Depois de “O Luto de Elias Gro”, “O Paraíso segundo Lars D.” é o segundo livro que João Tordo lança em 2015. No livro agora editado pela Companhia das Letras, Tordo dá nova vida a Lars, um escritor em crise e uma personagem que vem do anterior romance. Uma entrevista emitida no programa Ensaio Geral da Renascença desta sexta-feira.
“O Paraíso segundo Lars D.” é o segundo livro que lança este ano. A ideia é construir uma trilogia?
Sim, mas é uma trilogia temática. Os livros são todos independentes. Não se tem de ler um para ler o próximo. O romance anterior, “O Luto de Elias Gro”, versa a perda, como o ser humano lida com a dor e como a transforma. É uma espécie de processo alquímico de como se transforma o aço ou outro metal em ouro. Esse é o processo de estar vivo. É ir transformando as coisas que são difíceis em formas de viver. Este livro, “O Paraíso segundo Lars D.”, tem este nome estranho porque o Lars era uma personagem que vinha do romance anterior. Era uma personagem secundária, mas que tem muita importância para o protagonista e para o decorrer daquela história.
Como desenvolve agora a personagem de Lars?
Peguei nela e fui ver como é que esta personagem podia ser um protagonista e o que é que ela tinha para contar. Descobri que, mais do que essa personagem, era a mulher dessa personagem que tinha alguma coisa para nos contar. Então, o romance é contado na perspectiva de uma senhora com 63 anos, muito esperta e muito paciente, cujo marido, o Lars, um dia resolve desaparecer. Ele abandona a sua própria vida. Todos temos dias assim, em que apetece-nos abrir a porta e irmos embora. Deixar tudo para trás como se estivéssemos no cinema a ver um filme e aquilo fosse sempre a mesma coisa. E um dia saímos da sala e vamos embora!
Se eu deixar a minha própria vida, o que é que acontece com ela? Há uma vida que fica para trás? Não, porque eu vou comigo! Levo a minha vida comigo. O livro mexe com esta necessidade que temos de perceber que há outro caminho e também com a nossa identidade.
O Lars, tal como o João Tordo, é um escritor.
Um escritor sexagenário que não escreve há muitos anos. Este é um medo que acho que todos os escritores têm. É que aquele filão um dia desapareça. E um dia a pessoa acorde de manhã e já não haja livros! E não haja mais nada para dizer. Eu vivo com este medo, como acho que todos os que têm esta profissão vivem. Um dia, podemos acordar e perceber: “Já não quero escrever livros! Já não faz sentido!” Então, eu coloco esta personagem nesta situação. O que é que acontece à tua identidade quando toda a tua identidade está constituída naquilo que tu fazes?
Mas a identidade de um escritor também passa por criar mundos, outras vidas e alimentar-se das suas personagens.
A questão é essa. Quando o Lars, com 65 anos, percebe que não tem mais nada em si para dar como escritor, toda a sua identidade como ser humano fica fragmentada. Então, temos um homem que, de repente, não sabe o que há-de fazer à vida e deambula pela casa, fala consigo próprio, olha-se ao espelho e não se reconhece. No meio do livro, aparece esta centelha de luz que se chama Glória. É uma rapariga que vem de parte nenhuma e que desperta nele talvez a última coisa que o liga à existência. Ele resolve ilusoriamente pensar que aquilo é uma saída e depois percebe que não.
Há em todo o livro uma constante inquietação com Deus?
Já estava no outro livro também. A questão do absoluto tem percorrido estes romances. Já em “O Luto de Elias Gro”, que é um livro que não tem nada de religioso, há a procura de um homem por um sentido. A figura de Deus aparece aqui outra vez, porque às vezes, ou nas situações em que eu coloco o Lars, a sua falta de crença ou de fé é tão perigosa como o fanatismo absoluto. Neste caso, o Lars confronta-se com essa vontade enorme de absoluto sem o conseguir encontrar.
Neste livro, muitas personagens vivem a solidão. Escreve a certa altura: “Há uma razão para a vida ser feita de inúmeros seres (...) os outros são amparos de luz”.
Interessou-me explorar a questão do outro. Acho que os outros são dádivas, mas são também feridas. Só temos consciência do nosso vazio e da nossa inquietação quando nos confrontamos. Os outros servem para essa confrontação. Através do outro estou mais consciente da minha própria ferida e os outros, às vezes, como está escrito no livro, escarafuncham nessa ferida e mexem naquilo que nos é mais frágil. Ao mesmo tempo, os outros são a bênção e podem sarar a nossa ferida. Acaba por ser uma relação um pouco paradoxal que temos com os outros.
É uma luta.
É nessa luta que o ser humano se vai confrontando. Aquilo que aconteceu em Paris, por exemplo. Vemo-nos confrontados com isso. Os outros são uma ferida enorme. Aqueles dez loucos que entram no Bataclan e que fizeram aquilo! Os outros são uma bênção e uma dádiva para nos podermos consolar. Podemos unir-nos e perceber que isto não representa “toda a gente”. Que isto foram dez psicopatas que fizeram aquilo. A grande dificuldade humana é essa, o esforço entre ter equilíbrio e não radicalizar. Não achar que, por uma pessoa ser uma ferida enorme e nos tocar no que há de mais sensível em nós, toda a gente é assim.
Está a escrever uma trilogia temática. Depois do luto e da identidade, o que poderá seguir-se?
Não sei. Para o próximo romance tenho várias ideias e sei que irei buscar personagens destes dois livros. Estes romances não têm geografias, mas há aqui uma série de pequenos apontamentos e de personagens que quero retomar no próximo livro. Mas não tenho ainda nada definido. Sei que estes temas da perda, do luto, da maneira como lidamos com os sentimentos, a dor e o tema de Deus são para continuar e explorar.