Dez de outubro, domingo. São 10h20 da manhã, quando o camião que transporta seis touros da ganadaria Prudêncio, do Ribatejo, chega à praça das Caldas da Rainha; está ligeiramente atrasado, mas isso não é um problema. A diretora de corrida também acaba de estacionar numa das laterais.
Após uma série de manobras milimétricas, avanços e recuos, o camião entra de marcha atrás na arena. Um a um, os touros são descarregados, pesados, embolados, e depois encaminhados para os curros; um processo moroso, delicado, porque, para saírem do transporte, são obrigados a atravessar um túnel de metal inclinado – com buracos que parecem feitos por arremetidas de animais –, estabilizado com cunhas de madeira.
Alguns aficionados vieram assistir à chegada dos bovinos, mas, na maioria, os presentes são gente ligada à corrida; evitam fazer barulho, entrar no campo de visão dos touros. Às 12h00, após serem emparelhados em lotes de dois, os animais serão sorteados pelos três cavaleiros - Luís Rouxinol, Filipe Gonçalves e João Salgueiro da Costa - que vão tourear; os grupos de forcados amadores das Caldas da Rainha e do Ribatejo farão as pegas.
Rafael Francisco Vilhais, 59 anos, responsável pela corrida de encerramento da temporada de 2021, com hora marcada para as 16h30, terá de estar no momento do sorteio. Ainda antes disso, o gestor das praças de Salvaterra de Magos, Moura, Caldas da Rainha e Moita, conversa com a Renascença numa das salas de arrumos da praça.
Natural de Samora Correia, o empresário vê no touro um animal com uma “nobreza extraordinária”, mas propósito determinado: “A verdade é que é uma raça – chama-se raça touro de lide –, é para isto que serve, é o fim dele.” E descreve a tourada como um espetáculo “vindo do mundo rural” paralelo à dança, muito além de uma simples demonstração de “valentia”. “Se se dá um passo, tem de se rodar a cintura, o corpo tem de se relaxar, o cavalo de se dobrar.”
Logo à primeira pergunta, afirma: “Muita gente pensa que as touradas são um espetáculo da nobreza. Mas isto tanto é da nobreza como é do povo, tanto de direitas como de esquerdas, é igual. Não diferencia ninguém. E tem raízes na cultura portuguesa.”
O que Rafael diz, porém, é somente um ponto de partida da complexa história da tauromaquia em Portugal.
Da coroa ao Estado
Desde a sua eclosão enquanto espetáculo no século XII, a tauromaquia tem raízes políticas, o que a torna indissociável do conceito de classe social. Nos seus primórdios, as atividades taurinas eram práticas reservadas “à aristocracia, à nobreza”; começaram por fazer parte de manobras da coroa, “uma dádiva que o poderoso, prestigiado, oferecia à população” em dias de celebração, conta Fernando Ampudia de Haro, 46 anos, investigador do Instituto de História Contemporânea.
De acordo com o autor do livro “O Processo Civilizacional da Tourada: Guerreiros, Cortesãos e Bárbaros?” (Imprensa de História Contemporânea, 2020), batizados, casamentos ou coroações davam azo a “um ou vários dias de touradas”. Alguns registos dos séculos XV e XVI indicam que houve alanceamento de touros no casamento de D. Duarte em Coimbra e no de sua filha, D. Joana, em Évora; no nascimento do príncipe herdeiro D. Afonso; e no casamento da infanta D. Leonor com Frederico III, imperador do Sacro-Império Romano-Germânico. D. Sebastião, dois meses antes de se evaporar em Alcácer-Quibir, ainda ofereceu uma festa de touros à nobreza do reino a 15 de junho de 1578, em Xabregas.
Finda a monarquia no século XX, o espetáculo manteve ainda assim um cunho “régio”, em particular durante o Estado Novo, quando era feito pela elite e para entretenimento do povo, sem mais formas de acesso à cultura, contextualiza Paula Sequeiros, socióloga e investigadora do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.
Inspirando-se no que acontecia em Espanha, onde Franco procurava cimentar o “espanholismo” de forma a “estancar e eliminar o autonomismo”, Salazar instrumentalizou a tauromaquia, criou a “tourada à portuguesa” - sem morte do animal na arena, com pega de forcados no final -, para disseminar a ideia de “portugalidade”, do que era “ser português”, conta a investigadora. Na prática: o ideal platónico dos brandos costumes, da violência opaca, aplicada à tauromaquia.
A 23 de outubro de 1949, o generalíssimo e o ditador de Santa Comba Dão estiveram lado a lado no Campo Pequeno para assistir a uma tourada, acontecimento que mereceu destaque na primeira página do Diário de Notícias do dia seguinte: “Foi um deslumbrante espetáculo. E deu motivo a constantes e calorosas aclamações ao caudilho. Salazar recebeu uma enorme ovação.”
Mesmo em 2021, continua a existir um “toque aristocrático” na tourada (da parte de quem a faz), dado grande parte dos espetáculos serem protagonizados por cavaleiros, aponta Fernando Ampudia de Haro. “Ser cavaleiro, ter cavalos, manter cavalos, requer um capital social e económico que não está ao dispor de grande parte da população.”
E a relação umbilical com o poder político persiste. Em democracia, afinal, cabe ao Estado controlar o “uso da violência” entre indivíduos, mas também para com os animais. De acordo com o historiador, o Governo de António Costa tem uma posição “ambivalente” ou uma “conduta envergonhada” para com as touradas: com uma mão dá, com a outra tira.
“Tanto é capaz de declarar a tourada bem de interesse cultural” como de a “penalizar fiscalmente”, diz, numa alusão à decisão tomada em 2018 por Graça Fonseca, ministra da Cultura, de excluir a tauromaquia da redução do IVA de 13% para 6% dos espetáculos culturais, por uma questão de “civilização”.
Manifestações e preparações
Três cavalos trotam no meio de um cruzamento relvado, a menos de 100 metros da praça das Caldas, o que faz alguns carros abrandar; os cavaleiros preparam os equídeos, desentorpecem-lhes os músculos para a corrida que irá começar em menos de duas horas. Dos passeios, muitas pessoas observam a cena algo inusitada.
Ao contrário do que é hábito no Campo Pequeno, em Lisboa, não há manifestantes à vista; apenas um homem, que conduz um Citroën Saxo vermelho já antigo, passa e grita: “Animais.” Os cavaleiros retorquem e pedem “respeito”.
Segundo Rafael Vilhais, os “animistas”, os “antis”, estão nas grandes cidades, e na capital “vivem perto do Campo Pequeno”. Nas entrelinhas, a mensagem que tenta passar é esta: são uma elite que mora longe do habitat natural dos animais. “Grande parte deles vivem ali e é mais fácil. Normalmente, não se desviam a outros sítios para vir protestar.”
