Diz que o teatro é o espaço de liberdade artística e independência. Aos 30 anos, Sara Barros Leitão venceu a primeira edição do Prémio Revelação atribuído pela Ageas em parceria com o Teatro Nacional D.Maria II. A atriz que está, neste momento, em digressão com a peça de Tiago Rodrigues “Catarina e a Beleza de Matar Fascistas” diz que para si só faz sentido que a vida e o palco se contaminem.
Em entrevista á Renascença, Sara Barros Leitão fala da peça que está a escrever sobre o primeiro sindicato do trabalho doméstico, mostra-se crítica sobre a forma como em televisão é um “operário de uma indústria" e revela que irá criar um clube de leitura gratuito com o valor do prémio que agora venceu.
Diz o seu curriculum que é “feminista, ativista por todas as desigualdades ou injustiças, (…) revolucionária quanto baste, artista difícil de domesticar”. Sara Barros Leitão tem 30 anos, é atriz e encenadora nascida no Porto. Quem é a Sara?
É difícil responder a isso, prefiro que respondam por mim. De facto, isso que leu é uma pequena biografia provocadora, então posso também começar por dizer que sou um pouco provocadora, bastante inquieta. Acho que me sinto descrita.
Entre as suas aspirações está fazer do palco um espaço político?
Sim, neste momento isso faz muito sentido para mim. Se calhar daqui a uns anos vai deixar de fazer, se calhar amanhã já não vai fazer sentido, mas neste momento é esse o sítio em que sinto que tenho de trabalhar. Uma contaminação entre aquilo que me interessa na vida e aquilo que levo para o palco, e de que maneira é que o palco pode influenciar a vida e como é que isto se transforma e contamina.
Venceu a primeira edição do Prémio Revelação AGEAS/Teatro Nacional D. Maria II e já tem destino a dar ao prémio. São 5 mil euros. Como é que o vai usar?
Percebi durante a pandemia que é importante muscularmo-nos uns aos outros com discurso e pensamento crítico e por isso irei investir todo o dinheiro do prémio num projeto a desenvolver em 2021, que se chama "Heróides - Clube do Livro Feminista".
Como vai funcionar?
É um clube de leitura que pretende criar uma comunidade de leitura resgatando um pouco a tradição das comunidades de leitura em que as pessoas leem os mesmos livros e contaminam com pensamentos e ideias. Discutem-nos e às vezes até pode acabar mal e está tudo certo!
Eu convido doze pessoas que me inspiram que durante doze meses escolhem um livro para lermos e os leitores leem doze livros num ano. É este o desafio.
Convido toda a gente a juntar-se a nós. Os encontros serão uma vez por mês online, de forma gratuita, e a ideia é que possamos discutir em conjunto doze livros sempre com sentido crítico e com um ponto de vista de tolerância e de como se pode mudar o mundo.
Em que medida é importante um prémio como este dado a alguém que tem 30 anos? Já tem uma carreira feita, espetáculos apresentados, como é que pode ser importante este prémio para projetar a carreira futura?
Eu sou muito mais do passado do que do futuro! Mesmo no meu trabalho acabo sempre por ir muito mais ao passado das coisas do que projetar-me para o futuro. Acho que não sou uma pessoa com uma grande ideia de futuro. Sei mais ou menos linhas orientadoras para onde gostava de caminhar, mas mais num sentido macro e não tanto no sentido pessoal de conquistas. Por isso, não levo este prémio como uma grande pressão.
Sinto que se amanhã quiser desistir de tudo, está tudo certo.
Vejo como reconhecimento dos meus pares, pelas minhas decisões e caminho que fui traçando até aqui. Isso, se se tiver de se projetar para o futuro de alguma maneira, acho que se projeta em forma de encorajamento. Quase como se para os dias em que me falta mais coragem para continuar, para me levantar da cama, para travar mais uma batalha, de repente é sempre bom perceber que há outras pessoas, meus pares e colegas que reconhecem em mim e no meu trabalho um sentido. Isso dá coragem e alento.
Estreou-se em televisão com a série "Morangos com Açúcar". No seu coração pesa mais a televisão, o teatro ou o cinema?
Acho que não há assim muitas dúvidas. Sempre pesou o teatro. Nunca procurei fazer outras coisas, elas vieram ter comigo. Sempre fui uma pessoa muito aberta a todas essas coisas que iam surgindo, e a todas essas experiências. Quando dizia que não tenho uma grande ideia de futuro, de facto, vou aceitando as coisas que vão acontecendo e vou lidando com elas, mas chega a uma altura em que começo a ter de ser mais efetiva nas escolhas. Começo a perceber onde realmente me sinto bem e o que faz mesmo sentido para mim.
É no teatro, sem dúvida?
Encontro no teatro um espaço de criação, de liberdade artística e até de independência que não encontro em televisão. Obviamente não independência financeira, porque a televisão como todos sabem é muito melhor remunerada do que o teatro, não é nesse sentido; mas é no sentido de, em televisão, estou constantemente a fazer aquilo que querem que eu faça, coisas que estão escritas que tenho de fazer. O meu grau de envolvimento na criação é muito menor.
Eu sou uma atriz e uma atriz em televisão, temos de ser honestos, é um operário de uma indústria e tem um grau de participação muito pequeno e eu nem sempre concordo com as coisas que se fazem.
Do ponto de vista ideológico, [em televisão] há uma série de coisas que cada vez me fazem mais confusão. Quanto mais vou crescendo e ficando politizada vou percebendo que não quero fazer parte disto, isto não faz sentido para mim, não é isto que eu quero dizer.
No teatro, consigo encontrar esse lugar de fala, de criar os meus próprios projetos e de me rodear de pessoas que estão a fazer coisas que me interessam e com as quais sei que o meu pensamento e sentido crítico podem contaminar. Isso interessa-me mais.
É o caso da peça do Tiago Rodrigues, “Catarina e a Beleza de Matar Fascistas”, em que a Sara participa e que em abril estará em cena no Teatro Nacional D. Maria II e que vai percorrer o país?
Sim, identifico-me imenso com a peça. Estreou em Guimarães e agora vamos continuar uma circulação. Também vamos ao Porto e outras cidades do país. Desde que o Tiago Rodrigues me falou deste espetáculo que me identifiquei, desde logo, na construção de um espetáculo que pretende questionar uma série de ameaças que começam a ficar cada vez mais próximas, sobretudo no sentido de nos tirar coisas que nós já achávamos que estavam seguras.
A pandemia provou que há uma série de coisas que dávamos como dados adquiridos e que de facto não o são. Desde o abraço a direitos laborais que vão sendo perdidos. Portanto este é um espetáculo de grande questionamento com o qual me identifico muito.
Não nos podemos deixar levar pelo título que é muito provocador, como a arte deve ser. O espetáculo levanta mais perguntas do que dá respostas e é sem dúvida uma grande arma de reflexão.
A Sara está a trabalhar numa nova peça da sua autoria. Quando é que a vamos poder ver em palco?
No próximo ano. Vou criar uma peça com o título "Monólogo de uma mulher chamada Maria com a sua patroa", que é clandestinamente roubado às Novas Cartas Portuguesas, é um dos seus textos. É um livro que me acompanha e inspira diariamente.
Será um trabalho escrito, encenado e interpretado por mim, em conjunto com a minha equipa criativa, onde vamos investigar a criação do primeiro sindicato do serviço doméstico e será um espetáculo sobre o trabalho doméstico não reconhecido, não remunerado e estruturalmente associado à mulher. Portanto é um trabalho de investigação que tem depois um lado artístico, mas claramente será provocador também.