A vertigem hipermediatizada do momento não deixa ver o que a história permite decantar, para melhor perspetivar. Em que estado de evolução (ou de involução) do mundo estamos nesta altura? Numa curva ascendente ou descendente? A resposta pende, por ora, para a segunda hipótese.
A trajetória descendente não começou em fevereiro de 2022, com a invasão da Ucrânia pela Rússia. Se escavarmos no tempo, como fazem os arqueólogos, a estratigrafia dos problemas remonta, pelo menos, a 2008, há uma década e meia. A crise capitalista global, soprada dos EUA a partir desse ano, impactou fortemente na Europa, com a crise das dívidas soberanas e os consequentes resgates “austeros”, entre 2010 e 2013.
Entretanto, já a Rússia engolira partes da Geórgia (a Abcásia e a Ossétia do Sul), e não tardaria a engolir a Crimeia (em 2014). Vieram depois a crise dos refugiados e o terrorismo islâmico do «Charlie Hebdo» e do «Bataclan» (em Paris), as derivas populistas da Hungria e na Polónia, o Brexit e a eleição de Donald Trump para a Casa Branca, eventos interligados por uma onda ascensional de populismos soberanistas. Depois, chegou a pandemia de Covid e as suas consequências económicas (mais crise) e políticas (menos liberdades), em 2022 a guerra de “recolonização” e de desmembramento de Vladimir Putin sobre a Ucrânia e, já este ano, o brutal reacendimento do conflito israelo-palestiniano na Faixa de Gaza.
2023 termina com preocupantes incógnitas espalhadas por todo o mundo – os delírios caudilhistas de Nicolas Maduro sobre uma fatia da Guiana, os planos da China para a anexação de Taiwan, as ligações perigosas do Irão às jihads islâmicas do Médio Oriente, ou a pirataria dos Hutis iemenitas no Mar Vermelho e nas zonas de passagem para o Índico.
Se a história não se repete, mas rima, as terminações de alguma história do presente rimam com o que já vimos no passado – nos anos entre as duas Guerras Mundiais, com uma ordem mundial em desagregação (outros dirão em recomposição), onde a ONU parece tão impotente como o foi, nos anos 1930, a sua antecessora, a SDN, tentando navegar no crescente unilateralismo das potências.
Os grandes analistas internacionais são claros na avaliação: o mundo está imerso numa era de incerteza, numa “terceira guerra mundial aos pedaços” ou numa “segunda guerra fria” (à medida que Moscovo vai cavando trincheiras em “terras sangrentas”, ou correndo novas “cortinas de ferro” que, quem sabe, um dia dividirão de novo a Europa nos dois blocos de outrora).
Domina-nos, sobretudo, a incómoda sensação de que coisas julgadas impossíveis ou muito improváveis…não o são, a começar pelo ataque claro à democracia ocidental, que sopra de muitas partes do mundo. Francis Fukuyama achava que a história tinha acabado, com a vitória dos “bons”, depois de 1989. O mundo mudou nessa altura para melhor; o problema é que já mudou outra vez muito, e para pior. Depois de um ano de descontentamento (2023), vem um ano de renovada incógnita (2024).
Nem falo de Portugal, e do que poderá ser o país depois de março. Falo do mundo em que o pequeno Portugal está inserido, com guerras a lavrar em zonas de efeito global diferido, e com democracias que irão a teste no próximo ano: a Europa comunitária, em junho, ou os EUA, na crucial eleição presidencial de novembro. Hoje, como ontem, da saúde do bloco euro-americano depende a hipótese de o mundo não resvalar, no futuro mais próximo, para um lugar a muitos títulos infrequentável.
Os sinais disso estão por aí; esperemos que eles nos sirvam de alerta!