Aos olhos do empresário, os ativistas cometem um lapso grave no seu raciocínio: “sobrepõem o valor” dos animais ao dos seres humanos. “Há muitos animalistas que, como se costuma dizer, qualquer dia andam com o filho à trela e trazem o cão ao colo. Essas coisas é que não. Respeitar os animais, dar-lhes carinho, tratá-los bem, enquanto cá estão. Mas quer dizer, tudo dentro das normas.”
Apesar de existir um grupo antitouradas nas Caldas da Rainha, neste dia ninguém protesta. Mas fosse a corrida em Lisboa e seria “matemático”, confirma Joaquim Carvalho. O homem de 67 anos está sozinho; este ano, já assistiu a uma “carrada” de corridas. “Onde quer que haja, geralmente estou lá. Há pessoas que gostam de ver futebol, eu gosto de ver tourada.” Relativamente aos ativistas, diz apenas: “Acho que a gente tem de respeitar a ideia deles e eles também devem respeitar a nossa.”
O reformado tem um sorriso jovial e segue a carreira de cavaleiros portugueses, da mesma forma que alguns adeptos acompanham as façanhas de Cristiano Ronaldo ou Lionel Messi. O seu favorito de sempre, diz sem hesitação, foi Joaquim Bastinhas (falecido em 2018). Por estes dias, acompanha o filho do cavaleiro, Marcos Bastinhas, “para onde quer que vá”.
Joaquim fala com entusiasmo sobre a “sabedoria” dos cavaleiros “a lidar com os animais”; é um fã com a expectativa de que o espetáculo pelo qual aguarda seja “bom”. E afirma: “Acho que [a tourada] é uma arte.”
Sem surpresa, a socióloga Paula Sequeiros tem opinião diametralmente oposta: a tourada “é pior que uma forma de violência. É uma forma de violência transformada em espetáculo”. Nas últimas duas décadas, a ativista esteve na linha da frente de muitas manifestações. Uma em particular ficou-lhe na memória: a de 19 de agosto de 2012, uma das últimas corridas de touros em Viana do Castelo.
À revelia da liderança do município, que em 2009 decidiu abolir espetáculos na praça local, a ProToiro – Federação Portuguesa de Tauromaquia organizou no município um evento numa arena móvel, num terreno nos arredores da cidade. A praça tinha o nome de Ricardo Chibanga, toureiro falecido em 2019, natural de Moçambique, o que deixou a ativista “chocada”. Nos anos finais do Estado Novo, Chibanga foi utilizado como “símbolo da cultura portuguesa que ia além de Portugal”, um ativo da narrativa colonialista, lembra a socióloga.
As manifestações anticorrida foram tensas. A certo momento, um carro tentou “galgar o passeio para tentar atropelar Rita Silva”, líder da associação Animal. “Ela própria resolveu não apresentar queixa para não empolar mais a situação.” Noutro momento, apareceram homens de bandarilhas nas mãos, “como se fossem recuerdos da tourada”. “Alguns começaram a retirar as pontas de esponja. E a avançar com elas no ar. A intenção era visível. Aí tivemos de chamar a polícia para intervir.”
Para controlar os ânimos, os agentes da PSP presentes sacaram de tasers, bastões. E levaram cães. “Francamente, devem ter julgado que, por sermos defensores dos animais, não íamos fazer nada por estarem ali com cães”, ironiza Paula Sequeiros.
Há 12 anos, Defensor Moura, antigo deputado socialista e ex-candidato presidencial, era presidente da câmara de Viana do Castelo. Na época, foi o responsável pela aquisição municipal da praça de touros a um grupo privado, interditando assim a atividade tauromáquica naquele espaço. “Tive sempre muito apoio da população. A nível local, não houve praticamente contestação. A contestação vinha de fora”, recorda.
Fê-lo por dois motivos: evitar “atrocidades” contra os animais e Viana do Castelo não ter cultura tauromáquica. “Era apenas o palco onde profissionais de fora, animais de fora e aficionados de fora vinham praticar aquela atrocidade.”
Em abril deste ano, a praça de touros de Viana do Castelo foi demolida “tranquilamente”; no seu lugar, “estão agora a construir um pavilhão desportivo”, conta Defensor Moura.
“Tranquilamente” quiçá seja um exagero: passada mais de uma década, a disputa entre a autarquia e a ProToiro continua acesa. Ainda a 30 de setembro, quatro dias depois das eleições autárquicas, a Federação enviou uma queixa ao Ministério Público, pedindo a perda de mandato de Luís Nobre, autarca socialista recém-eleito, alegando que o edifício fora demolido de forma ilegal.
Animais mais que outros
Faltam poucos minutos para as 16h30; o sol já não está a pique, mas ainda faz calor, demasiado calor para o mês de outubro. Perto de um terço dos três mil lugares parecem ocupados. Para um espetáculo de final de temporada, a lotação não é má. Por regra, a data mais “forte” da praça de touros das Caldas da Rainha, inaugurada em 1883, é 15 de agosto – momento em que muitos emigrantes estão de férias na cidade e veranistas das praias do Oeste circulam nos arredores.
O uso de máscara é obrigatório, mas alguns espetadores, sempre que podem, puxam-na para debaixo do queixo ou guardam-na no bolso; volta e meia, alguém da organização é obrigado a relembrar as regras da Direção-Geral de Saúde. Foi apenas a 1 de outubro – ou seja, há dez dias - que a capacidade de espetáculos culturais voltou a ser de 100%; os autocolantes de espaçamento entre lugares, aos quais já não é preciso obedecer, continuam colados nas bancadas de pedra.
Devido à pandemia, 2020 foi um péssimo ano para a tauromaquia: realizaram-se somente 42 corridas (menos 132 que no ano anterior), eventos que acolheram perto de 66 398 espetadores (menos 317 549 que em 2019), segundo dados da Inspeção-Geral de Atividades Culturais (IGAC).
Por comparação, 2021 está a ser um ano “muito mais positivo”, prova da “resiliência” do setor, garante Hélder Milheiro, secretário-geral da ProToiro. “A temporada ainda não terminou, mas vai terminar em redor dos 130 [eventos]. Ou seja, tivemos um crescimento de mais de 200%.” A expetativa da ProToiro é em 2022 voltar a atingir-se a média de 170 espetáculos anuais.
Lurdes Coelho está sentada na primeira fila; veio de Lisboa para assistir ao que, segundo as suas contas, será a sua vigésima corrida da temporada. Há três décadas que tem esta afición. Lembra-se, por isso, de quando Cascais ainda tinha uma praça (demolida em 2005, substituída por um projeto de habitação de luxo em 2018) ou quando o Alentejo ainda não recebia tantos eventos “como hoje”. Pode-se dizer que já viu de tudo: “Já vi toureiros morrerem na praça, forcados morrerem na praça.”
