"Os mais velhos diziam 'não venhas para cima de mim que levas porrada'": uma conversa com o homem que mudou a história de Geny
08-04-2024 - 12:55
 • João Filipe Cruz

Pedro Russiano cruzou-se com Geny Catamo, no Amora, quando o jogador ainda era junior de primeiro ano. "No primeiro jogo que fez a titular nos seniores, fez um golo muito semelhante àquele que fez esta semana."

Houve uma altura em que Geny Catamo, a nova pérola moçambicana, tentou a sorte no FC Porto. Os testes não convenceram os responsáveis portistas, por isso o regresso a casa era inevitável. A espera foi feita numa casa na Amora, na casa de outros jogadores do clube da terra. Foi aí que surgiu a ideia de o irreverente extremo, ainda júnior de primeiro ano, ir treinar com os seniores. Convenceu tanto que o bilhete para Maputo “foi para o lixo”.

Pedro Russiano, na terceira época como treinador do Juventude de Évora, é o nome do homem que fintou o destino de Geny, agora com 23 anos. Numa conversa com Bola Branca, conta a história do futebolista que resolveu o dérbi com o Benfica e está a encantar Alvalade.


Como é que descobriu Geny?
Foi simples. O Geny jogava no Black Bulls, é uma equipa de Moçambique, no qual o meu investidor no Amora, Zuneid Sidat, era também investidor. O Geny veio fazer uma experiência ao Porto, não ficou. O miúdo, até apanhar o voo de volta para Moçambique, ia ficar ali na Amora, na zona do nosso clube, tínhamos vários jogadores que até o conheciam. Um deles era o Abel, que joga no Oriental. Ele ficou ali instalado na casa deles até apanhar o voo. Entretanto, eu disse ao investidor que o miúdo podia ir lá treinar, era júnior de primeiro ano. Nesse tempo que treinou, eu vi qualidades nele acima da média. Eu disse ao investidor para ficar com o miúdo cá, que treinaria connosco e jogava nos juniores. Se visse que a evolução era grande e se encaixasse no perfil para jogar na nossa equipa, ia lançá-lo.

Então, o bilhete de volta para Moçambique foi para o lixo?
Foi para o lixo, é verdade. Pode agradecer-me um bocadinho, as coisas correram bem. O miúdo, no primeiro jogo que faz a titular, faz um golo muito semelhante àquele que fez esta semana, à entrada da área, na sequência de um pontapé de canto. A partir daí, o trajeto é todo dele. Ele tem todo o mérito no patamar a que chegou.

Como é que ele era?
Ele era tímido, reservado, mas o tímido era só de personalidade, dentro do campo não era nenhum tímido. Era um jogador que enfrentava os adversários, mesmo os mais velhos da equipa no 1x1. Os mais velhos até brincavam com ele: "Eh, pá, não venhas aqui para cima de mim, que levas uma porrada". Era um miúdo irreverente a jogar, lá fora, sim, era tímido. Muito trabalhador, muito humilde, sempre com uma grande capacidade de querer evoluir. Lembro-me de perguntar-lhe, no jogo de estreia, se estava preparado para entrar a titular. Ele vira-se para mim, com toda a tranquilidade, e disse: "Mister, gosto de jogar é contra seniores, não é contra juniores. Isso mostra um bocadinho o caráter dele, foi esse caráter que fez com que chegasse à primeira equipa do Sporting e se afirmasse tão rapidamente.

Já aí via que ele podia chegar aqui? Titular num dérbi Sporting-Benfica, homem do jogo ou dos golos.
Eu não tinha a mínima dúvida de que ele chegaria a um dos grandes clubes portugueses. Aliás, na altura até o referenciei a vários clubes. Sentia que o miúdo era acima da mesa. Sendo júnior de primeiro ano, chegar ao Campeonato de Portugal, jogar contra jogadores muito experientes, é um campeonato muito difícil naquilo que é o espaço, as condições dos campos, e ele a impor-se com uma qualidade, eu previa que ele chegaria lá. Se era já no imediato ou não, isso só demonstra a capacidade que ele tem e, claro, também do seu treinador, Rúben Amorim.

Como vê o novo papel do Geny? Na altura, no Amora, já se dava bem a defender ou isto é mérito de Rúben Amorim?
O que sentíamos era que era um jogador forte no 1x1, agressivo, era um jogador que cumpria as suas tarefas defensivas. Às vezes, havia uma ou outra questão técnico-tática em que sentíamos que tinha de evoluir. Agora, a posição de ala é um grande mérito do treinador. Mesmo nesta posição tem ainda de evoluir nos aspetos defensivos, mas no que é ofensivo... o Amorim mete-o a fazer aqueles movimentos de fora para dentro, para dar na baliza ou para provocar muitos desequilíbrios, aí é mérito do treinador, claro. Está à vista de todos a evolução que tem tido, tem sido muito grande. Já jogou a extremo também, entrou com a Atalanta e fez grande jogo. Jogar a ala fá-lo evoluir nas componentes técnicas-táticas e permite chegar a outros patamares.

E aquelas lágrimas quando marcou o segundo golo, é o Geny que conheceu?
É, o miúdo sofreu. Vir para a Europa, não ficar no Porto, era um sonho do jogador, chegar à Amora, sentir aqui uma ou outra dificuldade, estar sozinho com 16 ou 17 anos, ter de enfrentar tudo sozinho, depois ir para a academia do Sporting, ter de lutar para ali chegar... foi o expressar da sua alegria e mostrar um bocadinho do que ele é.

Onde é que o vê chegar? Acha que está próximo de atingir o pico ou há algo mais brilhante à espera lá à frente?
Eu acho que há algo mais brilhante, sinceramente. Este jogador de 1x1 está a desaparecer, o jogador de enfrentar os adversários. Sempre fomos, a nível nacional, uma grande fábrica deste tipo de extremos – Quaresma, Ronaldo. São esses jogadores que chegam a esses patamares. Ele tinha essa característica do 1x1, que é muito dele, esse tipo de jogadores não ficam por aqui. Há mais por chegar, mas é preciso sorte no futebol. Sorte para não haver lesões, ter uma vida reservada, tentar sempre aprender porque na vida não se sabe tudo. Ele gosta de aprender, é uma característica que pode fazê-lo mais acima ainda.

Quando é que foi a última vez que falou com Geny e que conselhos lhe deu?
Foi ele que me mandou uma mensagem, estava com um amigo meu, um rapaz que pertence ao mundo dos empresários, a cortar o cabelo. Ligou-me e perguntou se estava tudo bem com o mister e mandou uma foto dos dois juntos. Não deu para dar conselhos, ele sabe que sempre que lhe dava aquela durazinha era para ele ser melhor ainda, porque acho que nós, enquanto treinadores, homens e educadores, temos de puxar o máximo pelos nossos atletas para chegarem lá. Ele sabe que tem sempre de dar o máximo. O meu maior conselho para ele foi para trabalhar, para trabalhar cada vez mais, e nunca nunca nunca pensar que está tudo feito. No dia que pensar que está tudo feito é que é mau, sei que ele ouve todos os conselhos.