Quinze minutos com Bowie. O áudio inédito da entrevista à RFM
15-01-2016 - 20:21
 • Teresa Lage (coordenadora de conteúdos da RFM)

Foi uma longa e distendida conversa. A certa altura ouvimo-lo acender um cigarro. Fala da vida, do casamento, do trabalho, de compor canções, de Portugal. Termina a desejar "equilibrio e harmonia" ao público da rádio. Um ano depois da morte de David Bowie, voltamos a publicar o áudio inédito da entrevista integral a uma radialista do grupo de rádios a que pertence a Renascença, em 1993. É Bowie, para escutar (ou ler).

Não foram muitas as entrevistas que Bowie deu ao longo da sua vida e a RFM (rádio do grupo r/com - renascença comunicação multimédia) considera um privilégio ter entrevistado, em exclusivo de rádio, o músico em Londres, nos Mayfair Studios, em 1993.

Nessa altura, David Bowie vivia os dias que antecipavam a edição do seu primeiro disco a solo nos anos 90, o álbum “Black Tie White Noise”, após uma experiência colectiva (e não muito bem sucedida) com os Tin Machine.

O pretexto foi a edição desse disco inspirado pelo seu recente casamento com a modelo Iman, de que Bowie falou comigo revelando uma simpatia e humildade verdadeiramente cativantes.

No final da entrevista, David Bowie deixou uma mensagem para os ouvintes da rádio.

Pode ouvir aqui o áudio na íntegra, ver o vídeo com um excerto legendado ou ler a transcrição da conversa.

David Bowie - 1, 2, 3.. 1, 2...

Teresa Lage - A primeira coisa que eu gostava de saber é por que é que voltou a escrever um álbum a solo depois deste tempo todo?

Eu acho que a principal razão foi porque eu estive a escrever a música para o meu casamento com a Iman, em Florença. Foi na Igreja. A família dela é muçulmana e a minha é cristã. Por isso, eu tive de escrever a música para a cerimónia, que não ofendesse nenhuma das famílias. Não podia ser música confessional.

E eu comecei a escrever essa música e o processo de escrita fez-me querer escrever muitas outras canções. E fui escrevendo, fui com a corrente.

Antes de eu perceber o que tinha, já tinha escrito cinco músicas. E ocorreu-me que já tinha uma base para um álbum a solo. Portanto continuei a escrever.

De facto, há três músicas do álbum que foram usadas na cerimónia.

Foi tão divertido para si gravar este álbum a solo como foi gravar com os Tin Machine?

Provavelmente diferente. Porque estava sempre em controlo absoluto. Com os Tin Machine foi um trabalho de equipa e eu só dei um pequeno contributo. É um tipo diferente de entusiasmo, porque trabalhar com os Tin Machine é muito mais ser levado pela situação. Quando é uma situação a solo, tudo depende de uma pessoa. Portanto é um tipo diferente de estimulação.

Por que é que foi buscar novamente Nile Rodgers? Para voltar ao sucesso de "Let's Dance?"

Não, se eu quisesse fazer isso teria feito um "Let's Dance II". Não, isso foi coincidência porque o Nile veio ver os dois últimos concertos de Tin Machine em Nova Iorque. E estávamos a conversar depois dos espectáculos, numa festa pós-concerto. E tivemos os dois a mesma reacção ao que estava a acontecer na música actual.

E eu lembrei-me dessas conversas quando estava a escrever o meu álbum a solo e perguntei-lhe se queria trabalhar comigo. Porque a nossa visão do que devíamos estar a fazer na música eram bastante semelhantes.

É uma pessoa com quem gosto de trabalhar.

Conheci-o em Portugal quando ele estava num evento da BMG no Algarve. Lembro-me da falar com ele.

Sim, ele é uma pessoa muito simpática. É também bastante entusiástico, é isso que gosto nele. É muito bom a deixar a moral em cima. Muito entusiástico.

Quer dizer... grande parte deste álbum é integralmente parte do meu trabalho. Eu fui responsável por grande parte dele, por escrever tudo, nomeadamente linhas de baixo, partes de teclado, tudo.

Acho que a minha participação neste álbum é a mais evidente desde, provavelmente, "Scary Monsters" e acho que é por isso que soa tão intrinsecamente à minha pessoa. Eu fiz mesmo crescer este álbum. A participação do Nile resumiu-se muito mais ao seu "feedback" entusiástico, mais do que qualquer outra coisa.

Concorda que este álbum é uma espécie de regresso à música de dança?