Quando, em agosto deste ano, o cavaleiro António Ribeiro Telles foi colhido por um touro e caiu do cavalo a tentar cravar um “ferro curto” na praça de Touros de Reguengos de Monsaraz, Lurdes estava presente. Quando o forcado Nuno “Mata”, em 2012, foi abalroado e ficou tetraplégico, numa corrida no Campo Pequeno, também. Apesar de se sentir “aborrecida” e “triste” com estes episódios, nunca ganhou receio de assistir ao espetáculo tauromáquico. “Tanto que estou aqui”, diz.
As touradas são “uma tradição muito grande, tal qual o fado”. E o que a move, acima de tudo, é a “beleza dos cavalos”. Quando tenta descrever o que vê na arena, faltam-lhe as palavras: “É indescritível. Só quem sente mesmo. Obviamente tenho alguns toureiros de eleição, mas os cavalos são uma coisa que me fascina.”
João Gonçalves, 41 anos, partilha o mesmo entusiasmo: o vínculo entre cavalo e cavaleiro, “uma arte tremenda”, fruto de “anos e anos de trabalho”. O sócio-gerente de uma loja de eletrodomésticos veste uma T-shirt com a ilustração de um touro só porque sim. “Apoio a causa, mas não faço parte de nenhum grupo.” Com o pai e dois amigos, veio da Guarda, quase três horas de viagem, para assistir à corrida das Caldas.
Desde “muito pequenino”, João foi habituado a ir “às corridas, touradas, garraiadas e capeias”. “Na cidade mais alta de Portugal”, a tradição tauromáquica é forte, devido a vários fatores. “Ali estamos rodeados por touros e cavalos, um pouco por todo o lado. Nesse sentido, não nos faltam atividades.”
Por um lado, há a proximidade a Espanha: localidades como Salamanca ou Cidade Rodrigo têm muitas corridas. Por outro, no concelho do Sabugal (que pertence ao distrito da Guarda), existe a tradição das capeias – em que os populares, empunhando um forcão de madeira, se batem com os touros - e dos encerros – “ir buscar os toiros ao campo com os cavalos e trazê-los para a praça”.
“Quem gosta de touradas, gosta mesmo. Mostra e vai”, garante.
Touro como nós
Primeira lide. Luís Rouxinol na arena, o público está animado. O cavaleiro já cravou bandarilhas – varas de madeira com uma ponta de aço de 6 cm e um arpão de 16 mm – no dorso do touro de todas as maneiras e feitios; o cavalo que monta tem na crina um enfeite com lantejoulas, a condizer com a indumentária do montador. O equídeo trota aos ziguezagues, ensaia como que alguns passos de Lindy Hop, escapa às investidas do touro com elegância, agilidade, e sem aparente esforço.
Mesmo à distância, é visível um corrimento de sangue no costado do touro. O animal de 520 quilos está ofegante, tem a língua de fora, enrola-a – tal como algumas pessoas em pleno AVC, o que faz sentido: as bandarilhas podem ferir os ramos nervosos dorsais da medula espinal, refere o biólogo Luís M. Vicente no livro “Touro como Nós” (Pergaminho, 2021). (Alguns estudos apontam também para a recorrência de lesões musculares, devido ao esforço físico durante a lide; as investidas sucessivas têm um custo, não são uma pulsão natural do touro.)
O animal já mal tenta ripostar. Mas, ainda antes de o grupo de forcados amadores do Ribatejo entrar na arena para a pega, Rouxinol vai buscar uma última bandarilha curta, também conhecida como de palmo; quer terminar a lide com uma proeza. Quando a espeta, é o culminar: uma onda de aplausos.
Muitos críticos das touradas costumam dizer que quem assiste a touradas “gosta de ver morte, de ver sangue, do aspeto mais tenebroso da vida”. O investigador Fernando Ampudia de Haro vê nessa interpretação uma visão “bastante redutora”.
O que cada aficionado vê é uma experiência subjetiva: há quem contemple uma metáfora para a vida, uma mostra de valentia ou até uma dança e forma de arte. “Estão a ver outra coisa [além de] um espetáculo de sangue. Podemos ou não concordar com a sua imaginação, mas certamente não estão a ver o dizem os detratores”, explica.
O que se vê nem sempre se sente. É possível, por isso, assistir regularmente a touradas e ainda assim não reparar no sofrimento animal.
Insuspeita de simpatias com a tauromaquia, a deputada não-inscrita Cristina Rodrigues recorda-se de, em criança, o avô ver touradas na televisão e dos comentários que fazia. “Eram sempre relativamente aos cavalos. Que adorava ver os cavalos, que eram animais lindíssimos. Ou seja, acho que mesmo nele não era pela tourada em si, era mais pela beleza dos cavalos”, conta.
A cegueira seletiva relativamente à dor nos animais não é, diga-se, propriamente um fenónemo recente. Em “Porquê Olhar os Animais?” (Antígona, 2020), o filósofo e escritor John Berger aponta um dualismo existencial na forma como os humanos lidam com animais desde o princípio dos tempos: “Foram subjugados e adorados, criados e sacrificados.” No caso particular da tourada, há uma evidente dualidade na empatia concedida ao touro e ao cavalo.
Para isso, há justificação: enquanto o legado histórico do cavalo fala de um “animal nobre”, “animal de batalhas”, “um herói mítico”, o Bos taurus “é muito mais distante para a maioria da população que o cão e o gato”, conta Luís M. Vicente. Cristina Rodrigues assume a mesma dificuldade: “É muito mais fácil erigir mais proteção, mais normas de bem-estar, fazer alterações legislativas, quando diz respeito a animais de companhia, do que a outros animais, nomeadamente os usados com fins pecuários.” O cavalo, apesar de legalmente considerado animal de pecuária, tal como o touro, ocupa um lugar “intermédio, especial”.
Nos últimos três mil anos, não faltam exemplos de ocasiões em que os cavalos foram alvos de antropomorfismo. Por exemplo: Bucéfalo, o cavalo de Alexandre, o Grande, tem direito a várias narrativas sobre a sua vida. Num dos relatos, conta-se que o equídeo era indomável e nasceu no mesmo dia que o futuro conquistador macedónio – o temperamento do animal a fazer de espelho ao do homem, e vice-versa. (Quando faleceu, durante a campanha de Alexandre na Índia, o imperador homenageou-o com a fundação da cidade de Bucéfala, na planície de Taxila, o atual Paquistão.)
Subsiste também a ideia de que o cavalo tem mesmo “alegria” em participar em touradas e não sofre. “O que não é verdade”, denuncia o biólogo. “Para o leigo, é muito difícil diagnosticar o sofrimento nesta espécie animal.”
