Dois soldados do Exército de Myanmar que desertaram assumem que participaram no massacre da comunidade Rohingya em 2017, naquele que é o primeiro testemunho gravado de militares birmaneses sobre o que as Nações Unidas (ONU) classificam de "genocídio" da minoria étnica muçulmana.
No vídeo, a que o "New York Times" e a Canadian Broadcasting Corporation tiveram acesso esta terça-feira, os dois homens admitem ter matado dezenas de pessoas em aldeias do estado de Rakhine, enterrando-as em valas comuns. A ONG Fortify Rights diz que os testemunhos dos soldados foram recolhidos em Myanmar este ano.
"Disparem sobre tudo o que virem e ouvirem", foi a ordem do comandante de Myo Win Tun, em agosto de 2017, durante uma ofensiva em Rakhine, recorda o soldado no vídeo, assumindo que obedeceu, massacrando cerca de 30 Rohingyas e enterrando-os numa vala comum.
Por volta da mesma altura, numa aldeia vizinha, o soldado Zaw Naing Tun ouviu do seu comandante uma ordem semelhante: "Matem tudo, adultos ou crianças". Ao todo, confessa o soldado, citado pelo NYT, "aniquilámos cerca de 20 aldeias".
A Reuters ainda não viu os vídeos citados pelas organizações noticiosas. A equipa do "New York Times" adianta que ainda não conseguiu confirmar de forma independente se os soldados cometeram de facto os crimes confessados.
O Governo de Myanmar e os assessores do Exército ainda não reagiram a esta notícia.
Os dois soldados foram capturados pelo grupo insurgente Exército Arakan (nome dos Rohingya para o estado de Rakhine), que neste momento batalha contra as tropas governamentais no terreno em Rakhine.
Alguns media apontam que os dois homens assumiram estes crimes em cativeiro no Bangladesh e que foram depois transportados para Haia, na Holanda, ficando sob jurisdição do Tribunal Penal Internacional (TPI).
Contactado pela Reuters, um porta-voz do TPI desmentiu essa informação. "Não. Estas notícias não estão corretas. Não temos essas pessoas sob custódia do TPI", garantiu Fadi el Abdallah.
Payam Akhavan, advogado canadiano que está a representar o Estado do Bangladesh num processo judicial contra Myanmar no TPI, diz que os dois homens apareceram num posto de fronteira entre os dois países pedindo proteção e asilo político, altura em que terão confessado os homicídios e violações em massa de civis da minoria Rohingya em 2017.
"Tudo o que posso dizer é que estes dois homens já não estão no Bangladesh", adianta Akhavan.
Um porta-voz do Exército Arakan, Thu Kha, diz que os dois homens desertaram do Exército birmanês e não foram mantidos como prisioneiros de guerra. A mesma fonte não quis comentar o paradeiro atual dos soldados, dizendo apenas que o grupo armado está "comprometido com a justiça" para todas as vítimas do Exército de Myanmar.
O país continua a rejeitar as acusações de perseguição e genocídio, dizendo que as operações militares de 2017 em Rakhine tiveram como único propósito derrubar insurgentes Rohingya que atacaram postos de controlo na fronteira.
O TPI está, neste momento, a investigar as autoridades de Myanmar pela deportação forçada dos Rohingya para o Bangladesh, um crime contra a humanidade, bem como perseguição da minoria e outros "atos desumanos".
Em comunicado, o gabinete da procuradoria do TPI disse que "não comenta publicamente especulações ou notícias sobre investigações em curso, nem discute detalhes de qualquer aspeto sobre as suas atividades de investigação".
Para além das acusações do TPI, a antiga Birmânia enfrenta ainda acusações de genocídio da minoria Rohingya no Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), também em Haia, apesar de, nessa instância judicial, não se ouvirem testemunhas nem serem abertos processos judiciais contra indivíduos singulares.