Síria. "Acordo internacional é urgente. Mas cuidado com a exportação de democracias"
28-11-2015 - 19:24
 • José Pedro Frazão

A queda de um avião russo abatido por forças turcas, os esforços diplomáticos de François Hollande e a disponibilização de mais meios militares ocidentais para o combate ao auto-intitulado Estado Islâmico foram comentados na Renascença pelo antigo comissário europeu António Vitorino e pelo ex-primeiro-ministro Santana Lopes.

Pedro Santana Lopes defende que a situação na Síria exige o acordo entre as várias potências envolvidas no conflito. Mesmo que isso obrigue a tolerar determinados regimes em nome de um desígnio maior.

"Neste momento há uma série de compromissos antigos que impedem que se dê um passo mais á frente em relação ao presidente sírio. Considero inevitável que neste momento haja um tempo de tolerância em relação ao actual regime sírio porque valores mais altos de levantam. Não vejo outra saída", argumenta o antigo primeiro-ministro no programa "Fora da Caixa" que debateu a tensão entre a Rússia e a Turquia e o combate ao autoproclamado "Estado Islâmico".

O antigo chefe de Governo considera urgente um acordo entre as potências ocidentais sobre a Síria. "Sei que é difícil, mas já tolerámos tanto regime complicado durante tantos anos por valores mais altos... Se há algo que esta plêiade de acontecimentos mostra é que temos que ter cuidado com a exportação deste regime politico que consideramos o menos mau dos regimes políticos do mundo, a democracia".

Confrontado com a reservas norte-americanas a um acordo que passe pela manutenção do próprio regime de Damasco, Santana Lopes acentua que " o problema é termos eleições para o ano. Não é fácil. Se fosse primeiro ano de novo presidente, fosse democrata ou republicano, isto resolvia-se mais facilmente".

Americanos e inimigos principais

António Vitorino adverte para a necessidade de preparar antecipadamente uma solução com muito cuidado. Mas detecta problemas estruturais na própria estratégia norte-americana no conflito.

" Há uma teoria clássica sobre o "inimigo principal". Qual é o inimigo principal ? Acho que os americanos não sabem responder a essa pergunta. A ambiguidade da posição americana resulta desse facto. Na retórica parece ser o Estado Islâmico, mas no fundo os americanos sabem - e têm razão, há que dizê-lo - que o responsável pelo inicio da guerra civil síria foi o regime de Bashar Al-Assad, que usou armas químicas contra a sua própria população. Ninguém está aqui a branquear o senhor Bashar Al-Assad. Qual é o preço a pagar para combater o inimigo principal ? Hoje não tenho dúvidas que o inimigo principal é o auto-proclamado Estado Islâmico. Se o preço a pagar para combater esse inimigo principal é forjar uma grande coligação internacional que tenha a Rússia como parte integrante, isso obriga a alguma forma de transigência com o regime de Bashar Al-Assad", conclui o antigo comissário europeu no debate de temas europeus da Renascença.

Uma visão política global para a Síria

Os comentadores do "Fora da Caixa" analisaram as consequências do derrube de um avião militar russo por forças turcas na zona de fronteira com a Síria e saúdam a contenção nas reacções dos vários actores políticos e militares.

"A primeira reacção da Nato foi procurar evitar uma escalada. A ninguém de bom senso passa pela cabeça entrar numa situação de conflito militar com a Rússia, muito menos a propósito da Síria. Se não foi o caso a propósito da Ucrânia onde a União Europeia até está bastante mais envolvida do ponto de vista politico, não seria decerto no caso da Síria", constata António Vitorino que lembra que quando várias forças operam no mesmo teatro de operações, com alvos distintos, pode acontecer fogo real cruzado.

Já Santana Lopes diz que, por vezes, quando as reacções iniciais são mais duras, é mais provável voltar o bom senso, por mais paradoxal que possa parecer. " Esta resposta, reacção e controlo de escalada foi surpreendentemente moderada, apesar de tudo, da parte de Putin e depois dos vários líderes mundiais que tentaram amenizar tanto quanto possível o que se passou".

Santana Lopes e António Vitorino concordam que a Turquia é hoje um país cada vez mais central e com peso reforçado na crise síria.

" Não tanto por ser membro da Nato, por paradoxal que pareça, mas por causa da sua posição geográfica e do seu posicionamento em relação à União Europeia", clarifica o antigo ministro da defesa que considera que o risco de repetição destes casos é enorme enquanto subsistirem operações militares distintas no terreno. "Para haver uma grande coligação internacional que evite situações deste género - um potencial conflito entre os vários países que têm forças armadas no terreno - é imprescindível que haja uma visão conjunta política sobre o futuro da Síria. É na ausência dessa visão conjunta que permite que operações militares que se desenrolam em paralelo possam coincidir", acrescenta Vitorino.

Já o antigo primeiro-ministro diz que, neste momento, jogam-se muitas peças neste xadrez complicado, girando em torno da questão síria e do papel da Turquia em todo este movimento dos refugiados.

"A Turquia tornou-se cada vez mais importante. E irá cada vez mais tentar extrair proveitos dessa realidade. De certeza que já negociou compensações por causa dos refugiados. Cada vez mais irá negociar o desenvolvimento de outros processos, nomeadamente em relação à União Europeia, mesmo sem formalização de adesões", sustenta Santana Lopes no "Fora da Caixa" desta semana.

A ofensiva de Hollande

Depois dos atentados de Paris, o Presidente francês François Hollande promoveu uma ronda de contactos com os seus homólogos em Washington e Moscovo para intensificar a luta contra o auto-denominado Estado Islâmico. Para António Vitorino, o esforço politico de Hollande não foi bem sucedido". Manifestamente falta a chave da questão: uma aproximação política conjunta à solução da Síria. Não há uma solução militar para o problema da Síria e do Estado Islâmico desligada da solução política", argumenta o antigo comissário europeu.

Vitorino lembra que os europeus criticaram os norte-americanos por não saberem o que fazer depois da intervenção do Iraque - "fomos muito arrogantes" - e depois a intervenção francesa e britânica derrubou o regime de Khadafi mas fez exactamente o mesmo que os americanos em 2003 no Iraque.

"É isto que queremos fazer uma terceira vez, na Síria? O que se pretende é uma derrota militar na Síria, seja de quem for - de Assad, da oposição moderada ou do Estado Islâmico - sem ter uma solução política para o que sucede a seguir? O que vem a seguir, do ponto de vista politico, é muito complexo, muito difícil de construir. Nesse sentido, é manifesto que os bons ofícios do Presidente Hollande não permitiram aproximar as posições russa e americana sobre o dia seguinte na Síria", constata o antigo ministro da Defesa .

Já a questão militar é diferente, ressalva Vitorino que dá mérito a Hollande por ter conseguido garantir da Rússia uma coordenação " para evitar que haja um novo normal, o de que quem combate na Síria está a combater-se entre si".

O comentador da Renascença diz que há sinal de maior empenhamento militar, sublinhando que "o dramatismo que rodeia a situação, sobretudo depois dos atentados de Paris, leva a que a visibilidade do tema sírio tenha dado maior peso político aos governos para tentarem obter junto dos seus parlamentos uma autorização alargada de intervenção na Síria".