Não, a música de dança sempre foi algo que me intrigou. E periodicamente vem à tona. Houve algumas músicas "dançáveis" em "Tonight" (1984) e "Never Let me Down" (1987). Mas não, eu não o vejo como um álbum de dança. Eu acho que tem muita influência da dança, mas acho que, mais do que qualquer outra coisa, é mesmo uma afirmação pessoal. É o álbum mais pessoal que eu alguma vez fiz, provavelmente desde sempre no que diz respeito ao sentimento do álbum.

O que significa "White Tie Black Noise"?

"Black Tie White Noise"! [risos] Confuso, não é? Para mim, a ideia... uma parte do título traz a ideia de... as minhas "black ties" [ligações negras] sempre foram muito fortes. Sempre fui muito influenciado pela música afro-americana. Essa é minha "ligação negra" e eu sou o "white noise" [ruído branco] em cima dela. [risos]

O título tem a ver com os distúrbios de Los Angeles (1992)?

Sim, o título da música tem. A Iman e eu voltámos de umas férias em Itália e aterrámos em Los Angeles no dia em que os distúrbios começaram. Estivemos lá quando se agravaram os distúrbios, acho que a música vem do abalo profundo que causou em mim pessoalmente.

Em todo o álbum, tem alguma canção preferida?

Eu gosto da canção "You've Been Around". É a segunda faixa do CD. E "Nite Flights". Acho que estas são as minhas favoritas.

Gosto muito dessa. Por que é que escolheu fazer as versões de Morrissey e dos Cream?

Quanto à música do Morrissey, mais do que qualquer outra coisa, o meu amigo Mick Ronson, guitarrista, produziu o álbum do Morrissey e enviou-me uma cópia, perguntou-me o que eu achava, quis que eu tivesse um álbum.

Eu gostei muito dessa música em particular e uma das maiores razões é porque ele tinha sido muito influenciado por uma das minhas canções mais antigas, "Rock 'n' Roll Suicide".

Eu pensei que provavelmente ia pagar-lhe o elogio e fazer a minha versão da sua música. Ou da minha música. Foi um pouco incestuoso. [risos] É feita num estilo glam rock, muito melodramática, do género de 1974.

Sabe o que ele achou da sua versão?

Sim, ele veio ao estúdio ouvi-lo, nos Estados Unidos, e ele disse "Oh, é muito grandiosa". [risos] Acho que gostou. Acho que lhe vieram as lágrimas aos olhos.

Já tinha tocado a música dos Cream...

Sim, já tinha tocado com o Mick Ronson nos Spiders [from Mars, banda de apoio de Bowie], era uma das músicas que mais gostávamos de tocar. Quando decidimos voltar a gravar juntos, como nunca a tínhamos gravado, decidimos fazê-lo finalmente 20 anos depois.

O álbum "Black Tie White Noise" autografado para Teresa Lage em Março de 1993

O Bowie é um artista que gosta de estar actualizado. Li algures que gosta muito de Suede.

Eu adoro-os. Eu acho que são fantásticos. São como eu... [risos] Não, isso não é justo. Eles têm o estilo deles. Mas eles foram, obviamente, muito influenciados pelo início dos anos 70. No que diz respeito ao estilo de escrita da música. Eu não acho que as actuações deles não sejam muito do início dos anos 70. São mais do início dos anos 80. Do estilo dos The Smiths, têm esse tipo de "feel". Como artistas de palco, não os vejo nos anos 70. Mas o seu estilo de escrita e o seu som tem muito o estilo do início dos anos 70. Têm uma escrita muito forte, eu gosto muito das canções deles. São muito bons.

Depois destes anos todos, ainda sente que é tão fácil gravar e compor canções?

Sim, sem dúvida. Sim, desde que não tentemos escrever para uma geração. Enquanto escrevermos para nós, então é fácil, porque estamos a contar uma verdade, e ela é sentida. Eu penso que se tentarmos cometer o erro de tentar escrever para uma audiência, eu acho que é aí que (...) e o entusiasmo começam a esmorecer. Porque é aí que começamos a ficar desesperados com a escrita e com o objectivo de agradar às pessoas que têm 18 anos. Se começarmos a pensar assim, não vamos escrever algo que tenha realmente integridade.

Se me agrada, então eu assumo que há-de haver outras pessoas que também gostem. Mas se eu me perguntar sobre o que querem os jovens de 18 anos, então está tudo acabado.

É difícil saber o que eles querem... É difícil para si saber o que eles pensam?

Não propriamente. Eu tenho um filho de 21 anos. Por isso, eu sei muito bem o que é que lhes vai na cabeça, mas é o espaço que existe entre nós, e as coisas em que ambos temos opiniões tão diferentes, é isso que faz a nossa relação ser tão boa.

