( ex-reitora da Católica), Cândido Oliveira, Fausto Quadros, Jónatas Machado, Sérvulo Correia, Afonso Vaz, Maria João Estorninho ( especialista em direito da Saúde), Vasco Pereira da Silva, Blanco de Morais, Alves Correia, Bacelar Gouveia, Paulo Otero, Casalta Nabais, Colaço Antunes, parecem fazer o pleno das várias escolas e das várias áreas do direito público e constitucional. De Coimbra, a Lisboa, sem esquecer o Minho.
Por outro lado, a análise do texto Constitucional que elaboraram na breve declaração não se fica pelos sempre lembrados artigos 24 e 25 “sobre o direito à vida e à integridade física e respetiva inviolabilidade”. Vão muito para além disso: citam-se mais sete artigos que direta ou indiretamente são violados a começar na “dignidade da pessoa humana no contexto de uma sociedade solidária e de um estado de direitos e liberdades fundamentais” (artigos 1º,2º,9º,12º,13º e 18º), além do “direito à saúde e o dever de a defender e promover e as inerentes vinculações do Estado a implementar o acesso a todos os cidadãos aos cuidados médicos” bem como “o dever genérico de proteção dos mais frágeis“ (artigo 64º).
Não é sequer preciso lembrar os pareceres negativos do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida sobre todos os projetos em análise agora na Comissão Parlamentar para que o Presidente possa encontrar algum respaldo na sociedade para o último momento de ponderação.
Decida o Presidente o que decidir, com maior ou menor atenção às vozes que do outro lado do campo clamam por ainda mais pressa – ontem Vital Moreira dizia ao jornal i que a Constituição não era o local ideal para se resolverem as dúvidas ou perplexidades morais e religiosas, como se num Estado laico a ética não fosse, como tantas vezes o próprio reclama “a ética da Lei”, e não fosse no texto constitucional que ela vai beber, em primeira instância, inspiração. Que outro instrumento tem o Estado para dar à sociedade o sinal certo sobre a inviolabilidade da vida, e a responsabilidade de todos por todos a começar nos mais “frágeis” e dos que por um motivo ou outro se sentem mais sós, mais vulneráveis e mais cansados do que as leis que lhes asseguram o exercício dos respetivos direitos e proteção. A Républica não se enuncia apenas, executa-se, fazendo-se cumprir. Não se faz por omissões ou desistências.
A Sociedade laica, ou sobretudo laica, faz-se de sinais de que a lei é transmissora essencial (na tolerância, na diversidade, na solidariedade) é espaço de corresponsabilidade pelo outro por contraponto ao individualismo puro, é inclusivamente espaço para o exercício da fraternidade universal. Um conceito a que o cristianismo veio dar o sentido mais amplo e radical, mas que não se esgota aí. Mais importante do que tudo é que no pós-pandemia não se encerre o debate.
Como D. Tolentino lembrava em entrevista à Renascença. Estamos num momento de viragem de época em que haverá que fazer “o luto das nossas ilusões”. Quem sabe, nesse luto, podemos aproveitar para encontrar o essencial e nele ver que as forças do retrocesso civilizacional a que nos leva esta lei, como o cardeal não teme classificar, podem vencer ou perder na escolha de futuro que todos vamos ser chamados a fazer.