Vamos começar pelo fim: acabe-se com o segredo de Justiça. Na segunda-feira à noite, todos nos perguntámos sobre o objetivo e a utilidade do comunicado da Procuradoria-Geral da República.
Temeu-se o pior. A vacuidade parecia tal que mesmo em versão benigna era impossível não ver o texto como o que, em linguagem jornalística, se descreve como um “frete” ao dr. António Costa. Colocado a par de Marcelo, o caso deixava de ser exclusivo do Governo com danos colaterais para a oposição. No subconsciente dos eleitores não se acrescentavam certezas e gerava-se em cadeia uma série de dúvidas. Se foi “ponderada” a constituição do Presidente da República e do primeiro-ministro como testemunhas, alguma coisa havia. Se as declarações não eram “imprescindíveis”, talvez fossem “úteis”. Porque deixaram esgotar o prazo?
Ontem, tivemos saudades de Joana Marques Vidal e foi quase impossível deixar de pensar mal de Lucília Gago. O que parecia um exercício de absurda opacidade com o risco de lançar suspeições infundadas sobre duas figuras do Estado mostrou-se ainda pior. Conhecendo hoje a manchete da revista "Sábado" e confirmando-se o que ela contém, o Ministério Público parece ter caído na armadilha de ao tentar evitar um desmentido acabar a recorrer à mentira.
Em que ficamos? A decisão do diretor do DCIAP de “ponderar” as razões apresentadas, em fase final do inquérito pelos investigadores, dispensando as audições de Costa no processo de Tancos, obtiveram a “anuência dos magistrados titulares”, como afirmava o comunicado ou, pelo contrário, existiu uma decisão hierárquica equivalente a uma proibição imposta aos magistrados e tão difícil de “engolir” pelo trio que estes tiveram se se precaver de críticas futuras, exigindo que fosse passada a escrito pelo superior e acompanhada da respetiva fundamentação?
Face ao que escreve a "Sábado", e a riqueza de informação e pormenores que constam da notícia, tudo indica que a decisão tenha gerado polémica, o que torna o comunicado não só opaco mas desnecessariamente enganador. A fuga de informação de um texto que a revista descreve como de 30 páginas a fundamentar a recusa parece confirmar que a decisão foi tudo menos pacífica dentro do DCIAP, tanto mais que a certa altura se cita uma passagem onde o diretor do departamento, Albano Pinto, afirma que lhe cabe assumir “por escrito” as suas decisões.
No trio Vítor Magalhães, Cláudia Porto e João Valente parece agora evidente que pelo menos alguém não terá ficado convencido da bondade da decisão hierárquica. Parece óbvio que o que foi visto pelo diretor do departamento encarregue da investigação como uma diligência supérflua, suscetível de perturbar a atuação dos órgãos de poder, era visto por outros como pelo menos útil ou até necessária. Claro que o pedido de inquirição surgido no fim do prazo à beira do esgotamento terá surgido tarde demais, mas o risco de ser recusado era sempre grande.
O texto jornalístico, que mistura citações de um documento classificado (retirado propositadamente do processo para assegurar que a sua circulação era meramente interna), era suposto não sair da órbita do departamento, constituindo a enésima fuga ao segredo de Justiça num processo que decorre há mais de dois anos.
Isto permite que à mistura com citações retiradas do texto se construa uma narrativa que passa por passagens onde se acrescenta que “nos corredores do DCIAP comenta-se que (X) terá comentado com os procuradores que, na sua opinião, Azeredo Lopes terá sido negligente, não havendo "motivo para se suspeitar de crimes”, misturando assim mexericos de corredor e boatos a circular com informação secreta e relevante, exigindo um desmentido mais explicito e fundamentado do que um críptico comunicado que ninguém entende, para cúmulo enviado às redações por “antecipação”.
Se não se consegue impedir este tipo de fugas, que servem sempre o interesse de uma ou múltiplas partes interessadas, então talvez seja preferível evitar hipocrisias e colocar à disposição de todos os que o pretendam o acesso livre e generalizado a informações sob segredo de Justiça.
Os jornalistas deixariam de ser tratados pela Justiça como uma espécie de filhos e enteados, e sobretudo todos deixaríamos de ser manipulados por meias mentiras e meias verdades estrategicamente divulgadas “às pinguinhas”, “descontextualizadas”, ao serviço deste ou daquele interesse, por mais que o jornalista tente seguir uma investigação própria e independente. Está visto que não será nunca possível impedir a divulgação dos processos, pelo menos na fase de investigação. Libertemo-nos então da hipocrisia antidemocrática da gestão do segredo. Acabe-se simplesmente com ele.