Os cavalos vivem em grupos e hierarquias sociais rígidas; se um mostra “debilidade ou fraqueza”, rapidamente é sobrepujado por outros cavalos do grupo “e o seu lugar na hierarquia desce muito rapidamente, o que não lhe interessa nada em termos reprodutivos”. Por outras palavras: os cavalos são bons a esconder a dor e desconforto. “Darwin diria que essa espécie se encarregou de encontrar mecanismos para mascarar o sofrimento”, explica o biólogo.
O touro, por sua vez, é muito menos dado a narrativas épicas e admiração. Se é verdade que em 1940, no livro de contos “Bichos”, Miguel Torga fez o exercício de imaginar a experiência de Miura, um touro morto em arena, isso é fruto de uma sensibilidade moderna. (Em 2017, a produtora Blue Sky adaptou a história infantil “Ferdinando, o touro”, do escritor norte-americano Munro Leaf, ao cinema. O enredo: Ferdinando é um touro doméstico que se perde da família e cujo principal medo é ser obrigado a participar em touradas.)
Contra si, o Bos tauros tem séculos de tradições, como o sacrifício de animais. “Os cordeiros são um clássico de várias religiões, e isso cria de facto uma certa imunidade face ao sofrimento do outro e uma dificuldade de empatia. Mas que o sofrimento existe, existe”, lembra Luís M. Vicente. A situação do touro é a mesma, ipsis verbis.
O segundo ataque
Intervalo. Um jipe entra dentro da arena com uma grelha para alisar o piso, revolto após três lides. Durante a pausa, que só se estende por alguns minutos, muitos espetadores – sobretudo os mais jovens - vão buscar algo para beber ou trincar.
Sentada na primeira fila, uma mulher dá o biberão a um bebé de colo. Um pouco atrás, dois homens, dois amigos, que trouxeram os filhos – todos menores – à corrida, dão-lhes dinheiro para comprarem coca-colas e pães com chouriço. “Vai e traz-me um fino também”, pede um dos pais. Uma das crianças, que não aparenta ter mais de cinco anos, mas parece já conhecer parte dinâmica da corrida, pergunta: “Quando usam os [ferros] pequenos?”
Espalhadas pelas bancadas, há algumas parelhas de adolescentes. Durante a conversa na manhã, Rafael Vilhais já alertara para esse facto. “Muitas vezes vêm com os forcados, vão ao campo, vêm o habitat natural dos touros. Amigos que vão com amigos. E depois isto é um contágio, cria-se afición.” Em entrevista à Renascença, Hélder Milheiro, secretário-geral da ProToiro, expressa a mesma ideia: “Podemos ter corridas de touros com um terço de praça de jovens abaixo dos 18 anos. Isto é um valor extremamente elevado.
A corrida das Caldas da Rainha decorre a 10 de outubro. Quadro dias depois, será notícia que o Governo aprovou em Conselho de Ministros a proibição de menores de 16 anos assistirem a touradas; até então o limite era de 12 anos. (O diploma espera ainda a aprovação de Marcelo Rebelo de Sousa.) De acordo com o executivo de António Costa, a medida, que já constava do programa do Governo de 2019, surge na sequência de um relatório do Comité dos Direitos da Criança das Nações Unidas. (Na realidade, o documento das Nações Unidas defende que deve ser estabelecida a idade mínima de 18 anos, não 16.)
Em 2016, uma petição apresentada no Parlamento por Rita Silva, da Associação Animal, já propusera a proibição de “trabalho e assistência por menores em espetáculos tauromáquicos”. Na época, um parecer da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens defendeu a manutenção da fasquia dos 12 anos, tendo por base o decreto-lei n.º 23/2014; o Governo não mudou nada.
O que se modificou então nos últimos cinco anos? O Governo minoritário de António Costa “entrou num ciclo negativo”, ficou refém do recém-chegado Partido das Pessoas, Animais e Natureza (PAN), que procura tirar “dividendos de negociatas parlamentares”, diz o representante da ProToiro. “Fora do Orçamento [do Estado], a capacidade de ação do PAN tem sido praticamente nula. Em sede de Orçamento, porém, existe sempre uma brecha que é ali explorada. E o Governo PS esteve sempre aberto a fazer esse tipo de abordagem.”
Inês Sousa Real, deputada e presidente do PAN, disputa a interpretação negativa: o seu partido trouxe para o Parlamento uma agenda que estava “timidamente” representada até agora. “Se houvesse uma conjuntura política favorável, estaríamos aqui a falar de abolir a atividade tauromáquica, não de, passo a passo, aplicar restrições”, garante.
Em 2021, a tauromaquia em Portugal sofreu dois golpes: primeiro, o fim da transmissão de corridas na RTP, e há cerca de um mês, a interdição na entrada de jovens menores de 16 anos. Dois “negócios políticos” entre PAN e Governo, acusa Hélder Milheiro. Duas vitórias, dois passos no sentido da abolição das corridas, na perspetiva de Inês Sousa Real, presidente do PAN.
E não tivesse o Orçamento do Estado para 2022 sido chumbado, haveria outros dois passos a dar negociados com o Governo, revela Inês Sousa Real: um levantamento de todos os financiamentos públicos à tauromaquia, "para de alguma forma podermos depois perceber de onde estão a provir com vista à sua eliminação", assim como o fim das corridas de touros em praças amovíveis.
“Tendo em conta que não há uma capacidade de cumprimento do regulamento do espetáculo tauromáquico, entendemos que elas já não devem existir e que a atividade deve ser limitada às praças fixas, enquanto não é abolida", conta.
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Em maio, dando como justificação o novo contrato de concessão do serviço público de rádio e TV, a falta de interesse da audiência, a direção de informação da RTP determinou o fim da emissão de touradas.
Para Hélder Milheiro, o que aconteceu foi “um arranjo e acordo entre parceiros” sem deixar impressões digitais do Governo à mostra. “O diretor de programas não insere corridas e tudo fica normalizado. Não há nenhum problema, não há nenhuma proibição formal aparentemente. Como é óbvio, só alguém muito inocente acha que isso aconteceu por acaso”, diz. A ProToiro ainda contestou, mas a decisão editorial estava tomada.
Questionada sobre o porquê de o Governo não ter avançado com uma interdição oficial, Inês Sousa Real diz que apenas o executivo “poderá assumir porque o fez ou porque não o fez”. A deputada do PAN justifica a mudança com o “elevado número” de queixas que o provedor do espetador da RTP recebia todos os anos. E afirma: “A transmissão constitui uma forma de apoio indireto, tendo em conta que estávamos a mobilizar meios públicos” e os “valores” difundidos.
Relativamente à proibição de menores de 16 anos – não acompanhados – assistirem a corridas de touros, Inês diz que esta tem como objetivo diminuir a “exposição à violência”. Milheiro vê uma intenção mais calculista: “Criar um corte geracional, impedir que exista uma transmissão geracional da relação com estes espetáculos culturais.”