Depois deste álbum, planeia tocar ao vivo outra vez?

Eu vou tocar ao vivo outra vez. Quero muito, mas não este ano, porque como sabe estou casado há pouco tempo e a minha prioridade é aprofundar as minhas relações.

Quando voltar aos concertos, promete não tocar as velhas canções?

Sim. Só vai haver canções novas. Posso tocar algumas canções que sejam obscuras. Gosto da ideia de tocar canções que nunca foram tocadas em palco antes. E há algumas. Porque basicamente eu só tenho tocado canções minimamente populares. Mas seria engraçado pegar em canções que as pessoas não associariam a mim no palco, como "Teenage Wildlife" coisas do género. Que eu nunca toquei em palco. Isso pode ser interessante.

Lembra-se do seu concerto em Portugal?

Eu adorei Lisboa. Lisboa foi um dos pontos altos da nossa digressão. Foi um concerto especial, foi muito bonito. Eu adorei.

Então vai voltar?

Adorava voltar a Lisboa, sim.

Já viveu muitos... já teve uma carreira longa...

De muitos séculos!

Sim, muitos séculos... Há alguma coisa de que se arrependa?

Nunca.

E olhando agora para trás, o que considera mais importante na vida?

Para mim, neste momento, nesta altura da minha vida, acho que... enquanto noutra altura o meu trabalho foi a prioridade na minha vida, em detrimento da minha vida fora do palco, eu acho que agora é ao contrário. Para mim, agora, a minha vida fora do palco e a minha casa verdadeira, e a minha família e amigos mais chegados, são a minha prioridade.

Isto não quer dizer que o trabalho é secundário, mas o trabalho tem o seu lugar agora e já não é uma obsessão, como costumava ser.

Agora, o trabalho tende a reflectir a minha vida real, enquanto antes toda a minha vida estava no trabalho. Houve aqui uma mudança no equilíbrio. Eu acho que muitas pessoas acabam por descobrir que a primeira parte da sua vida é dedicada a tentar atingir os objectivos que eles consideram possíveis, e a segunda parte da sua vida é para aproveitar. Pelo menos é isso que se espera. Nem sempre isso acontece. Às vezes as pessoas estragam-se de tal maneira, estando tão obcecadas com a ambição no trabalho, que nunca chegam a reencontrar a realidade da vida.

Quando começou, imaginava que ainda iria estar a gravar novos álbuns agora?

Sim. Eu nunca vi outra forma... Nunca houve outra coisa... Eu podia, e talvez ainda o faça.. Cheguei a pensar que talvez estaria a pintar mais, por exemplo. Eu ainda pinto bastante. Mas eu não sei se isso alguma vez iria ultrapassar a música. Eu acho que a música, de todas as artes, será sempre a minha prioridade. Mas a pintura está a ficar rapidamente quase tão importante para mim.

Este álbum significa que acabou com os Tin Machine?

Não, vou voltar a gravar com os Tin Machine e estou também a trabalhar só com o Reeves Gabrels. A escrever música para uma companhia de dança no Canadá, chamada "La La La Human Steps". E Philip Glass, que acabou de editar uma sinfonia baseada no meu álbum "Low", do final dos anos 70, espera gravar a versão sinfónica de "Heroes". Depois poderemos voltar a trabalhar juntos. Seria muito divertido. Espero também voltar a trabalhar com o Brian Eno, no futuro próximo. Por isso há muitas coisas boas para fazer.

Vi-o no tributo a Freddie Mercury. Quando rezou o Pai Nosso, como esperava que as pessoas reagissem?

Eu não esperava nada, de todo.

Tinha preparado o momento?

Não. Veio de algo pessoal. Coco e eu tínhamos um amigo de há 15 anos, dramaturgo, chamado Craig. E nessa altura ele estava em coma a morrer de sida. A ironia trágica desse momento é que dois dias depois do concerto ele morreu. Por isso, a oração era especificamente para ele... Foi um momento triste para todos nós.

Há alguma coisa que gostaria de dizer aos portugueses? Sobre este álbum ou qualquer outra questão?

Olá, portugueses! Eu sou o David Bowie e estou a falar para vocês através da rádio. Mal posso esperar por voltar a Portugal e tocar aí. Especificamente em Lisboa, que é onde certamente estarei. E olho com expectativa para os anos 90 e gostava de sentir que podemos fazer todos uma entrada positiva nos anos 90 e, consequentemente, no ano 2000. Para que alguma harmonia e equilíbrio possam ser repostos nas nossas vidas.

Adoro-vos a todos. Adeus.