Pouco mais de 24 horas após o massacre de Orlando, na Florida, onde foram mortas 49 pessoas, Donald Trump ultrapassou-se a si próprio ao deixar no ar a insinuação de que o presidente Obama poderá simpatizar de algum modo com o terrorismo islâmico.
Foi numa entrevista na segunda-feira à FOX News, em que o multimilionário afirmou: “Somos liderados por um homem que não é duro, nem inteligente, ou tem algo mais em mente – e esse algo mais em mente, as pessoas nem querem acreditar. As pessoas não acreditam que o presidente Obama esteja a agir como está e nem seja capaz de dizer as palavras terrorismo islâmico radical. Algo se passa. Isto é inconcebível. Está a passar-se algo”.
“Ele não está a perceber ou está a perceber melhor do que ninguém. Ou é uma coisa ou outra”, acrescentou.
Mais tarde, solicitado na NBC a clarificar estas afirmações, Trump insistiu na mesma tónica: “Há muita gente que pensa que ele talvez não queira perceber. Há muita gente a pensar que talvez ele não queira saber. Eu acho que ele não sabe o que está a fazer, mas há muita gente a pensar que ele não quer perceber. Não quer ver o que se está a passar. E pode ser isso”.
“Por que é que ele não está a enfrentar a questão?, questionou logo a seguir. “Ele não está a enfrentar a questão. Não diz aquilo que isto é. Isto é terrorismo islâmico radical”.
Estas palavras de Trump foram citadas durante o dia nos media e de certo modo ofuscaram a própria comunicação que o candidato fez ao país sobre terrorismo e segurança nacional. E o caso não era para menos, já que aquilo que Trump deixou no ar foi que Obama não agiria consequentemente contra o terrorismo porque no fundo simpatiza com a causa islâmica.
Curiosamente, enquanto a generalidade dos media evitou afirmar preto-no-branco que Trump estava a sugerir alguma simpatia de Obama pela causa jihadista enquanto não obteve maior clarificação do candidato, foi um tablóide que o apoia que não hesitou em fazê-lo. O New York Post, que há algumas semanas declarou o seu apoio a Trump na corrida à Casa Branca, fez o seguinte título: “Trump: talvez Obama simpatize com os terroristas”.
Pontos de fractura - terrorismo e política de segurança
No artigo, o New York Post recorda que Trump foi o principal impulsionador, durante anos, do chamado movimento “birthers” que defendia que Obama tinha nascido no Quénia e era muçulmano. Mesmo depois de ter sido divulgada a certidão de nascimento do presidente, que comprova que ele nasceu no Havai, Trump continuou a exprimir dúvidas sobre a sua origem e a sua religião.
O movimento “birthers” acabou coberto de ridículo, como é natural, e as declarações de Trump esta segunda-feira parecem ser um momento idêntico no percurso do multimilionário. Com a diferença de que neste momento ele é o candidato dos republicanos à Casa Branca.
E foi nessa qualidade que fez uma declaração anunciada como de política externa e segurança, mas que acabou por ser mais um comentário violento contra Hillary Clinton. A candidata falou também das suas propostas na luta contra o terrorismo e ficaram bem patentes as diferenças de pontos de vista.
Há duas questões fracturantes entre Donald Trump e Hillary Clinton na forma de encarar o terrorismo e a política de segurança na América.
Quanto ao terrorismo, Trump fala de islamismo radical mas as suas propostas visam toda a comunidade islâmica.
Dois exemplos: Trump quer proibir a imigração muçulmana para a América, diz que chegam milhares de muçulmanos aos EUA sem qualquer escrutínio, o que não é verdade. Há escrutínio de toda a imigração, sobretudo da que provém do Médio Oriente.
Além disso, a medida nada resolveria – o atacante de Orlando era cidadão americano, nascido em Nova Iorque, que se radicalizou dentro dos EUA aparentemente sozinho. O chamado “lobo solitário”, hoje o tipo de terrorista mais temido no Ocidente.
Depois Trump acusou também os muçulmanos de terem conhecimento dos casos de radicalização e não os denunciarem às autoridades. É um estigma generalizado a uma comunidade que, mais uma vez, o exemplo de Orlando desmente. Até agora as investigações concluíram que o terrorista não teria quaisquer ligações a grupos ou comunidades.
Este é um aspecto que Hillary Clinton critica asperamente em Trump porque ele estigmatiza todos os muçulmanos, etiquetando-os como cúmplices dos terroristas.
O uso de armas
A segunda questão é a do uso e porte de armas nos EUA. Trump é um defensor intransigente desse direito consagrado na 2ª emenda à Constituição americana. Trump acusa Hillary de querer revogá-la, o que não é verdade. O que Hillary defende, tal como o presidente Obama, é que as armas mais letais – automáticas e de guerra – devem ser banidas.
Hillary insistiu neste aspecto na sua comunicação, mas é um tema condenado ao impasse dada a intransigência dos conservadores no Congresso. E é talvez a maior frustração de Obama nos oito anos de presidência, durante os quais ocorreram mais de dez massacres idênticos ao do Orlando provocados por armas de fogo usadas pelos mais diversos motivos e pessoas.
Após cada um deles Obama insistiu na necessidade de rever a legislação sobre uso e porte de armas, mas sempre sem sucesso. Hillary, se for eleita, estará provavelmente condenada ao mesmo fracasso, não só porque o lobby pró-armas é muito poderoso, mas também porque o direito de as possuir parece muito arreigado em amplos sectores da população.
Dito isto, convém salientar que o discurso de Trump foi talvez o mais eficaz até hoje porque agita os fantasmas da segurança a que amplos sectores do eleitorado são híper-sensíveis. Ao criticar Hillary e Obama por se recusarem a usar a expressão “terrorismo islâmico radical”, Trump reitera a sua cruzada contra o politicamente correcto, que lhe tem trazido muitos apoios sobretudo entre sectores em ruptura com o establishment politico.
Talvez por pressentir isso mesmo, Hillary Clinton admitiu mais tarde que não lhe repugnaria nada usar a expressão “radicalismo islâmico” ou “jihadismo radical” para se referir aos terroristas e não aos muçulmanos em geral.
No papel do homem duro que defenderá a América contra todas as ameaças, Trump teve na tragédia de Orlando uma importante alavanca para as suas teses. Se não desperdiçar o capital politico que pode acumular com este tema sensível com afirmações ou insinuações como as que deixou cair de manhã sobre Obama, talvez Hillary Clinton venha a ter aqui um sério problema.
Veremos o que dirão as sondagens nos próximos dias ou semanas.
Como era previsível, o ataque na Florida permitiu a Donald Trump reforçar o seu papel de candidato duro, que, se for eleito presidente, destruirá os grupos terroristas onde quer que eles estejam, estancará o seu financiamento e proibirá a imigração muçulmana para a América.
Acontece que a realidade é bem mais complexa do que Trump supõe. Os grupos terroristas demoram anos a ser desmantelados, e isso exige cooperação com países que Trump hostiliza com o seu discurso anti-muçulmano.