O representante da ProToiro acusa o Governo e o PAN de “instrumentalizarem os direitos das crianças” e defende que a tauromaquia “não transmite qualquer tipo de violência que perturbe os menores”. Se tal acontecesse, argumenta, já teriam sido identificadas “marcas”, sintomas, doenças, na população, dado que “há touradas há quase tantos séculos como existe Portugal”.
Para sustentar a sua tese, o representante da ProToiro evoca um estudo espanhol, de 1999, encomendado pela Comissão de Defesa de Menores de Madrid (atual Instituto do Menor e da Família), sobre as “possíveis repercussões psicológicas das corridas de touros em crianças”.
O estudo em causa efetivamente atesta que “não há bases para sustentar cientificamente uma medida como a proibição de menores de 14 anos nas praças de touros”. Mas nas conclusões deixa uma ressalva: “Não se pode ignorar que as crianças que assistem a corridas de touros, ao serem levadas por adultos que pagam por elas, constituem uma amostra autosselecionada procedente de um ambiente social em que as corridas estão fortemente enraizadas.”
Em 2016, a Ordem dos Psicólogos Portugueses elaborou, a pedido do PAN, um parecer onde avaliava o “Impacto Psicológico da Exposição das Crianças aos Eventos Tauromáquicos”. Aí, lê-se uma opinião contrária à do estudo espanhol: “Em termos gerais, a reação das crianças à observação de um animal a sangrar devido a golpes infligidos pelo homem é, em primeiro lugar, de rejeição, desconforto e medo.”
À Renascença, a deputada do PAN alerta ainda para outro problema relacionado com menores e tauromaquia: ainda a 18 de setembro, houve uma corrida de touros na Azambuja na qual “menores de 16 participaram diretamente no espetáculo”, o que é proibido por lei; agora, o PAN irá fazer queixa. “Há aqui uma fiscalização que cabe ao Estado cumprir, mas não está a ser feito.”
Segundo Inês Sousa Real, o Governo “não pode ignorar” que o inspetor-geral das Atividades Culturais, Luís Silveira Botelho, “atropela a própria legislação”, “incentiva ao incumprimento da legislação, e permite que se realizem espetáculos ilegais sem sequer promover a sua fiscalização ou sem promover depois os processos por contraordenação”.
Luís Botelho “há muito que já devia ter sido demitido do seu cargo, porque claramente não cumpre os seus deveres de idoneidade e equidistância, para os quais está nomeado naquelas funções”, atira.
Confiança e valores
Entra na arena o quarto touro da tarde; no dorso, tem o número 263 desenhado, pesa 630 quilos - o maior animal a ser lidado durante toda a corrida. Mais uma vez, Luís Rouxinol na arena.
Quanto mais velho e mais pesado é um touro, mais “sentido” tem, costumam dizer os aficionados. Um animal com “sentido” é aquele capaz de antecipar movimentos dos cavaleiros, atalhar caminho nas investidas e mudar de direção de surpresa. O animal 263 parece ter algum “sentido”. Ao mesmo tempo, também é “reservado”: não arranca para o cavalo quando é chamado pelo cavaleiro, “não se entrega”, circula muito pelo meio da praça. Para um forcado com alguns anos de experiência, são sinais de que a pega poderá ser complicada.
Lourenço Palha não sabe ainda, mas será o escolhido para forcado de cara – o primeiro da linha dos oito que entram em arena para a pega; a decisão será tomada pelo cabo, o líder do Grupo de Forcados Amadores das Caldas da Rainha (GFACR). Para já, o jovem de 29 anos estuda o comportamento do touro: “Se, quando investe no capote, mete a cabeça muito para baixo ou se a cabeça fica mais alta. Isso quer dizer que, diante do forcado, poderá vir com a cabeça mais baixinha e que terei de me dobrar para conseguir encaixar na cabeça dele.”
O engenheiro agrónomo, que apenas entrou para os forcados com 20 anos – “tarde”, por comparação com outros companheiros -, provém do que se pode chamar dinastia tauromáquica: desde o bisavô que a família, proprietária de uma ganadaria, está ligada às touradas; o cavaleiro Francisco Palha é seu primo em segundo grau, tal como outros ilustres de apelido Ribeiro Telles – filhos de uma irmã do avô.
Muitos dos camaradas de Lourenço do GFACR têm ainda rostos pubescentes; enquanto a lide decorre, fumam cigarros em catadupa, vão trocando entre si palavras de motivação, safanões de camaradagem, como que para sacudir o medo. No outro grupo de forcados a participar na corrida - do Ribatejo - são visivelmente mais velhos: mais encorpados, barbas mais cerradas.
“Medo todos temos”, admite Lourenço. Mas medo é diferente de pânico; com o tempo, o medo pode ser dominado. É por isso que as sessões de treino com vacas mansas, no início de cada temporada, são importantes. “Viver no meio disto [cultura tauromáquica, animais] ajuda”, também.
Da bancada, Nuno Vinhais, 40 anos, assiste às fainas de Luís Rouxinol. O gerente comercial foi, entre 1999 e 2014, forcado no grupo das Caldas e chegou mesmo a ocupar a posição de cabo.
Uma pega é uma experiência de “adrenalina”, de “superação individual do ser humano num confronto com um animal”, mas ser forcado é mais do que isso, explica. “É uma escola de valores: verdade, espírito de sacrifício, entrega, solidariedade. De sentirmos que temos de dar a vida por um amigo.”
Nos treinos, é comum que a primeira reação dos novatos, numa simulação de pega com vacas, seja olhar para trás e ver se há alguém na retaguarda. “Isso não se faz. Nós corrigimos de imediato. O forcado da cara quando vai para a pega não tem de olhar para trás, tem de confiar. Ele sabe que os amigos vão lá estar. É assim que nos sentimos. E não há necessidade sequer de olhar para trás, porque sabemos que os sete que estão atrás vão lá estar para nos ajudar”, conta Nuno.
Cimentada a confiança, “gera-se uma família. Não só no sentido figurativo, mas depois passa mesmo a ser”: os padrinhos dos três filhos de Nuno foram companheiros dos forcados.
Um estudo científico de 2018, publicado na Revista de Psicopatología y Psicología Clínica, aponta que jovens que passam por grupos tauromáquicos – forcados, inclusive - durante a adolescência demonstram maior abertura a novas experiências, capacidade de resolução de problemas e resiliência emocional.
Todavia, Paula Sequeiros, socióloga e investigadora do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, não se consegue abstrair da dimensão “patriarcal” de todo o espetáculo: “O homem branco, privilegiado, que é muito viril e exibe essa virilidade em público. Que faz correr sangue, uma forma de dominação.”
