“A realidade é de fome há já muitos meses, de incapacidade de pagar a renda e de aquecer a casa. Estamos a falar de muita gente que não consegue pagar uma botija de gás ou pagar a eletricidade. As pessoas estão em falência”. É desta forma que é descrita a situação de muitos dos profissionais da cultura que este sábado se juntam em protesto.
A descrição é de Rui Galveias. O dirigente do Sindicato dos Trabalhadores do Espetáculos, Audiovisual e dos Músicos (CENA-STE) conta à Renascença que há família inteiras afetadas.
“Estamos a falar de um universo de pessoas que vai muito além dos trabalhadores, que acabam por ficar reféns desta situação. É uma situação de pobreza de uma forma geral”, conclui.
Face à atual situação, a cultura organizou para este sábado um protesto que chegou a estar previsto para a rua, mas que devido aos números da pandemia, foi transferido para os meios digitais.
A manifestação, que terá lugar nas redes através da hastag #NaRuaPeloFuturoDaCultura, mobiliza mais de 20 associações representativas do setor e abarca profissionais de diversas áreas. Em protesto estão, entre outros, arqueólogos, realizadores de cinema, artistas e encenadores, profissionais do audiovisual e técnicos de palco.
“Sem atividade e sem rendimentos”
São milhares de pessoas que trabalham num dos setores afetados pela paragem da atividade. Apesar do apoio de 42 milhões de euros anunciado pelo ministério da Cultura, persistem as razões para o protesto deste sábado num setor onde muitos não têm ordenado fixo.
Há mesmo profissionais que estão sem trabalho desde o início da pandemia e alguns são falsos recibos verdes sem apoios, denuncia Amarílis Felizes, da Plateia.
“Sabemos que há milhares de pessoas que não voltaram a ter atividade desde março. Muitas vezes são trabalhadores freelancers, que trabalham projeto a projeto, geralmente através de recibos verdes, muito embora muitas vezes devessem ter contratos de trabalho. Essas pessoas ficaram sem atividade e sem rendimentos”, explica esta profissional do Porto.
A situação é agravada, conta Amarílis Felizes, porque “há pessoas que tinham dívidas à segurança social e não puderam ter qualquer tipo de apoio”, concluindo que “há pessoas a passarem imensas dificuldades”.
Companhia luta para manter os postos de trabalho
Quem dirige uma companhia independente como é o caso de encenador João Garcia Miguel, em Lisboa, admite que já teve de fazer uma ginástica financeira para não deixar colaboradores para trás.
Perante as dificuldades que viu muitos profissionais a enfrentar, e mesmo havendo cadeias de solidariedade, este experiente encenador explica à Renascença que tem “mantido todos os postos de trabalho, e até fixado alguns dos colaboradores mais regulares”, estabelecendo “contratos, e algum ordenado mensalmente”.
No entanto, João Garcia Miguel admite que estão também eles a chegar a um ponto critico. “Os nossos recursos estão a ficar aprisionados”, afirma.
O esgotamento é agravado pelo segundo confinamento decretado pelo Governo, que parou o curso de muitos espetáculos e eventos que já estavam agendados para janeiro e fevereiro.
Com novos cancelamentos, há profissionais que ficaram sem pagamentos e sem perspetivas futuras.
Rui Galveias, do CENA-STE, lembra que “muita da atividade deste ano foi fortemente condicionada e mesmo a possibilidade de haver contratações em 2021 está neste momento condicionada”. Segundo este profissional, “há muita hesitação e recuo” entre os programadores.
Criativo como é o meio cultural reinventou-se desde que a pandemia se instalou. Recorrendo à internet para manter a ligação com o público, muita da atividade conheceu uma segunda vida digital. No entanto, não é a mesma coisa que ter sala cheia, reconhece o encenador João Garcia Miguel.
“Neste momento, aquilo pelo que lutei ao longo de 30 e tal anos que levo de trabalho em teatro, está a perder um pouco o sentido. Por muito teimoso e obstinado que seja, e sou, sinto que há impossibilidades que não são ultrapassáveis. Não podermos estar juntamente com os outros, e passarmos para o plano digital, não é teatro! É outra coisa, definitivamente.”
Ao coro de vozes de protesto, este sábado juntam-se também outros trabalhadores do setor que não são os que sobem ao palco. Além dos arqueólogos, realizadores de cinema, empresários de circo, programadores culturais, editores independentes, estão também mobilizados profissionais de eventos.
Rui Galveias, do CENA-STE, lembra aqueles que trabalham em “festivais, mas também em iniciativas do tipo coorporate, onde o temos como exemplo a Web Summit. Essas iniciativas estão suspensas”.
Segundo o dirigente sindical, estes “são trabalhadores na área da cultura, com formação e valências na área da cultura, mas que fazem outras coisas” e muitos deles não são abrangidos pelos apoios.
O Governo anunciou apoios de 42 milhões. Os trabalhadores do setor pedem mais, e apoios a longo prazo, bem como o pagamento de espetáculos adiados e cancelados.
O protesto deste sábado será virtual, mas por uma causa real. Amarílis Felizes explica que apelam à participação de todos, sejam artistas, sejam espetadores, consumidores de cultura.
“A nossa proposta é muito simples. Toda a gente, os trabalhadores do setor, todas as pessoas que usufruem do nosso trabalho, toda a gente, faça uma fotografia ou um vídeo através do mote, #NaRuaPeloFuturoDaCultura e que coloque nas redes sociais no dia 30 para criarmos uma mancha virtual significativa para passarmos a nossa mensagem”.
Na rua pelo futuro da cultura, será neste caso, na internet. Um protesto confinado por opção, face a atual situação pandémica.