“Tudo começou no dia 5 de outubro de 2017, quando houve o primeiro ataque de homens armados. Na altura não se fazia qualquer ideia do que se estava a passar. Atacaram a vila de Mocímboa da Praia, durante três dias”, recorda Carlos Almeida.
O coordenador nacional da Helpo em Moçambique regressou a Portugal há pouco menos de uma semana e traz consigo “histórias verdadeiramente dramáticas” de um país que, no meio da pandemia de Covid-19, enfrenta um conflito armado que já provocou a morte a cerca de mil pessoas.
A insurgência, que dura há três anos, com especial incidência na província de Cabo Delgado, já provocou mais de 250 mil deslocados internos, metade dos quais são crianças.
À Renascença, Carlos Almeida, que vive há dez em Moçambique, denuncia uma crise humanitária que se agravou depois da passagem do ciclone Kenneth e, mais recentemente, com o recrudescimento dos ataques jihadistas.
“Durante os anos 2017, 2018 e 2019 continuaram a ocorrer muitos ataques, mas o padrão era atacarem aldeias pequenas, incendirarem casas, matarem algumas pessoas com requintes de terror. Depois do ciclone Kenneth, no dia 25 de abril, achamos que as coisas iam ficar mais calmas e realmente durante o mês seguinte as coisas acalmaram. Mas desde então, tem havido um aumento destes ataques não só em número, mas também em volume e em nível de organização”, explica o coordenador da Helpo, organização não governamental para o desenvolvimento.
“Foram atacadas mais vilas, nomeadamente Quissanga e Macomia, Mocímboa da praia foi atacada mais duas vezes e desta última vez, no início de agosto, estes terroristas tomaram uma parte da vila de Mocímboa da praia e o porto está a ser controlado por estes atacantes. As histórias que pude testemunhar são histórias de partir o coração. Pessoas que são forçadas a sair de casa por homens armados, casa incendiadas, meninas raptadas”, adianta.
A Helpo está presente, desde 2008, nas localidades de Cabo Delgado e Nampula. Com projetos sobretudo na área da educação, a equipa testemunhou um êxodo de residentes das regiões mais afetadas, para aldeias onde a pressão sobre as escolas aumentou exponencialmente.
“Apesar de estarem fechadas neste momento devido à pandemia de covid-19, quando reabrirem estas escolas vão ter de receber mais crianças e crianças que estão numa situação particular de vulnerabilidade”, esclarece Carlos Almeida.
O antigo professor lembra que a maioria destas pessoas não consegue fugir do conflito de forma planeada.
“Das pessoas com quem eu tive a oportunidade de contactar de perto, todas elas tinham fugido porque a sua aldeia ou a sua localidade estava a ser atacada naquele momento. Estamos a falar de pessoas que se deslocam sem nada, apenas com a roupa que têm no corpo. Algumas até se deslocam sem documentos”.
“O que provoca nestas pessoas uma grande fragilidade. Não só o trauma por que passaram, mal também esta fragilidade que se nota por se sentiram muito desapoiados”, defende.
O principal foco da Helpo, neste momento, é “dar algum apoio a estas famílias, desde bens alimentares a bens que façam frente às principais necessidades, nomeadamente utensílios de cozinha e máscaras comunitárias, por causa da pandemia de Covid-19, apesar desta situação estar claramente em segundo plano”.
Numa segunda fase o objetivo vai ser apoiar a integração das famílias deslocadas. Dos 250 mil deslocados internos em Moçambique, 16.106 são acompanhados pela Helpo no país. Para além do apoio material, estão a ser feitos rastreios nutricionais a mulheres grávidas e lactantes e a crianças até aos dois anos.
Carlos Almeida deixa, ainda, uma palavra de apreço ao bispo de Pemba, que tem sido uma figura central num movimento que tenta minimizar o impacto dramático do conflito armado em Cabo Delgado.
“D. Luiz de Lisboa tem sido, desde a primeira hora, a voz daqueles que não têm voz e tem feito um trabalho incansável da defesa dos mais desprotegidos. Vi com muita alegria que o Governo moçambicano reuniu com o bispo de Pemba para juntos tentarem encontrar um caminho”, afirma.
O bispo de Pemba recebeu, a 19 de agosto, um telefonema do Papa Francisco que disse acompanhar “com muita preocupação” a situação na província, onde as populações sofrem a perseguição de grupos armados jihadistas.
Apesar de a Covid-19 ser a principal preocupação do líderes políticos por todo o mundo, em Moçambique “os números [da Covid-19] continuam a não alarmar”. “Também é verdade que não foi adotada uma estratégia de testagem massiva. Em Maputo houve um grande surto, mas os números estão a estagnar. Estamos em crer que felizmente estas pessoas que estão sobretudo em meios mais rurais, onde nós estamos a trabalhar, ainda estão a salvo da pandemia”, defende Carlos Almeida.
De acordo com a última atualização da Johns Hopkis, Moçambique regista 4.117 casos confirmados de Covid-19, dos quais cerca de metade terão já recuperado. O país apresenta, ainda, 26 mortes devido ao novo coronavírus.