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Completa-se esta quarta-feira uma semana sobre o tiroteio que vitimou 17 pessoas numa escola de Parkland, na Flórida. Como tem sucedido em tragédias semelhantes, nesta primeira semana a opinião pública norte-americana mostra-se muito sensível às mortes de vítimas inocentes e retoma o debate recorrente sobre o uso e porte de armas no país.
É o efeito de choque habitual que traz consigo um padrão já conhecido. Os defensores do uso irrestrito de armas proclamam a sua consternação, enviam votos de pesar às famílias das vítimas e, em nome do respeito por elas, advertem que não é a altura para discutir política, mas sim para fazer o luto. Receiam que a opinião pública, embalada pela onda emocional que se gera, acabe por aceitar restrições ao uso de armas e os decisores cedam a tais intentos.
Quando o debate se solta, repetem o seu mantra habitual, que se pode resumir numa frase simples: as armas não matam pessoas, são as pessoas que matam pessoas.
No campo oposto, aqueles que defendem mudanças na lei para impor restrições às armas, tentam mostrar aos seus concidadãos como os EUA são um país “original” nesta matéria e como na generalidade dos outros países civilizados não há massacres idênticos justamente porque não há armas à solta.
É geralmente um diálogo de surdos. Ao fim de uma semana, o debate arrefece, os que querem mudanças na lei resignam-se à fatalidade do “status quo”, os que querem que as armas proliferem confortam-se com o desfecho da crise e a vida prossegue até ao próximo massacre.
Mas, desta vez, talvez seja diferente, apesar de ainda estar a terminar a habitual semana de “agitação” em torno do massacre. E sobretudo porque,
desde o dia fatídico, os alunos sobreviventes da escola de Parkland ainda não abrandaram na luta para impor restrições à venda livre de armas nos Estados Unidos. E prometem não abrandar enquanto as coisas não mudarem mesmo.
Desde que ocorreu o tiroteio não há praticamente um dia em que os jovens não tenham tido iniciativas públicas, colocando a questão das armas no topo da agenda e da atenção dos media. Televisões e jornais dedicam mais tempo e espaço do que nunca à questão das armas e a opinião pública parece cada vez mais sensível para o problema.
O ativismo dos alunos de Parkland tem sido orientado para os responsáveis políticos, a quem acusam de nada fazer para proteger as vidas dos jovens que frequentam as escolas. E a quem garantem que não se calarão enquanto a inércia se mantiver. Há mesmo alunos que prometeram não regressar às aulas enquanto os decisores políticos não agirem e a legislação não mudar.
No domingo, em Washington, motivaram uma manifestação frente à Casa Branca, e começaram já a recolher fundos para duas grandes demonstrações de massas em março.
No dia 14, querem que todos os que concordam com eles se manifestem nas suas cidades e, para dia 24, estão a convocar uma gigantesca manifestação para a capital do país, onde esperam reunir centenas de milhares de pessoas.
Os donativos já começaram a chegar – o mais destacado foi o do casal Clooney, que contribuiu com 500 mil dólares para a organização da marcha em Washington e garantiu que compareceria à mesma.
Ainda esta terça-feira, os jovens digiram-se à capital do estado da Flórida, Tallahassee, para pressionar os legisladores estaduais a tomar medidas urgentes.
Para sua frustração, a votação que decorreu no congresso da Flórida acabou numa derrota. Numa câmara dominada pelos republicanos, foi rejeitada por esmagadora maioria (71 contra 36) a proibição de armas de assalto no estado.
Uma das jovens estudantes considerou cruel a forma como decorreu a votação e responsabilizou desde já os deputados por aquilo que vier a acontecer no futuro. “A próxima morte aqui na Flórida de alguém com uma AR-15 [a arma usada no massacre da escola] será da vossa responsabilidade. Se houver outro tiroteio, a culpa será deles, porque hoje tiveram uma oportunidade e desperdiçaram-na”, afirmou à CNN.
“Assassinos de crianças”
A sua determinação parece inabalável. Não hesitaram em denunciar os políticos que receberam dinheiro da NRA (National Rifle Association), o maior lobby das armas, para as respetivas campanhas eleitorais, a começar por aqueles que iam divulgando mensagens de pêsames às famílias das vítimas e garantiam rezar por elas.
Divulgaram os montantes que cada um recebeu diretamente no último ciclo eleitoral, sem contar com contribuições indiretas, como pagar anúncios nas televisões ou outras formas de propaganda.
Um dos visados foi o senador da Flórida e ex-candidato presidencial Marco Rubio. Todos os legisladores da Flórida que aceitaram contribuições da NRA são republicanos. Um dos alunos chamou-lhes mesmo “assassinos de crianças”.
Alguns deles tornaram-se já quase vedetas televisivas e as suas intervenções primam pela clareza e assertividade. Não insultam ninguém, não usam calão, exprimem-se muito bem e não rodeiam as questões, vão diretos ao assunto. Sabem claramente o que dizer e como dizer e a sua mensagem tem sido de uma eficácia impressionante, responsabilizando os políticos que defendem o uso de armas sem restrições pelas mortes ocorridas nos últimos anos na América.
Não dramatizam excessivamente e por isso a emoção que perpassa nas suas intervenções surge como totalmente genuína em alguém que acabou de perder amigos e colegas e sobreviveu a um massacre traumático.
Talvez por isso as coisas estejam a mudar. No campo conservador são várias as vozes que defendem agora mudanças legislativas, reconhecendo que a atual situação não pode manter-se.
Entre elas conta-se agora o próprio Presidente. Donald Trump passou o fim de semana no seu resort de Mar-a-Lago, que não fica longe de Parkland. Por respeito às vítimas não jogou golfe e, portanto, passou o dia a ver televisão e a auscultar opiniões de gente que preza, incluindo os sócios do clube.