Na arena, tudo igual: o touro 263 é sem dúvida “reservado”; Luís Rouxinol esforça-se por lhe captar a atenção, mas sem grande sucesso. “Não se entregou à lide. Um touro bravo é um touro que vai à luta. Aquele touro levava um ferro, mas não saía muito dali, não se entregava muito. Estava ali parado mais a olhar”, comentará, semanas depois da corrida, Lourenço Palha, em entrevista à Renascença.
Entretanto, chega o momento em que um somatório de oito corpos tenta amparar e controlar a impulsão de um animal com mais de 600 quilos. O risco está lá, existe, o antigo forcado Nuno Vinhais não o nega. “Não nos magoamos em todas as corridas, não vamos para a guerra”, diz, comparando as lesões dos forcados às de atletas profissionais. “Faz parte.”
O grupo de forcados das Caldas da Rainha salta para dentro da praça, mas volta a sair, pois o touro investe logo na sua direção. Passados alguns segundos, repete-se a coreografia, mas, desta vez, forma-se a linha. À cabeça está Lourenço Palha.
Passo a passo, avança na direção do animal - até que este ataca. Diante do forcado de cara, contudo, o touro abranda um pouco e vira ligeiramente de direção. “A pega não foi bem concretizada, um bocado por culpa minha. Comecei a recuar muito cedo e o touro passou-me ali ao lado e depois tentei agarrar-me a ele à mesma.”
O corpo de Lourenço e a cabeça do touro não encaixam; o animal sacode-se e o corpo do forcado é projetado no ar, como uma marioneta cujos fios são puxados do céu. Com os cornos, o touro dá-lhe uma estocada na cabeça.
Quanto aterra no chão, Lourenço está inconsciente. “Em calão, dizemos: ‘ficamos a dormir’”, conta Nuno Vinhais.
Os bombeiros pegam logo numa maca, os companheiros de Lourenço percebem que há algo de errado e formam um círculo à sua volta. Os toureiros apeados entram dentro da arena para, com os seus capotes, distraírem o animal.
“Lembro-me de o toiro se meter ao meu lado e eu o tentar agarrar. Recordo-me de pensar: bolas, comecei a recuar cedo demais. Agora pode correr bem ou correr mal. Depois, só me lembro de acordar no hospital”, conta Lourenço. Teve sorte: “só” fraturou o maxilar; cerca de dez dias depois, está “praticamente bom”.
Em menos de dois minutos, o forcado é retirado da praça. E o espetáculo continua. A segunda tentativa de pega, em todo o caso, volta a falhar; dois forcados sofrem novamente investidas do animal. Só à terceira é de vez.
Visivelmente consternado com o sucedido a Lourenço, um dos forcados reza e benze-se.
Tradição e proibição?
Quinto touro na arena. João Gonçalves e Joaquim Carvalho, sentados a muitas filas de distância, estão atentos a cada movimento e técnica do cavaleiro Filipe Gonçalves.
Pelas expressões faciais que fazem, os dois aficionados parecem estar a desfrutar da tradição com que “cresceram”, mas que, porventura, poderá um dia vir a ser banida. Ambos expressam essa ideia, têm noção de que a tradição tauromáquica está a ser posta em causa e enfrenta cada vez mais resistência.
Na realidade, nos últimos cinco séculos, as touradas já foram banidas por quatro vezes em Portugal: em 1567, perturbado com a violência dos espetáculos taurinos, o Papa Pio V publicou a bula “Salute Gregis Dominici”. Mas passados oito anos, por pressão do Rei de Espanha, Gregório XIII, sucessor de Pio V, recuou. Em 1809, a proibição veio do Príncipe Regente D. João. Depois, em 1836, foi Passos Manuel que promulgou um decreto proibindo as touradas em todo o país (Diário do Governo n.º 229, de 1836), “considerando que as corridas de touros são um divertimento bárbaro e impróprio de Nações civilizadas”. E a última proibição foi já no século XX: em 1919, por via do Decreto n.º 5650 de 10 de maio.
“Acha que isto vai acabar?”, perguntou Joaquim Carvalho, durante a conversa com a Renascença. João Gonçalves expôs a dúvida de outra forma: “Tudo faz sentido quando há pessoas. Se houver pessoas que queiram, que gostem. Quando não houver pessoas, deixa de fazer sentido. Mas enquanto houver pessoas que demonstrem esse gosto e que vão, que estão e que apoiam, faz sentido continuar.”
O argumento “de sempre” e “para sempre” é fraco apoio para justificar a continuação das touradas: enquanto tradição, a tauromaquia é um fenómeno “dinâmico”, que foi sofrendo alterações progressivas ao longo do tempo, lembra o historiador Fernando Ampudia de Haro.
No decorrer dos oito últimos séculos, as touradas foram-se tornando cada vez mais um espetáculo estético. Em Portugal, isso levou à eliminação/desaparecimento da morte do touro na lide – prática que apenas subsiste hoje em Barrancos. Os padrões de sensibilidade foram evoluindo, “a violência começou a ser compartimentalizada”, “os elementos visuais mais agressivos desaparecem”. “Não é que não esteja lá, mas o espetador pode perceber como uma dança, ou um bailado, mas não estritamente como um ataque físico entre um animal e uma pessoa”, explica o historiador.
Em 1925, o cavaleiro Vitorino Fróis, numa entrevista à Gazeta da Caldas, confessou-se chocado relativamente às touradas de morte em Espanha nas quais os touros não eram embolados: “Uma brutalidade. Uma verdadeira selvageria. É impróprio de povo civilizado o espetáculo bárbaro dos cavalos mortos, de tripas ao sol, em dolorosa agonia.”
“Mesmo os defensores das touradas teriam muitas dificuldades, hoje, animicamente, para suportar uma tourada do século XIV”, diz Fernando Ampudia de Haro.
Paula Sequeiros associa o fim das touradas a um “progresso civilizacional”. “Há uma dimensão cultural [nas touradas], com certeza. Mas as sociedades vão mudando. O costume e a tradição estão sempre a fazer-se e a desfazer-se”, acrescenta. A socióloga lamenta que, aos olhos da lei, a tourada ainda seja considerada “expressão da cultura” e que se invoque o argumento da liberdade individual (de assistir às touradas) perante uma “barreira ética”.
Todavia, segundo a deputada não-inscrita Cristina Rodrigues, talvez possa existir uma base legal e jurídica para as corridas de touros serem banidas. A Lei de Proteção aos Animais portuguesa dita expressamente no artigo 1.º “a proibição de todas as violências injustificas contra animais”. No artigo 3.º, porém, acautela uma exceção para as touradas. Segundo a deputada, este paradoxo é prova de algo: “quando o legislador fez questão de excecionar as touradas” é porque “reconhece que há maus-tratos ali”.
