Os primeiros cânticos de futebol. E uma paixão clássica pela bola


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A memória das canções ligadas à bola poderá ir tão longe quanto o próprio futebol contemporâneo, nascido formalmente em 1863, quando em Inglaterra se cria a Associação de Futebol, o primeiro organismo do mundo para regular este desporto.

No país onde se começou a regular um desporto sem idade, com referências na história de alguns milhares de anos, acredita-se que "On the Ball City", adoptado pelo Norwich City (Leste de Inglaterra) é o hino de futebol mais antigo do mundo ainda cantado nos estádios.

Será de finais do século XIX e, portanto, mais antigo, até, do que o clube dos canários, fundado já em 1902. Por isso se acredita que terá adoptado posteriormente esta música de um tal de Albert T. Smith.

“On The Ball City” evoca memórias felizes de uma infância, passada a jogar futebol, e canta ao sucesso do City. Com o passar do tempo, a letra foi sofrendo alterações e, sobretudo, perdeu-se alguma da melodia. Mais de uma centena de anos depois da fundação, o clube quer garantir que o velhinho hino é cantado na forma original.

Em Inglaterra acredita-se, contudo, que o primeiro cântico futebolístico de que há registo remonta efectivamente a 1898 (e este não é cantado nos estádios, ao contrário do anterior).

A autoria é de luxo. Escreve-o, nada mais nada menos, Edward Elgar, que por essa altura é ainda um compositor em ascensão, a caminho de se tornar um dos maiores da história de Inglaterra.

Quem dá conta deste "desvio autoral" de um compositor clássico para a grande área do futebol é a sua amiga Dora Penny, filha do líder religioso de Wolverhampton (Midlands inglesas), a quem Elgar há-de dedicar uma das conhecidas "Variações Enigma".

No seu livro, a jovem dá conta que no primeiro encontro com Elgar, o compositor lhe pede para assistir a um jogo de futebol dos Wolverhampton Wanderers.

Depois dessa primeira experiência, Edward Elgar terá feito da ida à bola um hábito, pedalando quase 60 quilómetros com regularidade, desde sua casa, para assistir aos jogos. Seria mesmo fã de um avançado em particular, Billy Malpass.

E quando a amiga lhe envia um recorte de jornal com o título "He banged the leather for goal" ("Ele pontapeou o couro para golo") – uma referência ao tal avançado – surge a inspiração.Elgar escreve três compassos, que correspondem a poucos segundos, para executar ao piano, com o mesmo título do recorte. Mas a melodia é porventura demasiado complexa para ser entoada nos estádios. Até 2010 nunca teria mesmo tocada em público, como nos confirmou a Orquestra Sinfónica de Wolverhampton. (para ouvir clique no áudio do episódio, em cima)

Adoptado pelo futebol

Dora Penny descreve, no seu livro, o entusiasmo do compositor com o fenómeno do futebol: adorava as multidões, os gemidos das bancadas, os rugidos depois de um golo.

Os "Wolves" são um dos clubes mais antigos de Inglaterra, fundadores da Liga de Futebol. E, como outros, acabaram por adoptar também Elgar e as suas composições para o futebol.

Uma das mais conhecidas assume até contornos de hino em Inglaterra e muitos ingleses preferi-la-ão ao hino oficial, "God Save the Queen". É um trecho da Marcha de Pompa e Circunstância nº 1, também reutilizado, já com letra, na "Ode da Coroação" para o Rei Eduardo VII.


Chama-se “Land of Hope and Glory” (“Terra de Esperança e Gloria”), data de 1902, e tem letra de Arthur Christopher Benson.

Nesta rara gravação de 1931, conduzida pelo próprio Elgar, o compositor diz aos músicos: "Toquem a música como se nunca a tivessem ouvido".

A canção patriótica que tanto inspira os ingleses – e o seu futebol – é tocada sempre no final dos "Proms", o afamado festival de música clássica de Londres organizado pela BBC.

Uma das versões mais intensas é-nos oferecida pela voz de Vera Lynn, a namoradinha de Inglaterra, ícone da II Guerra Mundial.


Conta-se que Edward Elgar reconheceu, logo no momento da composição, que tinha uma música para "arrasar". Daquelas que surgem uma vez na vida.

Em Portugal, curiosamente, serviu de inspiração a uma música infantil sobre futebol, de que falaremos num próximo episódio.


"Som de Bola", por Maria João Cunha (jornalista) e Paulo Teixeira (sonorização). Arquivo Renascença: Ana Isabel Almeida

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