Os jornais citaram pessoas que acompanharam Trump no fim de semana e que atestam o quanto os depoimentos dos jovens de Parkland o impressionaram. Intuitivo, terá percebido que precisava de cavalgar a onda emocional gerada no país.
Na segunda-feira, apesar de ser feriado, mandou a porta-voz dizer que estava aberto a rever as leis sobre armas, nomeadamente apoiando uma iniciativa legislativa de quatro senadores republicanos e quatro democratas a exigir mais e melhores “background checks” – quem quiser comprar uma arma terá de ser submetido a uma análise aprofundada do seu passado e nele não poderá constar qualquer crime, qualquer episódio de violência doméstica ou qualquer dúvida sobre a sanidade mental.
A proposta responsabiliza ainda as agências federais pela atualização da base de dados onde devem constar todas essas informações sobre os potenciais compradores.
E, na terça-feira, veio dizer de viva voz que tinha dado instruções ao Departamento de Justiça para preparar a proibição dos chamados “bump stocks” – dispositivos que se adaptam às armas semi-automáticas e as tornam mais letais ainda, aumentando a rapidez do disparo das balas. No fundo, transformam armas de assalto em autênticas armas de guerra.
No maior massacre ocorrido até agora, um homem num hotel em Las Vegas disparou sobre uma multidão que assistia a um concerto e fez 59 mortos. Foi em 1 de outubro último e no quarto do hotel o atirador tinha vários desses “bump stocks”.
Estas duas medidas não são excessivamente polémicas. A própria NRA não se lhes opõe. Mas na sua esteira podem surgir outras, como a proibição de alguns tipos de armas. Trump foi perentório ao dizer que na atual situação não basta ficar com a sensação de que mudou alguma coisa, é preciso mudar realmente as coisas.
Trump muda de posição
Esta atitude do Presidente surge depois de, na semana passada, ter reagido ao massacre de forma que indignou os jovens e a população de Parkland. Na reação oficial, ignorou a questão das armas para se centrar apenas na questão da sanidade mental, deixando implícito que não tencionava tomar qualquer iniciativa nesta matéria.
Nos tweets aproveitou para fustigar o FBI por não ter averiguado a situação do atirador após alguns alertas, acusando a agência federal de gastar os recursos todos na investigação ao caso da interferência da Rússia na campanha eleitoral em vez de se ocupar da segurança dos cidadãos. Esta reação provocou indignação em vários círculos, que acusaram Trump de fazer baixa política num momento em que a nação chorava os 17 mortos de Parkland e se exigia decência e dignidade.
No entanto, o clima político após o massacre da Flórida pode obrigar os mais renitentes defensores do uso irrestrito de armas a rever a sua posição. Quando destacados republicanos reclamam mudanças em artigos de jornais, quando o próprio Presidente advoga a mesma causa, o campo conservador surge em perda e pode não ter força suficiente para se opor a mudanças na lei.
O site da NRA, por exemplo, desde o dia do tiroteio que não tem qualquer atualização e a organização evitou reagir nos “media” apesar das inúmeras solicitações que teve.
Começa a notar-se alguma hostilidade em relação a este poderosíssimo lobby pró-armas mesmo entre os conservadores. Dois exemplos: um vereador de Dallas, no Texas, sugeriu que o congresso da NRA, previsto para aquela cidade em maio próximo, se realize noutro sítio. No seu entender, os 80 mil membros e 800 vendedores de armas que o congresso costuma reunir não são bem-vindos a Dallas e podem gerar insegurança na cidade.
Recorde-se que Trump discursou no congresso da NRA no ano passado e que a organização financiou a sua campanha presidencial com cerca de 11 milhões de dólares, enquanto gastava 20 milhões a atacar Hillary Clinton. Nos últimos 15 anos, gastou um total de 132 milhões de dólares a apoiar (ou atacar) políticos.
O outro exemplo é o de um habitual financiador de candidatos republicanos, All Hoffman, um conhecido multimilionário da Flórida, ter anunciado que não passará mais cheques a candidatos que não defendam uma revisão das leis sobre armas.
Nesta quarta-feira, Trump vai receber na Casa Branca pessoas ligadas aos três maiores massacres em escolas americanas: o de Columbine, no Colorado, o de Newtown, no Connecticut e o de Parkland, na Flórida, para estudar em conjunto a situação e se inteirar das propostas de quem sofreu na pele as consequências das tragédias.
Com os jovens de Parkland a liderar a luta pela imposição de restrições legais ao uso de armas, o Presidente terá pela frente interlocutores difíceis e determinados em fazer vencer os seus pontos de vista.
Inconformados com o ‘status quo’, estes jovens exigem muito mais do que melhorar os “background checks” ou banir os “bump stocks”, como parece admitir a administração. Eles exigem que alguns tipos de armas sejam proibidos – como as armas de guerra, as de assalto, automáticas e semiautomáticas. Uma proibição que já vigorou entre os anos 1994 e 2004, graças a uma moratória que durou dez anos, mas que nunca mais foi reinstaurada.
Talvez o clima sócio-político em relação ao assunto esteja mesmo a mudar e seja possível recuperar tal moratória a curto prazo. Se dependesse da vontade dos jovens de Parkland, isso estaria garantido, mas falta avaliar o verdadeiro impacto da sua capacidade de persuasão junto do resto do país.
A determinação dos seus 16/17 anos de idade parece inabalável ao ponto de admitirem mesmo mudar os seus planos de vida. Como revelava uma das adolescentes que quer cursar artes, nunca lhe tinha passado pela cabeça entrar na política. Mas agora, se for necessário para vencer esta causa, está disponível para mudar de curso.