Ainda assim, a aberta para a interdição, aponta, está noutro lado: a alteração do estatuto jurídico dos animais feita em 2017, que fez com que, no Código Civil, os animais deixassem de ser vistos como coisas. “Quando nós temos uma lei que diz que todos os animais são seres sensíveis e são merecedores de proteção, não criando esta norma apenas para os animais de companhia, os touros estão aqui também contemplados”, diz.
No entendimento do professor de Direito e Bioética Fernando Araújo, pode mesmo haver uma base legal para se proibirem as touradas. Numa formação do Centro de Estudos Judiciários, em 2018, o docente defendeu ser “evidente que deixa de ser possível haver espetáculos baseados no sofrimento de seres vivos dotados de sensibilidade”.
Para ocorrer efetivamente uma interdição, “agora teria de haver jurisprudência sobre o assunto. Não creio que tenha havido alguma ação judicial ainda com base neste fundamento para tentar impedir a ocorrência de uma tourada. Mas por acaso até era interessante, acho que merecia a pena tentar-se”, diz Cristina Rodrigues. “As associações de proteção animal teriam maior legitimidade para intentar uma ação deste género”, acrescenta.
Inês Sousa Real partilha a visão de Cristina Rodrigues, mas diz que o ónus da mudança não deve ficar nas associações de defesa animal, antes no Governo. “Se existem dúvidas, do ponto de vista de interpretação da lei, em relação ou não à realização destes espetáculos, então cumpre ao legislador ter a coragem de assumir na Assembleia da República o fim da tauromaquia”, afirma.
PS, politicamente
Em 2016, o PAN – então recém-chegado ao Parlamento e representado unicamente pelo deputado André Silva - apresentou um projeto de lei (180/XIII/1) que visava proibir “a utilização de dinheiros públicos para financiamento direto ou indireto de atividades tauromáquicas”. O diploma foi chumbado com votos contra do PSD, CDS-PP, PCP e PS; BE, PEV e PAN votaram a favor, assim como 11 deputados do PS, e houve ainda sete abstenções (seis do PS, uma do CDS-PP).
Já no ano passado, numa nova legislatura, a deputada não-inscrita Cristina Rodrigues (ex-PAN) voltou a submeter um projeto de lei (468/XIV/1) com o mesmo mote. Mais uma vez, o diploma foi chumbado, desta feita com votos contra do PS, PSD, PCP, CDS-PP e Chega. Mas o número de deputados dissidentes aumentou significativamente: todas as abstenções (4) foram do PS e dos 29 votos a favor (fora BE, PAN, PEV, IL), 28 também foram do PS.
Para Cristina Rodrigues, estas duas votações indicam que “as coisas estão a mudar não só lá fora, mas aqui dentro da Assembleia da República também”; nominal e percentualmente, de uma legislatura para a outra, o número de votos favoráveis à proibição de utilização dinheiros públicos aumentou.
Então, porquê a demora de mudança mais significativa? A perceção da deputada é que a tauromaquia está “sobrerrepresentada” no Parlamento, por comparação com o sentimento geral da população portuguesa.
“Acho que há mais pessoas a defender a tauromaquia aqui dentro, mais deputados, ou que não defendendo, não se querem opor, porque possivelmente são eleitos por distritos onde têm algum tipo de atividade tauromáquica e acabam por permitir que a atividade se mantenha”, explica.
Hélder Milheiro, da ProToiro, subscreve a opinião da deputada não-inscrita e acrescenta uma leitura política. “A esmagadora maioria dos municípios tauromáquicos são governados pelo PS. É bastante clara essa relação e a atitude proativa, respeitadora, de incentivo de acesso à cultura, que é feito nesses municípios”, diz.
Da lista dos 40 municípios com atividade tauromáquica, quase metade (19) são geridos por autarcas do PS, sete pela CDU, seis só do PSD, quatro por coligações PSD/CDS e ainda um por uma coligação PSD/CDS e PPM (Santa Cruz da Graciosa); duas por independentes e uma pelo CDS-PP. (Há mais localidades onde a prática subsiste, mas não são associados.)
Dito isto, quase dois terços dos municípios pró-touradas são governados por partidos de esquerda. Tendo por base o número de eleitores recenseados para as eleições legislativas de 2019 (dados Pordata), estariam em causa 655 253 (600270 PS e 54983 CDU) potenciais votos.
“Obviamente que o PS sabe perfeitamente, nos seus cálculos internos, que o impacto de medidas interditárias teria consequências na sua base eleitoral”, afirma Hélder Milheiro. “Tendo em conta a práxis política, não creio que o PS tenha interesse em ganhar guerras com a tauromaquia e com os cerca de três milhões de pessoas que anualmente se envolvem em espetáculos tauromáquicos”, acrescenta.
O representante da ProToiro lembra um estudo da Eurosondagem, realizado em dezembro de 2019, a pedido da Federação, em que apenas 8,8% dos inquiridos, que declararam identificar-se como militantes do PS, expressaram vontade de proibir as touradas. “É muito claro: no PS, a visão antitaurina é absolutamente minoritária.”
Também Inês Sousa Real vê um distanciamento do Governo em relação à bancada socialista: “É como se houvesse dois PS dentro do PS.” “Ainda existem vários deputados que representam distritos com resquícios desta atividade. Por uma questão eleitoralista, estes deputados posicionam-se ao lado daquilo que alguma forma entendem ser o que lhes possa dar mais votos ou de alguma forma ter um diferente impulso eleitoral”, afirma. A mudança virá, acredita, com o rejuvenescimento do Parlamento nas próximas legislaturas.
Entre 2009 e 2011, no segundo Governo de José Sócrates, Defensor Moura, antigo autarca de Viana do Castelo, foi deputado na Assembleia da República pelo Partido Socialista.
Da parte do PS, garante, nunca sentiu “pressão” por ter uma posição antitouradas. Mas dentro da bancada parlamentar admite ter enfrentado “resistência” e “falta de apoio” nas iniciativas que apontavam nesse sentido. Porquê? “Temor de custos políticos. Estão em Lisboa e em Lisboa está-se mais próximo do Ribatejo e do Alentejo. Aqui em cima não havia esse problema.”
“Como deputado, fiz algumas tentativas junto do grupo parlamentar para que se fizesse uma lei no sentido de proibir as touradas ou pelo menos permitir que cada município, por decisão da assembleia municipal, ou por referendo, decidisse ter ou não touradas”, conta. Como nunca houve “apoio”, Defensor Moura não formalizou nenhum diploma.
Quando o dinheiro salva
Ao contrário do que acontece com outras artes, como o teatro ou cinema, a tauromaquia não tem um programa de apoios do Estado. Mas os municípios onde ainda existe atividade são muitas vezes acusados de oferecer um “balão de oxigénio” financeiro à atividade.
