“O combate aos lóbis da Protecção Civil e bombeiros é somente uma questão de decisão política”. A análise é feita pelo membro da comissão técnica para a análise dos fogos que deflagraram em Pedrógão Grande e Góis, Paulo Fernandes.
“Outros países fizeram-no. A Galiza fez isso há 30 anos”, frisou o professor no Departamento de Ciências Florestais da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), reiterando que essa decisão é “uma questão de organização que só depende da vontade política”.
“Os políticos têm as suas clientelas”, acrescenta o investigador, “e é aí que vão buscar os seus votos, portanto é sempre difícil fazer estas mudanças estruturais que afetam um setor que é tão importante, especialmente a nível local e a nível municipal”.
Paulo Fernandes aponta que “as deficiências de combate aos fogos, principalmente aos “têm muito a ver com o facto de a nossa doutrina de combate aos fogos maiores, já foram diagnosticadas desde há muitos e muitos anos, para não dizer décadas. Há variadíssimos relatórios”, sublinhou, considerando que as falhas na prevenção de fogos florestais incêndios têm evoluído de princípios de protecção civil e não de defesa da floresta.”
Para o investigador, que contribuiu para as recomendações da comissão técnica independente para a análise dos incêndios de Pedrógão Grande e Góis, que defende também o incremento de meios aéreos, é necessário “encontrar um compromisso e é por isso que na proposta se faz a separação do que é o combate aos fogos florestais e o que é a defesa de vidas e casas, porque o nosso sistema actual de combate, baseado nas corporações locais de bombeiros, está vocacionado exactamente para isso.”
“Isto em oposição a métodos de raiz florestal, baseados na leitura do fogo, na leitura do comportamento do fogo, no uso de mais homens – mais homens com menos água, isto é, com mais ferramentas manuais, mais máquinas, ‘bulldozers’, ataque indireto ao fogo, com contrafogo”, exemplificou.
O engenheiro florestal propõe ainda “uma outra forma de olhar para os incêndios”, baseada num sistema de combate que integre “competências que no sistema actual são escassas, ou não têm massa crítica. Esse conhecimento mais avançado tem a ver com a previsão, com a antecipação, e muito a ver com o aproveitar bem a informação meteorológica que existe e com a previsão do comportamento do fogo.”
“Em Bruxelas, está a ser preparado, e creio que vai avançar em breve, um sistema de qualificações, tal como existe para outras profissões. É um sistema de competências para os vários níveis de conhecimento, ou os vários tipos de trabalho que são necessários num sistema de combate a incêndios”, explicou à Lusa, questionado quando a alínea do relatório da comissão técnica que recomenda que “o sistema português [de combate a fogos florestais] deveria integrar o perfil de qualificações europeu”.
Fogo é um “acto de terrorismo”
Para o professor catedrático do Instituto Superior Técnico (IST) da Universidade de Lisboa, os trágicos incêndios de 17 de junho em Pedrógão Grande e do passado domingo nas regiões Norte e Centro do país resultaram de “um conjunto de factores, incluindo uma tremenda incompetência” do Estado.
“É evidente que o combate aos fogos florestais tem que ser feito por pessoas competentes”, afirmou o docente Clemente Vicente Nunes, indicando que, “depois do que aconteceu este ano”, Portugal tem que ter “organismos públicos profissionais destinados a atacar fogos florestais” à semelhança do que acontece em Espanha.
Em entrevista à agência Lusa, num laboratório do departamento de engenharia química do IST, o especialista realçou o processo químico que se verifica quando há uma combustão para reforçar a importância de existir “um corpo nacional de bombeiros profissionais em âmbito florestal”, defendendo que devia ser composto por militares das Forças Armadas.
Na perspetiva do docente do IST, o que aconteceu este ano em termos de incêndios florestais tratou-se de “um crime inqualificável”, em que há a lamentar mais de uma centena de mortos, o que “nunca aconteceu em Portugal”.
“Muito céptico” em relação à atual reforma da floresta, Clemente Vicente Nunes considerou que o principal erro “é que fala em floresta”, advogando que tal “é um disparate completo” já que a reforma “não pode estar limitada à floresta”.
“A urgência não é tanto a floresta, é todas as atividades agroflorestais, que inclui com certeza a floresta, mas inclui a pastorícia, inclui todas as questões das árvores de fruto, inclui o olival e inclui a atividade agrícola”, declarou o professor catedrático.
Eucalipto tem sido estigmatizado
Neste sentido, a atual reforma deve consolidar “as actividades económicas que contribuam para a estabilização social e demográfica em 45 mil quilómetros do território do país”, avançou o docente, referindo-se ao mundo rural do Interior Norte e Centro do país.
Relativamente às acções de arborização e rearborização, o especialista em valorização energética de resíduos indicou que “o eucalipto tem sido estigmatizado, mas o eucalipto é o que evita que o mato à volta se dê”.
“Das estatísticas que vejo, as maiores explorações de eucalipto industriais em Portugal, nomeadamente as que são geridas pelas celuloses, praticamente a incidência de fogos tem sido mínima, inferior a 1%”, apontou Clemente Vicente Nunes.
Para o professor do departamento de engenharia química do IST, “concentrar, como foi feito politicamente, o problema no eucalipto é um disparate completo”, já que o Pinhal de Leiria não tem eucaliptos, tem pinheiros, e ardeu 80% da área florestal.
“Estou muito receoso. Se a reforma da floresta é a nova forma de terrorismo burocrático para que os empresários agroflorestais do minifúndio fiquem com a sua vida ainda mais prejudicada, então é um tiro no pé, mas um tiro de canhão”, alertou o docente.
As centenas de incêndios que deflagraram no domingo, o pior dia de fogos do ano segundo as autoridades, provocaram 43 mortos e cerca de 70 feridos, mais de uma dezena dos quais graves. Os fogos obrigaram a evacuar localidades, a realojar as populações e a cortar o trânsito em dezenas de estradas, sobretudo nas regiões Norte e Centro.
Esta é a segunda situação mais grave de incêndios com mortos este ano, depois de Pedrógão Grande, em Junho, em que um fogo alastrou a outros municípios e provocou, segundo a contabilização oficial, 64 mortos e mais de 250 feridos. Registou-se ainda a morte de uma mulher que foi atropelada quando fugia deste fogo.