A 1 de setembro de 2021, de acordo com um contrato disponível no Portal Base, a Câmara do Montijo – liderada pelo autarca socialista Nuno Canta - gastou 8130 euros na aquisição de bilhetes para a Corrida de Touros de São Pedro. Já a 24 de setembro, despendeu mais 8130,08 € na aquisição de bilhetes para a VI Corrida de Touros das Tertúlias Montijenses. (Nos últimos cinco anos, gastou mais de 75 mil euros.)
Para Cristina Rodrigues, ofertas deste tipo “são uma forma de ajudar a manter a atividade viva” e não “deviam existir”. Se o Estado retirasse “qualquer apoio público à tauromaquia, ela iria sofrer um declínio mais acentuado. Deixaria de haver esse interesse, do ponto de vista mesmo do lucro, da atividade económica”, afirma.
Confrontado com os gastos do município do Montijo, Hélder Milheiro responde com uma questão: “E quanto gastou nas outras atividades culturais durante o ano?”
Uma consulta ao Portal Base, só por contratos de 2021, indica que, a 9 de setembro, o Montijo gastou 10 650 euros no espetáculo da banda OMIRI, um projeto de reinvenção da música portuguesa; em junho, desembolsou 8 mil euros para o espetáculo “A minha Terra – Uma História sobre o Colonato”, 10 500 na aquisição de serviços para realização dos espetáculos da Companhia Mascarenhas-Martins e ainda perto de 4800 para a pintura de um mural; em abril, foram quase 44 mil euros na aquisição de uma escultura do artista Pedro Moreno Ramos; ou quase 9 mil euros por um concerto do Rui Massena Trio.
O valor gasto pelos municípios portugueses com tauromaquia é “absolutamente diminuto” por comparação com outros espetáculos culturais, defende Hélder Milheiro. “Em Portugal, as atuações musicais são quase pagas na totalidade pelo Estado local, pelos municípios. Fá-lo no seu dever de promoção e acesso à cultura. E bem”, diz.
De acordo com uma análise do Público, entre 2013 e 2017, os municípios portugueses gastaram uma média de 250 mil euros por ano com apoios às touradas. “Falamos de um valor absolutamente ridículo. Mais do que isto gasta um município nas festas locais durante o verão”, diz o representante da ProToiro.
Na impossibilidade de abolir a prática tauromáquica, Inês Sousa Real defende também cortes nos apoios que o Estado – mesmo que por via indireta - vai dando à tauromaquia.
Quando fala em financiamentos, a deputada do PAN refere gastos com a construção ou reconstrução de praças de touros (Azambuja e Estremoz), subsídios municipais a casas de forcados (Vila Franca de Xira), assim como desvio de fundos da política agrícola comum (PAC) da União Europeia para melhoramento genético dos touros de lide.
“Temos alguns exemplos bastantes gritantes.” Em 2012, a Câmara de Estremoz, "que esteve inclusivamente sujeita a resgate financeiro do Estado, com dívidas, na altura, superiores a 3 milhões de euros", investiu 2,5 milhões na requalificação da praça de touros de Estremoz. “Esta obra foi comparticipada em 80% por fundos comunitários, por via do QREN.”
A praça de touros de Azambuja, inaugurada em 2011, “recinto que recebe em média duas touradas por ano”, custou cerca 600 mil euros ao erário público. Há alguns anos, a Câmara de Vila Franca de Xira gastava uma média de 318 mil euros anuais com apoios e subsídios à casa de forcados, casas de toureiro, "que não têm respaldo legislativo", "pelo que não deveria ser canalizado qualquer tipo de fundo" para este tipo de escolas. “Estamos aqui a falar de uma opção política, que claramente não serve os interesses das populações”, afirma.
À Renascença, a deputada do PAN denuncia ainda a utilização de fundos da PAC para apuramento genético dos touros de lide. “Estamos a pagar não só para o apuramento da raça brava de lide, como também para a criação de animais que depois vão ser selecionados para a tauromaquia”, conta.
Na página da internet da Direção-Geral de Alimentação e Veterinária, é possível consultar um documento datado de 2020 e assinado por Graça Mariano, subdiretora da instituição, onde são estabelecidas as regras de acesso aos fundos. “Portanto, há aqui claramente, de forma muito direta por parte da administração central, dinheiro a ser investido para estes animais.”
Inês Sousa Real afirma ainda que é “manifestamente incompreensível” que a carne dos animais toureados receba o selo DOP – De Origem Portuguesa. “Animais que foram torturados numa arena, feridos, que foram sujeitos a transporte em violação das normas comunitárias de bem-estar animal e sanitárias, e que depois entram na cadeia alimentar.” “Há aqui um desvirtuar e desrespeito de todas as normas comunitárias”, ajuíza.
O fim é para continuar
Sexta e última lide da tarde; o sol irá pôr-se em menos de uma hora, alguns dos espetadores já vestiram os casacos. Do lote de touros sorteados durante a manhã, João Salgueiro da Costa deixou o mais pequeno – 500 quilos – para o fim. Porventura pensou que, com um animal com menos “sentido”, poderia terminar a corrida com nota artística. Assim que o touro entra na praça, todavia, é percetível que está desorientado.
Por instantes, fica imobilizado e a ganir, olhando para as bancadas. O público ri-se. O cavaleiro e toureiros apeados tentam captar-lhe a atenção, mas são ignorados. O touro continua a ganir, como um cão fechado à porta de casa, que implora aos donos para entrar. E o público ri-se.
As praças de touros são redondas por um motivo: para não dar pontos de referência visual aos animais, salvo aqueles dentro da arena, e possibilidade de fuga. Cercado e ante uma agressão, o sistema nervoso dos touros – como o dos seres humanos – tem uma forma simples de responder. “Ou a fuga ou a luta. Existe uma terceira via em situações muito específicas, mas com consequências muito graves para o próprio animal, que é o ficar quieto. Não reagir. Isso às vezes acontece”, conta o biólogo Luís M. Vicente.
Sem escape, os touros adotam então o que o biólogo chama de “agressividade defensiva”, que se manifesta quando “não há qualquer alternativa”. “Se um animal não é um predador, como o touro, que é um herbívoro, ele não é normalmente agressivo, a não ser que esses estranhos lhe perturbem ou sinta que o põe em perigo. Se o animal for encurralado, se não tiver alternativa nenhuma, reage”, diz.
A contragosto, o touro acaba por reagir. Mas nunca facilita a vida de João Salgueiro da Costa. O animal está ali porque o puseram ali. A lide decorre sem destaque, a pega é feita à primeira.
O peão de brega agarra o rabo do toiro e anda às voltas por arrasto. Ainda antes de o animal ser levado de volta para os curros, muitos dos espetadores começam logo a sair da praça. O espetáculo terminou. A temporada de 2021 também. O debate sobre o futuro e a sobrevivência da tauromaquia, esse, certamente irá continuar.